Lais Duanne: "A Habitação Hoje é Uma Emergência" - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
Lais Duanne: "A habitação hoje é uma emergência"

Revista Algomais

Gerente de operações da TETO conta como a ONG ajuda pessoas que moram em condições precárias a terem uma casa, por meio de mutirões de voluntários e moradores. Também são construídas sedes comunitárias, banheiros públicos, além de viabilizar o acesso à água. Ela fala ainda do trabalho realizado no Recife e com vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul.

Morar em condições precárias significa muito mais do que residir num local que não tenha o mínimo de conforto. Implica também em não ter um CEP que garanta o acesso a políticas públicas como poder matricular os filhos na escola. Ou, ainda, ao voltar do trabalho durante um dia de tempestades, não saber se a casa foi soterrada ou se as roupas e a cama estarão enxutas. Tudo isso provoca um nível de estresse e depressão elevado em moradores submetidos a essa instabilidade.

Esse é o cenário encontrado pelas pessoas que atuam na TETO Brasil, uma ONG que, diante da emergência do problema habitacional, oferece soluções transitórias emergenciais para quem mora de forma insalubre em favelas. No seu método de trabalho, casas são erguidas em mutirão por voluntários e moradores, a partir de modelos e tecnologia desenvolvidos pela organização. Além de habitações, também são construídas sedes, lavatórios e banheiros comunitários. Mais de 25 comunidades foram impactadas no País, mais de 400 projetos de infraestrutura implantados e mais de 5 mil moradias construídas.

Laís Duanne, gerente de operações da TETO Brasil, conversou com Cláudia Santos sobre a atuação da ONG, especialmente no Recife. Também abordou o impacto das mudanças climáticas no agravamento do problema habitacional no País e as ações realizadas para atender vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. 

Você poderia nos contar como surgiu a TETO e quais os propósitos da organização?

A TETO surgiu no Chile, em 1997, quando moradores e voluntários se juntaram para construir uma capela e perceberam que era possível também construir moradia para as pessoas que viviam no território e haviam perdido tudo. A mística da TETO é fazer encontros improváveis, juntar jovens voluntários com moradoras e moradores de territórios hipervunerabilizados para construir inicialmente moradias.

Atualmente, o foco da TETO é em habitabilidade, trazendo soluções para que a existência em territórios que têm direitos negados seja possível e digna. Além de moradia, a organização também faz sedes, lavatórios e banheiros comunitários, sempre seguindo a lógica de unir moradores e voluntários gerando soluções e transformação. 

Qual o perfil dos voluntários?

Hoje não há restrição, o time de voluntários é diverso, atinge dos 16 a 70 anos de idade. Todos podem botar a mão na massa com a TETO, mas há predominância de jovens universitários que também buscam desenvolvimento profissional, como estudantes de engenharia e arquitetura. Eles se sentem atraídos pelo nosso trabalho porque podem usar o conhecimento técnico para transformar a realidade das comunidades em áreas vulnerabilizadas. Muitos de nossos voluntários vivem essa experiência de construir casas sem nunca terem pegado num martelo. São guiados pela nossa metodologia de estar no território e sair com outra perspectiva, querendo construir um Brasil melhor para todos. 

voluntarios

Quais são as soluções oferecidas pela TETO?

Em relação a moradias, no Brasil, atuamos hoje em soluções transitórias emergenciais. É o caso de alguma família, por exemplo, que perdeu o barraco precário onde morava em decorrência da queda de uma árvore ou vive em casas de lona e chão de terra batido. Atuamos nessas emergências constantes retirando famílias do contexto de vulnerabilidade para uma moradia digna. Temos uma cartela de soluções de moradia cuja metodologia de execução vai da mais simples a algumas mais complexas, sempre com a premissa de serem construídas por mãos voluntárias, de forma rápida. Essas Moradias de Emergência são casas mais simples, com o padrão de 18m², que construímos em maior volume geralmente num final de semana. 

