Urbanista e professor da Universidade EAFIT conta como investimentos em mobilidade, educação, parques e comunicação contribuiram para transformar Medellín de cidade mais perigosa do mundo na mais inovadora. Ele também ressalta que as mudanças foram feitas prioritariamente em áreas vulneráveis e que os planos agora incluem o enfrentamento da crise climática.
Juan Sebastian Bustamonte, urbanista e professor da Universidade EAFIT Medellín, é uma das principais vozes do urbanismo social na América Latina. Em entrevista a Rafael Dantas, ele destacou a transformação de Medellín que superou um passado de violência e desigualdade com políticas inovadoras, integração urbana e o fortalecimento da cultura cidadã. Uma inspiração para a capital pernambucana.
Durante visita ao Recife, acompanhado por Murilo Cavalcanti, ex-secretário de Segurança Cidadã, o especialista conheceu o Compaz Eduardo Campos, no Alto Santa Terezinha, e ressaltou a importância de priorizar áreas vulneráveis, promover conexões entre bairros e investir em educação e mobilidade para construir cidades mais equitativas.
Na entrevista ele compartilhou a importância do metrô para a estruturação da cultura cidadã em Medellín e apontou também alguns dos sonhos dessa cidade inovadora, que saiu da posição de mais violenta do mundo para a liderança na recepção de turistas da Colômbia, como um destaque global de inovação.
Qual seria para o senhor o conceito de urbanismo social?
É uma ferramenta para transformar a realidade das pessoas que vivem em lugares em que há grande desigualdade e violência. Na experiência de Medellín, vocês tiveram muitos serviços sociais e a construção de centros comunitários.
Mas esse foi o único caminho para barrar os indicadores de violência?
São quase 30 anos de trabalho. Há um programa do Governo Nacional que começou a ser implementado nos anos 1990, que se chamava Consejería Presidencial (Conselho Presidencial para Reconciliação, Normalização e Reabilitação). Na liderança estava uma mulher, María Ema Mejia. Ela deixou um livro que conta a história de como ela trabalhou na transformação da cidade. É muito interessante porque é possível aplicar a países onde há desigualdade e violência.
A Consejería Presidencial chegava a Medellín, com recursos do Governo Nacional, aos bairros onde havia mais violência para conversar com os jovens, escutá-los, gerar acordos, como parte de um processo de paz. O programa recebeu também uma cooperação alemã que permitiu que esse trabalho de conversar e escutar os jovens, onde há mais desigualdade e violência na cidade, se fortaleça. Isso fez com que desde os anos 1990 e 2000, Medellín tenha 20 anos de trabalho de fortalecimento de organizações de base comunitária.
Quais as descobertas dessa escuta ativa das comunidades?
A capacidade de liderança dos bairros de maior desigualdade e violência é muito alta. Há pessoas que têm capacidades de trabalho e de geração de acordos e espaços de conversação importantes. É um processo de paz de 20 anos. Começaram a ser implementadas estratégias de melhoramento integral dos bairros, como parte de um programa do município de Medellín. Esse programa tem o objetivo de melhorar as condições de acessibilidade e mobilidade nos bairros com maior precariedade, melhoramento das moradias e dos serviços públicos. O programa se chama Primed, Programa Integral de Melhoramento de Bairros Informais de Medellín.
Quais as mudanças implementadas pelo Governo Nacional?
Em 1991, paralelo a isso que estou dizendo, a Constituição da Colômbia sofreu uma mudança. Segundo os especialistas em políticas públicas, temos uma das melhores constituições do mundo. E parte das coisas que levaram a essa transformação da Carta, como fruto de um produto de um país que estava em guerra e que estava procurando como melhorar a situação da violência, que era o mais perigoso do mundo, é descentralizar o poder no país. Isso deu poder a cada município.
Então, a primeira cidade que aproveitou essa mudança na Constituição foi Bogotá. Ela demonstrou ao país que uma cidade pode se transformar de uma maneira radical. Isso começou na gestão de Antanás Mockus, que é o nosso grande professor de cultura cidadã. Depois Henrique Peñalosa, entre outros prefeitos que são inspiradores para pessoas de Medellín, que estavam trabalhando em empresas, ONGs e universidades.
Essa experiência inicial em Bogotá impulsionou Medellín?
Essas pessoas em Medellín entenderam que não iriam mudar a realidade se não entrassem na política. Então, vendo o que estava acontecendo em Bogotá decidiram entrar na política. Esse grupo chegou ao poder em 2004, ficando por dois mandatos.
