*Por Rafael Dantas
Quem tem medo da inteligência artificial? Os impactos estimados dos avanços dessas novas tecnologias são muito diversos. Os economistas do Goldman Sachs prevêem que 300 milhões de empregos no planeta podem ser automatizados pela nova onda de IA que estamos vivendo. A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) estima que 27% dos postos de trabalho dos países que integram o bloco podem sumir. Por outro lado, um conjunto de novas oportunidades e profissões já está surgindo, inclusive em Pernambuco, com a popularização dessas ferramentas. Com alta capacidade de imitar tarefas que, normalmente, exigiriam a inteligência humana, esses novos sistemas tendem a promover um tsunami de transformações no mercado de trabalho, que não podem ser desconsideradas pelos profissionais que estão na ativa, nem por quem está desenhando as políticas públicas para o futuro — mesmo no curtíssimo prazo.
Diferente das revoluções tecnológicas anteriores, que substituíram principalmente trabalhos mais braçais, a atual avançou sobre atividades cognitivas. Tradução de textos, análise de diagnósticos para identificação de doenças e atendimento virtual ao cliente são apenas alguns exemplos. “As áreas mais impactadas nessa nova fronteira tendem a ser de manufatura, transporte, varejo, serviços financeiros, atendimento ao cliente, inclusive muitas atividades na área de saúde. A inteligência artificial chega primeiro aos trabalhos com nível de cognição mais baixo. Ela já consegue automatizar essas funções, em níveis mais altos do que a computação vinha automatizando até então”, afirmou Guilherme Jaime, gestor nacional da área de TI da Faculdade Estácio.
Muitos profissionais, no entanto, consideram uma perspectiva de trabalho com suporte de inteligência artificial. Um recente estudo do Fórum Econômico Mundial indicou que 74,9% das organizações pesquisadas indicam a probabilidade de adotar inteligência artificial nos próximos cinco anos. Para compreender esse novo cenário do mercado de trabalho com uso fluido de inteligência artificial e até para entender as problematizações que surgirão dele, o consultor da TGI, Fábio Menezes, avalia que os profissionais e gestores precisam dar alguns passos iniciais para superar os níveis de medo e de curiosidade. “Temos que vencer os dois, ir além da curiosidade e vencer o medo inicial. É um negócio com potencial arrasador para o bem e para o mal”.
O consultor sugere que gestores de empresas e profissionais instalem uma pauta de discussão sobre o impacto da IA nos seus setores e com atenção às especificidades não apenas da sua atividade, mas também regionais. “Temos estimulado que as pessoas pesquisem, estudem e façam exercício prospectivo. Não é adivinhar o que vai acontecer, mas imaginar sobre o que pode acontecer. Essas ferramentas ajudam muito na produtividade, eficiência e inclusive na qualidade. Trazem um ganho de tempo. Mas aspectos como a criatividade, a originalidade e o relacionamento vão ganhando força. Os algoritmos nos conhecem, mas não estabelecem uma relação”.
PARA ALÉM DA CURIOSIDADE
Anselmo Albuquerque, sócio-fundador da Jogga Digital, começou a mergulhar mesmo nas aplicações de inteligência artificial para seus negócios em fevereiro. Ele deu uns passos além da curiosidade para explorar diversas ferramentas para aumentar sua produtividade, criar conteúdo, editar vídeos e aplicar em seus negócios, com ênfase na curadoria e análise de dados.
O publicitário ressalta que a IA é um auxílio e não deve substituir a responsabilidade humana nas decisões ou nas análises geradas pelas tecnologias. Anselmo também enfatiza a importância de experimentar a IA em coisas casuais e cotidianas para entender melhor seu funcionamento e potencial. “Essas ferramentas estão sendo aplicadas de maneira caseira, amadora e também de maneira profissional para estudos, desenvolvimento da ciência, da medicina, da engenharia. Ela não traz respostas perfeitas, mas auxilia. Não podemos transferir a responsabilidade dos conteúdos para a máquina. Vivemos um momento de experimentação. O segredo da qualidade das respostas da IA está no pedido que fazemos para ela, com contexto, clareza e objetivo”, afirma Anselmo. “Eu daria um recado para o profissional que está com medo: não é inteligência artificial que tira seu emprego, mas talvez uma pessoa que aprendeu a usar a IA. É importante estar à frente para que o seu negócio dure e permaneça”, aconselha.
Na prática dentro da empresa, ele afirma que há um estímulo para que a equipe use inteligência artificial no cotidiano de trabalho em diversos níveis, como para gerar um comunicado de inadimplência a um cliente, para a organização de uma pauta de reunião e até fazer análise de dados para tomar as decisões mais acertadas nas prestações de serviço. Nessa aplicação mais complexa, ele lembra que são simulações que preservam as informações dos clientes, que é um dos pontos de atenção do mundo mergulhado em IA.