Os voluntários, basicamente, derrubam os barracos e constroem casas no lugar. Elas têm duração prevista de 5 a 10 anos, e a perspectiva é tirar os moradores dessa realidade de desespero inicial de moradia para que possam se preocupar com outras questões do cotidiano como procurar um emprego, a educação dos filhos, ter mais qualidade no sono para ir em busca dos seus objetivos no dia seguinte. 

O outro tipo é a Moradia Semente. Ela tende a durar mais de 20 anos devido aos materiais utilizados e vem com banheiro, cozinha e uma sala. Assim, ratificamos que a moradia é a base dos outros direitos. Quando o direito à moradia é negado, há um combo de negação de outros direitos que afeta o todo da existência do cidadão. As famílias que moram em casas que não têm CEP, por exemplo, não conseguem acessar o sistema de saúde pública ou matricular os filhos na escola. 

Além da moradia, temos outras soluções como a sede comunitária, que são espaços com até 72m² usados para encontros, atividades com crianças, distribuição de cestas básicas etc. Geralmente, nos territórios onde fazemos esses centros comunitários, viabilizamos o acesso à água e iluminação nas principais ruas da comunidade a partir de energia solar. Outra solução da TETO são os banheiros comunitários cuja demanda é grande nos territórios onde atuamos. Há comunidades em que poucas famílias têm banheiro em casa. Há outras iniciativas nossas como pontes, parques, praças, que vêm a partir de demandas no território. 

Como é o processo para implantar as soluções e a participação das pessoas beneficiadas nas comunidades? 

teto ong construcao

Nossa metodologia de trabalho tem moradoras e moradores como centro. Quando buscamos novos territórios para atuar, fazemos um mutirão de visitas para conhecer várias comunidades ao mesmo tempo, nós nos aproximamos buscando um match com o perfil dos territórios. Com muita coragem, procuramos territórios hipervulnerabilizados onde, geralmente, as casas são barracos, as famílias não têm acesso a banheiro, por exemplo. Há organizações que escolhem favelas urbanas, outras atuam junto à habitação social, mas a escolha da TETO é em cima dessa urgência. 

Quando vamos conhecer as comunidades, deixamos claro que não vamos dar nada, mas construir juntos, e o relacionamento se constrói a partir da seguinte afirmação: “não viemos aqui dizer o que queremos fazer, viemos descobrir o que podemos fazer junto com vocês”. Então, temos uma tecnologia social chamada mesa de trabalho, que é uma ferramenta usada para enfatizar a participação territorial. Nossos voluntários encontram um grupo na comunidade, de 5 a 10 moradores, para formar essa mesa de trabalho que se reúne nos finais de semana para discutir qual o problema prioritário, que iniciativa vamos fazer juntos. Há várias outras ferramentas que permitem a participação dos moradores. A ideia é que eles se sintam donos, cocriando. 

Como esses projetos são financiados?

A busca por financiamento é complexa, especialmente por causa do contexto em que a TETO escolhe atuar, porque trabalhamos em ocupações com pessoas que estão lutando para ter acesso à moradia, não com invasão. Enquanto organização social, vivemos de doações de pessoas físicas e jurídicas. Há empresas que escolhem participar conosco no que denominamos Voluntariado Corporativo, em que a empresa financia uma ou mais moradias e seus colaboradores vão para o território, pisar na lama, conhecer os moradores, entender aquela realidade e viver um processo de transformação, que não é só para a família que recebe a moradia. 

Há os Amigos da Teto, pessoas físicas que fazem doações recorrentemente, e Empresas Amigas da Teto que escolhem contribuir com nossa atuação em determinado estado brasileiro e nós apresentamos as possibilidades. Quem quiser colaborar, basta entrar no nosso site https://br.techo.org/  e clicar na aba Faça Parte, onde há informações e todas as possibilidades de fazer doações. No site, temos, inclusive, o Presente Solidário, em que as pessoas podem aproveitar datas comemorativas como aniversários e, ao invés de pedir um presente para si, podem pedir doações para a TETO por meio de uma plataforma personalizada. 

