O ICMS é um tributo fundamental nas receitas públicas dos Estados, possuindo cobrança de forma objetiva. Se compro algo, se alguém vende isso de forma profissional ou habitual, há o destaque do tributo e, portanto, pago na aquisição do bem. A alíquota, o seu percentual, vai do critério do essencial para o seletivo, considerando o seu uso e hábito.
Atualmente, o presidente da República, ou melhor desde o começo da pandemia (janeiro, fevereiro e março de 2020) vem defendendo mudanças no ICMS sobre o preço dos combustíveis, visando uma cobrança uniforme, ou seja, um valor fixo para cada litro de gasolina, diesel ou álcool consumido, conforme Projeto de Lei encaminhado ao Congresso Nacional este mês.
O ICMS dos combustíveis, quando o produto chega na bomba do posto, já está com a cadeia paga ou pelo fabricante ou pelo distribuidor, na condição de substituto fiscal, na lógica de apuração do ICMS – ST, em que o fornecedor antecipa o imposto a ser pago pela cadeia. Desta maneira, o preço dos combustíveis na bomba não muda no varejo, salvo se houver política de preços considerando o sistema de precificação a ser adotado. O ICMS, num quadro de estagnação econômica é a sobrevivência para os Estados e Municípios e a “cereja” do bolo para quem quer fazer populismo fiscal.
Há, em diversos áudios, lives, twitters do presidente da República, dois eixos de uma mudança. Por Lei Complementar (que é o que foi encaminhado para o Congresso na semana passada) e por isenção via decreto (?) ou Projeto de Lei. Analisemos um a um.
Para que o atual PLC (Projeto de Lei Complementar) seja aprovado, faz-se mister a maioria absoluta de votos na Câmara e no Senado. Resta claro que – por força da Constitucionalidade do tema – inclusive quanto à essencialidade e seletividade dispostas na própria Constituição Federal que governador algum terá ou teria competência legal para interferir na alteração da alíquota de ICMS.
Olhando, prima facie, sobre o texto encaminhado e noticiado pela imprensa, há o aspecto da duvidosa legalidade de uma alíquota baseada em valor percentual fixo, desprezando inclusive oscilações negativas de preços, que repercutem ou deveriam repercutir nas bombas de combustível, atropelando ainda mais no contexto de discussão da reforma tributária, o debate e a necessária alteração sobre a lógica do ICMS, unindo-se ou não ao ISS, num improvável IVA.
Quanto à isenção, a regra do Art. 155 da Constituição da República veda a União criar tributos cuja competência seja dos Estados. Em resumo: nem a União pode isentar o ICMS e nem pode fazê-lo por qualquer meio – seja por decreto, seja por PL, por expressa vedação constitucional, salvo o Projeto de Lei Complementar a que nos referimos antes.
Sobra (o que a imprensa noticia nos últimos 10 dias) ao Governo da União praticar a isenção seletiva em tributos sobre consumo, com reduções de alíquota federais que, ressalte-se, sem demonstrar a fonte de compensação, levará o atual mandatário a se ver tête-a-tête com o Tribunal de Contas da União em face do que determina o Art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e o Art. 113 das Disposições Constitucionais Transitórias.
Há, por fim, a necessária discussão sobre o tributo sobre consumo. Fazer políticas públicas e intervenções no sistema de preços não é prudencial considerando tudo o que dissemos acima.
Impostos sobre o consumo devem ser neutros. O mundo anda neste sentido. Que se fusionem tributos! Que se criem novas categorias tendo por fundamento a racionalização do sistema e o financiamento justo e solidário dos encargos da União e dos demais entes federados! Mas fatiar ainda mais, setorizar ainda mais um segmento essencial, em um país que desprezou outras formas de escoar a sua produção econômica, dada a sua dimensão continental, é simplesmente querer justificar o improvável, o delírio.
O fato da base única sobre o consumo ter sido inteiramente fatiada de acordo com diversos setores da economia – já há muitos anos - e contra os quais se insurgiu o presidente atual em sua campanha de 2018, prometendo reconstruir o Pacto Federativo - fez com que a tributação sobre o consumo no Brasil tenha se tornado setorial, o que é um retrocesso total, pois não comporta a realidade econômica atual, especialmente diante da era digital, onde as diferenciações setoriais são contrárias à ideia de neutralidade, indispensável à tributação do consumo.
E é nisto em que deveria concentrar-se o Governo Federal. Reformar os tributos sobre o consumo. Mas onde está a reforma? Quem é o seu protagonista? Até a reforma chegar e ante a penúria e falência dos Municípios e Estados, não faz sentido – sobretudo nos Estados do Norte e Nordeste - fazer política fiscal com os resíduos constitucionais dados na esfera do ICMS, sobretudo em tempos de incerteza econômica, agravados pela COVID-19.
E o pior: nem empréstimos internacionais estes entes podem contrair para alinhar as contas publicas, em face das vedações expressas no tocante à legislação para perseguir saídas de autofinanciamento fora do País, posto que a União é necessariamente – por força de Lei – fiadora destes empréstimos.
É uma espiral que não se resolve com uma batalha de cartas e com condenações antecipadas, frutos de delírios e de absurdos. O atual estágio da esquizofrenia fiscal adotada pelo Governo Federal nos lembra o conto de Alice no Pais das Maravilhas. Alice, uma menina curiosa, segue um Coelho Branco de colete e relógio, mergulhando sem pensar na sua toca. A protagonista é projetada para um novo mundo, repleto de animais e objetos antropomórficos, que falam e se comportam como seres humanos. No País das Maravilhas, Alice se transforma, vive aventuras e é confrontada com o absurdo, o impossível, questionando tudo o que aprendeu até ali.
A menina acaba fazendo parte de um julgamento sem sentido e sendo condenada à morte pela Rainha de Copas, tirana que mandava cortar a cabeça de todos que a incomodavam. Quando é atacada pelos soldados da Rainha, Alice acorda, descobrindo que toda a viagem se tratou de um sonho.
A disfuncionalidade do sistema tributário, baseado na tributação sobre o consumo, deve ser tratada com a discussão sobre o Pacto Federativo, Competências, Limites e Partilhas (no que toca a parte tributária de uma possível reforma) e não submeter aqueles que administram recursos parcos e raros (governadores e prefeitos**) ao julgamento de uma Rainha de Copas que - ao que parece - quer o absurdo, o impossível, desprezando a Constituição da Republica e o pouco de recursos que restam aos Estados. Sobretudo na nossa região.
** (se administram bem ou mal, as urnas devem expurga-los ou mantê-los como em todo regime democrático saudável).
Luiz Jose de França é advogado, especialista em direito empresarial pela UFPE e em direito tributário também pela UFPE. Sócio da França Advogados Consultoria Jurídica e Advocacia, com escritório no Recife e em São Paulo e diretor da França Apoio em Gestão Empresarial, membro associado do IBGC e da APET – SP.