CASE PERNAMBUCANO DE USO DA IA
Após cinco anos de ser fundada, a pernambucana Di2Win prevê um faturamento em 2023 entre R$ 6 e R$ 8 milhões. A empresa é especializada em gêmeos digitais, que promovem a otimização dos processos com uso de inteligência artificial e robotização. De acordo com o CEO, Paulo Tadeu, o negócio conta atualmente com 17 clientes, mas está num momento de expansão, conquistando, mês a mês, dois a três novos contratos.
Diante da experiência das empresas para as quais a Di2Win tem prestado serviços, ele considera que não houve uma destruição de postos de trabalho, mas uma liberação para que aquela mão de obra exercesse atividades mais criativas e menos repetitivas. “Focamos na redução de custo e na eficiência operacional. Algumas etapas não usam humanos, os clientes realocam os profissionais para outros espaços ou avançam em outros mercados. Essa mesma discussão aconteceu com a chegada dos softwares, da internet. Mas aconteceu uma migração das pessoas para áreas de maior valor agregado. São ferramentas que pegam o histórico passado, veem as formas de trabalho e as colocam de forma automática. O que é novo, inusitado e criativo fica com o humano”, considera o CEO.
ESCASSEZ DE MÃO DE OBRA
Para dar suporte ao crescimento da empresa, um dos braços de atenção é justamente no treinamento de profissionais para atuar com inteligência artificial. A Di2Win conta com 43 funcionários no Recife e no interior de Pernambuco e de São Paulo. Só no Agreste e Sertão do Estado são mais de 10 pessoas. “Temos gente em Salgueiro, Gravatá e Caruaru, com um núcleo muito forte, por causa das universidades”.
Parte desse contato com os novos profissionais em formação está conectada à estratégia de interiorização do Porto Digital, da qual a empresa participa com treinamentos e hackathon. São portas de entrada para os pernambucanos que estão mais distantes do polo tecnológico do Recife acessarem o mercado, seja como bolsistas, estagiários ou já como profissionais contratados, atuando de forma remota em suas cidades.
Com o uso crescente da IA nas empresas, Guilherme Jaime destaca que estão surgindo novas oportunidades que orbitam ao redor de áreas como ciências de dados e aprendizado de máquina. A utilização de IA em tribunais de justiça para agrupar processos por similaridade, melhorando a homogeneidade das decisões, e na área de educação, como a KHAN Academy, que oferece tutoria por meio de IA são alguns dos cases.
“A transição da mão de obra para o uso da IA requer educação e treinamentos contínuos, desenvolvimento de habilidades técnicas e socioemocionais”, declara Guilherme Jaime. Ele afirma que os profissionais devem ter um conhecimento aprofundado para analisar criticamente as respostas da IA e realimentar o sistema com ajustes necessários. Essa atuação ocorre em diversas frentes, com a necessidade de atualizar profissionais no mercado por meio de programas de pós-graduação, graduação e ferramentas online de aprendizagem. Nos países que estão mais adiantados no desenvolvimento e uso da IA, em paralelo ao processo de automação, a transição tem criado novos empregos, principalmente na área de TI.
Paulo Tadeu destaca que o mercado de trabalho na área de IA tem grande demanda e carece de mão de obra especializada, mas Pernambuco tem se destacado como vanguarda nesse cenário, com iniciativas acadêmicas e profissionais impulsionando o setor.
“Pernambuco é interessante, temos toda condição, estamos na vanguarda disso. Tínhamos o maior grupo de IA na América Latina há 20 anos. Nos primórdios muitos professores foram fazer doutorado nos Estados Unidos e Inglaterra, voltaram e mantiveram o vínculo com quem estava nessa vanguarda. Vivemos esse cenário de carência de mão de obra, agora com vagas abertas de todo lado para atuar com tecnologia da informação. E a IA é uma das cinco linhas temáticas mais fortes nas oportunidades na sociedade. O mundo tem um buraco enorme desses profissionais”.
DILEMAS E RISCOS DO AVANÇO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A professora Ana Carolina Leite, do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco, considera que o dilema que efetivamente se apresenta ante o desenvolvimento das IAs refere-se ao alcance ou à proporção na substituição de trabalho vivo que essa tecnologia incrementa no desenvolvimento das forças produtivas. A pesquisadora destaca que o desenvolvimento técnico tem como função tornar mais produtiva a produção de mercadorias, diminuindo os custos de produção por unidade e aumentando as margens de rentabilidade dos negócios. Um processo que historicamente foi impondo reorganizações fortes no mundo do trabalho.