Um grupo de pessoas que, pela primeira vez, estava na política, todos especialistas em seus temas. Cultura, urbanismo, economia, saúde… todos haviam estudado muito bem a cidade. Sabiam quais eram os problemas, quais eram as oportunidades que haviam. E, durante oito anos, como política pública, o urbanismo social foi implantado. Nos bairros de maior desigualdade e violência estão os maiores investimentos que há em Medellin. Um projeto somando a toda a sociedade, empresas, comunidades, governo e as universidades. Há uma aposta por educação para transformar a cidade no sentido mais amplo.
Na prática, como essa aposta por educação aconteceu?
O professor é a pessoa mais importante da sociedade. O primeiro prefeito é matemático (Mockus) e trabalhou toda a vida na universidade. É um acadêmico. Ele crê profundamente na educação. Seu pai foi arquiteto, um dos melhores da Colômbia. É muito sensível com a arquitetura, muito sensível com o desenho da cidade. Mais que fortalecer os professores, com capacitação, e promover a educação pública, foram criados planos de novos equipamentos educativos para o empreendedorismo, para o esporte, a recreação… foram fortalecidos os equipamentos públicos nos bairros de maior violência.
Foram priorizados os mais pobres para melhorar as condições de moradia e habitação. E temos uma grande obsessão por conectar a cidade. Nossas cidades estão desconectadas. Há desigualdade, mas são fragmentadas entre aquelas que têm acesso a recursos e os que não tem. As comunidades são invisibilizadas e estigmatizadas. Em Medellín aconteceu que essas cidades eram percebidas como dos sicários (assassinos, facínoras), da pobreza e das pessoas ruins. Isso acontece também em várias outras cidades.
Qual o papel das melhorias na mobilidade tiveram nessa transformação?
Temos obsessão por conectar. Aí, aparece o sistema de transporte público massivo. O metrô começa a ser concebido em 1979, sendo Medellín uma cidade muito pequena. O metrô, além de conectar pela primeira vez a cidade, com um sistema de transporte público massivo, gera a cultura cidadã.
O metrô nos ensina que a infraestrutura deve estar acompanhada de cultura. O metrô nos educou. Em Medellín há uma frase que é “Cultura Metrô”. Em qualquer conversa sobre qualquer projeto é normal dizer: “Nos falta incluir a Cultura Metrô”! Tornou-se um significado de cultura cidadã.
Além do sistema de transporte público massivo, com metrô, teleférico, BRT, aparecem ruas que se transformam como espaços públicos, passeios urbanos. E uma grande riqueza que temos na nossa cidade é que temos 4.217 quedas d’águas. Medellín tem áreas nas quais caem águas da parte alta das montanhas em direção aos rios. Bosques, com águas permanentes que descem 5 a 7 quilômetros das montanhas até o rio que está no centro.
Então, os corredores de mobilidade pública, transporte público massivo, os passeios urbanos e os parques lineares acompanhando essas quedas d’águas, são ferramentas para conectar essa cidade que está fragmentada.
É isso que vocês chamam de Projetos Urbanos Integrais?
Sim. Equipamentos, moradia e habitação, melhoramento ambiental e conexão com mobilidade nos espaços públicos são o que em Medellín formaram os projetos urbanos integrais para que o urbanismo social chegue à vida cotidiana das pessoas.
Isso é um pouquinho de como a cidade alcançou esse passo que começa com as políticas públicas institucionais, mudança na Constituição, um trabalho da prefeitura acionando todos os recursos (mobilidade, segurança pública, meio ambiente, transporte, esportes…). Na verdade, todos os recursos da cidade trabalham de maneira articulada com empresas privadas, universidades e comunidades. Isso tudo permitiu a Medellín passar de cidade mais perigosa do mundo a outra coisa que desejávamos que ela fosse.
Além da redução da violência, que outros efeitos o senhor destacaria dessa transformação urbana e social?
Hoje, Medellín é o primeiro destino turístico na Colômbia, à frente de Cartagena e Bogotá. Isso é muito. Eu cresci em uma cidade em guerra. Para nós, um estrangeiro era impensável ver em Medellín. Era uma utopia. Há 25 anos um estrangeiro chegava porque estava perdido. Hoje os turistas ficam no mínimo seis dias em Medellín. Em Cartagena e Bogotá são no máximo seis dias.
Hoje Medellín é o primeiro destino dos nômades digitais do planeta, acima da Cidade do México e Barcelona. Esse é um indicador de que Medellín está no mundo como uma cidade inovadora. Desde o princípio Medellín tinha o objetivo de passar do medo à esperança, hoje é uma cidade completamente distinta, onde os jovens não têm noção da realidade que aconteceu nos anos 1990. É uma cidade, sobretudo, com a possibilidade de gerar muita esperança e também onde há muito amor. É uma cidade que foi capaz de fazer toda essa transformação.
Como a cidade conseguiu manter essa missão com as mudanças políticas?
