Há um crescente interesse para esse tão importante personagem das cozinhas e das histórias pessoais e coletivas chamado o “ingrediente”. E assim busca-se além do sabor as mais profundas referências que identificam, particularizam uma batata, uma folha de mostarda, um tipo de milho, uma pimenta entre tantas individualidades que devem ser reconhecidas para dessa maneira poder viver cada ingrediente nas receitas e nos símbolos em diálogos que referenciam culturas.
O ingrediente é traduzido nos contextos da globalização nas maneiras identitárias e autorais de se fazer comida e de se viver os rituais da alimentação e da comensalidade.
É assim, o ingrediente é uma espécie de símbolo do território. Porque cada ingrediente terá uma fala peculiar, um uso indicado na tradição e nas relações com os outros ingredientes, nas maneiras de revelar e de reconhecer um lugar, e isso pode-se chamar de “terroir”.
Por exemplo o milho, são centenas de tipos, desse cereal americano, que para as civilizações milenares dos continentes das Américas representa o sol, o poder da vida e da fertilidade, Sagrado milho , uma base alimentar que vai muito além da boca, da receita, ele o milho é um mito vivido nos seus mais identitários ~símbolos de alimento, de pertencimento, de memória ancestral presente também nas nossas mesas de junho, com tantas receitas com coco, cravo e canela, e com as pamonhas que atestam usos de mais de 7000 mil anos pelos povos tradicionais latino-americanos. São os “tamales “comidas cozidas e servidas nas folhas.
Ainda o milho um destaque para os hábitos alimentares cotidianos, em especial no Nordeste com as receitas de se comer cuscuz de farinha de milho, bolo de milho, biscoitos entre tantas maneiras de se trazer o sol dos incas às nossas mesas.
Mandioca, também da América do Sul, é uma das mais importantes bases das comidas das nossas sociedades tradicionais, dos nossos indígenas e está integrada aos significados culturais de povos milenares das florestas.
Da mandioca, a farinha de mandioca, um dos mais notáveis ingredientes de uso e de significado nacional.
Farinha para se comer com tudo, em diferentes usos, enquanto farofa, pirão. Para fazer os mais importantes estilos de se comer à brasileira, com farinha seca, farinha misturada nos caldos dos legumes. dos peixes, de crustáceos, com o caldo grosso e temperado da galinha de cabidela com a pimentas frescas , também nativas. Pode também se misturar com mel de engenho ou o melado, com açaí, ser uma bebida artesanal acrescida de água e açúcar, o “chibé”, e ser ainda como o mais tradicional acompanhamento do churrasco de fogo de chão, entre tantos.
Sem dúvida a identidade das comidas, das peculiaridades de cada ingrediente e receita marcam as escolhas e as propriedades encontradas na exclusividade do sabor, da forma, das indicações de uso culinário.
Porque a receita e a técnica culinária unem-se no entendimento pleno. funcional e de memória que traz cada ingrediente nas suas cores, texturas, odores, quantidades, organizações nos pratos, também indicadores de leituras estéticas. Porque comer é um ato amplo e diverso, peculiar, necessitando das linguagens e dos sentidos, visto que comer é uma atitude, um encontro com referências, com as mais profundas interações entre a cultura e a pessoa.
As comidas são apresentadas envoltas em folhas, sobre esteiras, em louça de barro, em gamela de madeira, em compoteira de vidro, para se comer de mão, com talheres, com o rigor dos tabus alimentares, das regras religiosas das festas que indicam o que comer porque é festa e assim a festa só será festa se as comidas traduzirem os símbolos revividos em cada ritual de comensalidade
Diante de tantos acervos, com as muitas diferenças regionais pelos biomas, pelas ocupações etnoculturais, pelos interesses comerciais pode-se viver as escolhas dos ingredientes, do que comer, como comer, estabelecendo os sentidos do que chamamos por “soberania alimentar”.