“Durante o Século 20, o incremento expresso em novas máquinas que desempregou inúmeros trabalhadores nas indústrias foi acompanhado de uma expansão de novos setores responsáveis pelo desenvolvimento dessas tecnologias. Contudo, pelo menos desde o fim do século passado, discute-se que a revolução microeletrônica já teria interrompido essa dinâmica de substituição de empregos num setor por outro. Fundamentalmente porque o salto tecnológico representado pela era digital foi reduzindo a utilização de trabalho vivo progressivamente em todos os setores que surgiram com o advento dessa tecnologia. Abriu-se então o paradigma da substituição da prevalência do trabalho industrial pelo trabalho nos serviços, processo que ficou conhecido como revolução terciária inclusive”, lembrou a pesquisadora.
No entanto, hoje o próprio setor terciário foi inundado pelos impactos da tecnologia, com reorganizações profundas do mercado de trabalho, especialmente diante do fenômeno da plataformização da economia. “Todos os sinais de uma crise que hoje se explicita como de fato incontornável já se faziam notar nos anos 1980, que chamamos década perdida. Então o problema que temos hoje com o advento das IAs não é diferente. Faz quase 50 anos que o avanço técnico não permite incorporar o trabalho que ele dispensa e esse processo se faz visível no processo brutal de centralização dos capitais industriais, por exemplo, na China, e num processo de desindustrialização que é global. Não há dúvida de que a IA vai acelerar os passos dessa substituição, ameaçando agora os trabalhadores intelectuais cujos impactos do aumento da produtividade global eram mais rarefeitos do que sobre os trabalhadores manuais”, afirmou a professora da UFPE.
Apesar das oportunidades geradas para atuar no setor tecnológico, ela lembra que há também um conjunto de novas atividades para trabalhadores extremamente precarizados, que são convocados a funcionar como apêndices dessas tecnologias, em trabalhos que vão de etiquetadores de dados a motoristas de entrega ou moderadores de conteúdo.
Anselmo Albuquerque alerta para riscos éticos, como de direitos autorais e de uso de imagens de pessoas já falecidas, e de segurança de dados com uma maior popularização das ferramentas de inteligência artificial. Fatos recentes, como a campanha publicitária envolvendo a cantora Elis Regina, ligaram o sinal de alerta no Brasil. No mundo, há desde celebridades que já estão proibindo o uso de suas imagens pós-morte, a exemplo da cantora Madonna, como alguns que previamente estão autorizando essa aplicação, no caso do Bruce Willis.
O professor Davi Maia, da Faculdade Nova Roma, afirma que a popularização de ferramentas como o ChatGPT traz muitos avanços práticos na sociedade, mas também preocupações. Ele aponta três principais desafios que acompanham esse avanço tecnológico. “O primeiro deles é a segurança e privacidade dos dados, visto que vivemos na era da informação e muitas vezes não sabemos quais dados estão sendo coletados e como serão utilizados. O segundo desafio é de natureza ética, relacionado ao compartilhamento de dados com outras organizações e a utilização dessas informações para recomendações e anúncios. Por fim, a questão da disseminação de fake news e deep fakes, com a preocupação de deturpar verdades e atentar contra a dignidade das pessoas.”
Davi Maia considera que há um receio visível de que profissionais sejam substituídos por máquinas na sociedade, mas tem um pensamento diferente. “A história da humanidade mostra que a substituição de atividades por tecnologias mais eficientes é um processo natural. É importante ressignificar o trabalho humano, buscando novas habilidades e especializações para destaque em um mercado cada vez mais impulsionado pela inteligência artificial.” O crescimento do setor de ciência de dados e o surgimento de vagas nessa área indicam que o mercado de trabalho está se adaptando à revolução tecnológica, ainda que de forma menos acelerada do que em outros países.
Os olhares são diversos sobre a chegada mais forte das IAs no mercado de trabalho. A velocidade dessa nova onda de transição tecnológica é uma das novidades em comparação às anteriores. As políticas de qualificação profissional são vistas por parte dos analistas como solução, por outra parte como insuficientes para a transição que vivemos. O debate, segundo a professora Ana Carolina Leite, precisa ser bem mais amplo do que a capacitação de mão de obra para o mundo tecnológico e abranger o próprio modelo de produção.
Desafios e dilemas que afetam também Pernambuco, com seus polos tecnológicos conectados ao que há de mais moderno no Século 21, convivendo, em paralelo, com o Pernambuco das desigualdades abissais da sua mão de obra e problemas sociais de séculos passados. Ambas as realidades lidam agora com os efeitos positivos e negativos da popularização das inteligências artificiais.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)