Josefina, uma pianista de fina estampa - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Josefina, uma pianista de fina estampa

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Inventado há mais de 300 anos, o piano, imortalizado nas mãos de gênios como Mozart, Chopin, Liszt, Rachmaninoff e Beethoven, e tantos outros que marcaram a música para sempre, se impôs ao tempo. Inventado pelo italiano Bartolomeu Cristofori, representou uma evolução do cravo, até então o principal instrumento dos anos 1700. Nascido no século 18, neste século 21, o piano continua a ser um dos principais instrumentos musicais, isolado ou como parte da orquestra, consequência lógica de sua versatilidade, amplamente aplicada na música ocidental.
Daí ele ganhou o mundo e inaugurou um tempo em que, nos momentos de lazer, as pessoas se reuniam em saraus para apreciar músicas tocadas por instrumentos clássicos como piano ou violino. Foi uma época em que o piano reinaria absoluto e praticamente em todas as casas haveria um, confirmando a existência da “pianolatria”, como dizia o escritor Mário de Andrade.
Na casa de Josefina Aguiar, ainda bem, também havia um. Josefina foi saboroso fruto de uma família de artistas. Maria Aguiar, a mãe, era violinista. O tio, Elias Aguiar, doutor em música e regência. O pai, Antônio Aguiar, convicto apreciador de música erudita, tanto que mantinha em casa um quarteto de música de câmara.
Compreende-se que Josefina viesse a ser, como, de fato, foi, uma grande artista. Desde cedo, ela mostrou que teria uma relação de cumplicidade com o instrumento. Tinha apenas 5 anos de idade, quando sua professora de piano notou que havia algo de diferente nas mãos daquela menina. Inexplicavelmente, era como se aquelas mãos tão delicadas fossem elásticas. Então, comunicou aos pais da menina todo o potencial daquela criança, não conseguido, contudo, ser levada a sério. Mãos são só mãos, ora, mãos elásticas... haveria de meditar a família de Josefina.
O tempo se encarregou de mostrar que a mestra tinha razão. Para comprovar o que afirmava, a professora preparou a menina para tocar ao piano, de memória, 10 músicas, o que ela fez com maestria, no dia em que completava 6 anos.
Mais tarde, com apenas 11 anos de idade, foi a primeira criança solista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife, regida pelo rigoroso maestro Vicente Fittipaldi. Tinha apenas 11 anos de idade, repita-se. Foi considerada, com razão, um dos raros talentos musicais que despontaram nos anos 1940 em Pernambuco, mas, mesmo assim, tão qualificada, o Recife só a ouviu tocar pela primeira vez no rádio, na Rádio Clube de Pernambuco, quando tocou o adágio da Sonata ao Luar, de Beethoven.
Naquele dia a fama lhe sorriu e lhe trouxe um renomado admirador, Valdemar de Oliveira. Não tardou, veio o primeiro recital. Àquela altura, sua fama já rompera as divisas pernambucanas, chamando a atenção do pianista norte-rio-grandense Valdemar de Almeida, que a levou para se apresentar em Natal. Ali ela conheceu o violinista Cussy de Almeida, outro grande talento, com quem veio a formar uma dupla de muito sucesso no Brasil e no exterior. Fez, inclusive, apresentações exitosas na Europa, notadamente no Concurso Internacional de Violino e Piano de Munique, Alemanha. Era, dizia a crônica especializada, o melhor dueto do Brasil.
O fato é que em dupla ou individualmente, a pernambucana Josefina Aguiar era uma artista especial. As apresentações solo em todo o Brasil se multiplicavam, tendo se apresentado também na respeitada Escola Nacional de Música, do Rio de Janeiro.
Josefina Aguiar, pianista clássica, admiradora da música de Edvard Grieg, o compositor norueguês da Suíte Peer Gynt, defendia com vigor a música erudita. Sua determinação era tão grande, que os amigos a chamavam de A Dama da Resistência e de Leoa do Norte. Nos saraus que eram comuns naquela época, entretanto, não relutava em tocar polcas, pas-de-quatro, valsas, fox-trotes, marcha carnavalesca e um dobrado para piano, gêneros musicais do passado, hoje perdidos na insensibilidade do tempo.
Com sua presença nos salões, Josefina Aguiar valorizava os compositores recifenses, como Capiba, Nelson Ferreira, Alfredo Gama, Zuzinha, Misael Domingues e um desconhecido chamado José Capibaribe, que, na verdade, era um pseudônimo de Valdemar de Oliveira, aquele que se fizera seu fã desde a primeira apresentação, na Rádio Clube de Pernambuco, lembra-se?
Vale a pena ver o que diziam dela seus contemporâneos.
“A terra natal foi egoísta e insensível, incapaz de perceber nela o que a Argentina percebeu em sua Martha Argherit. Uma artista de brilho tão fulgurante, como Josefina, deveria deixar a província para ter uma vivência mais completa do mundo e interagir com um ambiente artístico e cultural mais universal”, advertiu o pianista Edson Bandeira de Mello, seu amigo desde a juventude, professor aposentado do Departamento de Música da UFPE.
Para Mauro Maibrada, Josefina, “ao entrar no palco, parecia que uma luz se acendia. Dizia mais: Maibrada, que ela “não lia só a partitura, mas também a alma”.
Já para o professor de história da música brasileira, ocidental e canto coral José Amaro dos Santos, Josefina não tocava mecanicamente. “Ela tinha uma musicalidade ímpar. Nas suas mãos, a música transcendia para algo mais do que aquilo que os compositores escreviam.”
Por outro lado, o vice-reitor da UFPE, Gilson Edmar, seu amigo, disse que a pianista fazia questão de tocar nas suas posses. “Era uma pessoa humana extraordinária. E, mesmo doente, tocava tão bem, que parecia que a doença ia embora”, asseverou.
Josefina, que, de acordo com José Amaro, conhecia como ninguém a história de música pernambucana, era uma entusiasta dos jovens talentos e não hesitava em incentivá-los. “Do mal da indiferença e do egoísmo, ela não padecia”, elogia José Amaro.
Era tão grande o amor de Josefina Aguiar pela música que, mesmo doente, ela não deixou de tocar, como que tecendo o fundo musical dos seus últimos anos de vida.
Inteligente, culta, bem-humorada, apesar de padecente de câncer e enfisema pulmonar, talvez pressentindo que a indesejada das gentes chegaria poucos dias depois, disse a uma jornalista haver recebido um chamado do céu para tocar harpa e, porque não conhecia o instrumento, não aceitara. Acontece que ela era tão plena de valores, que o Todo-Poderoso mandara pôr no céu um lindo piano, desses de cauda, todo branco, imponente, sonoro, enfim um piano digno do talento de Josefina Aguiar.
“Uma partitura, um piano, uma sala de aula e eu esqueço do mundo”, dizia ela. Já nós, Josefina, mesmo com tantas coisas a serem vistas por aqui, jamais esqueceremos de você.

*Por Marcelo Alcoforado

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