No Brasil há muitos problemas de descontinuidade de avanços nas transições políticas. Em Medellín há uma cultura de defesa da cidade. Isso porque desde o princípio do Século 20, um grupo de empresários liderava uma organização para promover melhoramentos públicos. Eles começaram a gerar uma narrativa de que Medellín é uma cidade muito bonita, com um clima muito bom, é uma cidade muito próspera.
Isso desde o princípio do Século 20. Há crônicas que estão escritas com essa mensagem que foi repetida desde muitas décadas atrás. Há uma cultura por desejar a cidade e cuidar de Medellín, por valorizá-la. Então, isso faz com que as pessoas da cidade tenham em comum o desejo de querer o melhor para Medellín.
Nessa cultura aparece algo que é outro ponto chave: o empresariado está permanentemente em contato com os governos, desde o princípio do Século 20. Isso faz com que as relações entre a empresa e o governo, que são dois poderes para que a cidade esteja bem, seja uma relação muito forte. A partir de 2004, quando Medellín é governada por um grupo independente, que não era de um partido político tradicional, promoveu a relação entre os diferentes atores. Ele entendia que a única forma de seguir transformando a cidade era manter essa relação estreita.
Os governantes que seguiram em 2011 eram de um partido mais tradicional e deu continuidade. O seguinte é de um partido independente que outra vez manteve a continuidade. Tivemos depois um embate com o governo passado, o pior que passou por Medellín, corrupto, que demonstrou a vulnerabilidade que tem a cidade e que esta articulação pode se romper em um só governo. É a vulnerabilidade que temos em todas as cidades. Hoje voltou a ganhar o prefeito de um mandato anterior, Federico Gutiérrez, buscando o que havia sido desfeito nos últimos quatro anos. Outra vez com a mensagem de que precisamos nos juntar, precisamos seguir recuperando a cidade, precisamos seguir com o mesmo sonho.
Há um engajamento forte da população com a política e as decisões públicas?
Inspirado em Bogotá, o atual prefeito promoveu uma corrente e mostrou a todos os participantes que se nos unirmos sem depender de partido político, todos teremos mais benefícios. Então, tornou-se uma reação que gerou uma cultura política na Colômbia.
Não era normal que as pessoas na Colômbia saíssem de casa para votar. Agora, devido a processos, como os de Bogotá e de Medellín, há cada vez mais pessoas que acreditam na política e que concordam em serem políticos, sem serem políticos tradicionais. Então, finalmente acredito que a transformação da cidade mostrou a todos nós que o caminho é nos articular e trabalharmos juntos para além de um partido político vermelho, verde ou azul.
Você poderia falar do programa “Rehabitar as Montanhas”? O Recife tem muitos morros. Como era esse programa e como ele pode inspirar nossa experiência aqui?
Em 2010, depois de fazer alguns estudos sobre a sustentabilidade da cidade, percebemos em um plano diretor que foi contratado pela Prefeitura de Medellín e pela metrópole, que o principal problema da cidade é a vida e a morte de assentamentos precários que estão em risco devido a deslizamento de terra na periferia fronteira às zonas rural e urbana.
Dados oficiais dizem que 8% da população da região metropolitana, ou seja, 4,5 milhões de habitantes, vive nestas condições. As comunidades dizem-nos que este número pode atingir 20% a 25%, ou seja, muito mais. Num único deslizamento de terra em Medellín morreram 500 pessoas. Temos muita pluviosidade, temos declives elevados e temos pessoas vivendo em assentamentos precários.
Com a ajuda do professor Christian Berman, que na época estava em Harvard, que é arquiteto e paisagista, especialista em áreas de risco, trabalhamos em um projeto sobre como reabilitar a encosta. Nesse trabalho, identificamos claramente onde estava o risco e algumas possíveis soluções. É uma região mais rural, onde há uma população mais camponesa, que tem culturas agrícolas.
Então, a estratégia para esse setor da cidade era diferente do adotado nos Planos Urbanos Integrais?
Entendemos que, mais do que os projetos urbanos integrais – que tinha os parques-bibliotecas, os corredores de mobilidade, os passeios urbanos, os parques lineares – lá a necessidade era trabalhar mais com a natureza, com ferramentas de agronomia, de ecologia. Por exemplo, estruturas biomecânicas, bioengenharia, entre outras coisas.
O governo de 2011 prometeu melhorar a segurança dessas pessoas. E ele nos contratou na universidade, com base na experiência que tínhamos em urbanismo social, para dar as diretrizes desse projeto de governo. Assim, com base no primeiro documento que fizemos com o professor Christian Berman, de Harvard, propusemos o Rehabitar a Montanha. O projeto integrou estratégias e processos para evitar a insegurança nas encostas de Medellín, que se concentram principalmente em reconhecer a liderança e a força das organizações comunitárias para trabalhar em projetos piloto, de pequena escala, associados à estabilização de encostas por meio da bioengenharia, do manejo de águas pluviais, da agricultura para estabilização de encostas, do reflorestamento e da restauração ecológica.
Há dois anos, com o governo alemão, o professor Christian Berman conseguiu recursos , dois milhões de euros para implementar o primeiro projeto piloto. Hoje Medellín tem o primeiro projeto piloto do mundo construído segundo essa lógica, em um bairro precário e de risco. Os alemães trouxeram uma agência aeroespacial que nos permitiu, com satélites, ter informações que ninguém em Medellín possuía para entender o território, o risco, as condições de vulnerabilidade.
Obtivemos estudos de microzoneamento sísmico, muito específicos, que são muito caros e em geral as cidades não os possuem. Trouxeram duas empresas alemãs que implementaram sistemas de alerta precoce com sensores em solo nos Alpes Suíços, além de especialistas em risco e projeto paisagístico para áreas de risco de várias universidades. Estamos fazendo um primeiro projeto-piloto com recursos do governo alemão, com objetivo de prevenir os desastres, deslizamentos de terra e tornar estas pessoas mais resilientes.
Tudo isso é feito com um processo que aprendemos com a organização social do trabalho, com as comunidades. Ouvi-las, gerando acordos, conhecimento técnico com conhecimento da comunidade. Estamos articulando para realizar um projeto que, como disse agora, não foi feito em nenhum lugar do mundo em condições de precariedade e risco.
Gostaria de saber um pouco mais sobre essa “cultura metrô”. Aqui no Recife temos um metrô que enfrenta um processo de crise há alguns anos.
A “cultura metrô” nasce associada à infraestrutura de transporte público. Na época estávamos naquele período de guerra. As pessoas ao entrarem no sistema de transporte (nas estações e trens) recebiam uma série de mensagens básicas comportamentais da cultura cidadã no espaço público. Lições de comportamento urbano que a gente levou para fora do metrô também.
Mas há um precedente: o metrô nos ensinou antes mesmo de existir. Tornou-se uma estratégia que se aplicou em Medellín a todos os projetos. “Existir antes de existir” significa uma narrativa, uma história, em que os comunicadores são muito importantes. A televisão, a rádio, os jornais espalham uma mensagem e começam a convidar-nos a sonhar com o que aquele projeto vai conseguir.
A comunicação, então, contribuiu para a formação cidadã, antes mesmo da inauguração desse metrô?
Quando eu era criança, lembro de ver propagandas na televisão. O metrô ainda não tinha sequer começado a ser construído. Nos vídeos, uma câmera ficava num bairro serrano, na parte baixa. Atrás estava o sol se pondo, então é uma imagem bastante poderosa. Uma menina desce correndo e um pai aparece, eles se abraçam e sai uma mensagem que diz: quando o metrô chegar você terá mais tempo de estar com a família. Então, antes do metrô chegar, Medellín já queria o metrô e quando o metrô chega há mensagens permanentes de educação e de segurança.
O metrô de Medellín é sagrado. No metrô de Medellín, se alguém tirar algo da bolsa para comer, outra pessoa do lado diz: "Lembre-se que você não pode comer aqui". Existem alguns acordos básicos de urbanidade. Se alguém começa a falar asperamente, outra pessoa adverte: "Lembre-se de que você não pode falar rispidamente aqui". É como um comportamento básico que não conhecíamos porque Medellín é uma cidade muito jovem. Todos são ensinamentos que o metrô gerou, em última análise, gerou a cultura cidadã.
Após avançar tanto, quais os planos futuros para a cidade de Medellín?
Neste momento, depois de ter tido essa experiência de urbanismo social e de estar acompanhando a cidade com planejamento e definição de projetos, hoje temos duas crises: climática e social. Já geramos uma experiência em urbanismo social, temos gerado agora uma experiência cada vez maior em urbanismo ambiental. Essas duas ferramentas, o urbanismo social e o urbanismo ambiental, fazendo a articulação, para nós são a prioridade: direito à cidade, direito ao meio ambiente.
Federico Gutiérrez está promovendo dois projetos que acompanhamos desde a universidade. A prioridade é recuperar e tornar acessíveis todos os corredores verdes que temos, todos os córregos que temos, desde a pessoa que vive na situação de maior desigualdade até a pessoa mais rica. Que todos possam acessar os 4.217 córregos, que possam acessar a natureza, que possam respirar ar puro, acessar o espaço público e, acima de tudo, gerar processos de governança colaborativa, onde todos participem, com prioridade aos jovens. Essa é a prioridade que estamos a perseguir neste momento em Medellín.