Qual o impacto do trabalho da TETO nessas comunidades? Gostaria que você também comentasse a pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas sobre as ações que a organização realizou durante a pandemia.

A pandemia afetou a vida de todos, mas há pessoas afetadas de forma diferente devido ao contexto em que vivem, com direitos negados. Estamos falando de quem vive em territórios onde a casa não comporta a permanência de toda família e o acesso à água não é simples. Na pandemia de Covid, as premissas eram: fique em casa e lave as mãos. Então, a TETO junto com a FGV buscou entender como a pandemia impacta essas famílias. Entrevistamos mais de 500 pessoas em 31 comunidades em todos os estados em que a TETO atua no Brasil. Tivemos inúmeras pessoas falando: “é muito incômodo ficar dentro de casa, porque minha família tem seis pessoas e a casa só tem um cômodo”. Ou seja, o distanciamento social não era possível.

Além disso, 39% das pessoas afirmaram que precisaram sair de casa para trabalhar, viviam num contexto em que o home office não é possível. Na pesquisa, há uma fala muito forte de uma moradora que é: "para a gente, a fome é muito mais perigosa que o vírus”. A TETO também buscou entender qual o impacto da moradia na transformação da vida dessas famílias. Em relação ao nosso trabalho, mesmo a moradia emergencial, uma casa de madeira de 18m², realmente impacta. Há o impacto quantitativo, que é visível quando observamos o antes e o depois de uma casa cujo teto era de lona, não tinha janela, nem piso, por exemplo. Há também impactos invisíveis nas centenas de voluntários que talvez nunca tenham pisado em uma comunidade e saem dali questionando por que aquelas famílias vivem naquela realidade e se o político em quem votaram está preocupado com essa situação. Outro impacto é como a moradia contribui para a redução do estresse diário, por exemplo, o morador sai para trabalhar sabendo que, mesmo que chova muito, sua casa vai estar lá quando retornar, sua cama e roupas estarão secas. 

As relações sociais também são beneficiadas pela nossa atuação pois a moradia da TETO traz confiança pelo trabalho ser em conjunto, melhora o sentimento de solidão porque o morador passa a não ter mais vergonha de chamar o colega do trabalho para tomar um café na sua casa, os coleguinhas do filho podem passar a tarde em casa e brincar juntos. Ouvi relatos de moradores falando: “agora minha filha vai poder vir para cá", “meu neto vai poder me visitar e engatinhar no piso”. Outro impacto positivo é o fortalecimento dos laços de solidariedade, ninguém constrói sua casa só, além dos voluntários, vizinhos e amigos também ajudam. Outro aspecto é que, quando diminuem os níveis de preocupação da urgência com a moradia, também diminui o uso de medicação para depressão e ansiedade. 

Vocês estão no Rio Grande do Sul participando da recuperação do estado, após a tragédia das enchentes do ano passado. Como é realizado esse trabalho? 

Ano passado, quando nos deparamos com essa emergência do Rio Grande do Sul, a TETO entendeu que precisávamos atuar. Até então, não atuávamos no estado, embora saibamos que em todo o Brasil há territórios hipervulnerabilizados. Enquanto, grandes empresas pensavam nas áreas centrais, a TETO questiona: e os territórios hipervulnerabilizados? E as favelas precárias do Rio Grande do Sul? Assim, lançamos uma campanha de doação e articulação com as empresas, desde o ano passado, para assistir os territórios hipervulnerabilizados. 

Chamamos essa campanha de Operação Rio Grande do Sul, atuando, especialmente em construção de sedes comunitárias para atender esses territórios, entendendo que são agentes de mobilização e de recuperação. A comunidade onde iniciamos é o Quilombo do Machado que tem uma sede comunitária numa estrutura física bem deteriorada pela chuva. Essa sede tem algumas estacas de madeira e telhas e eles utilizam, ainda hoje, como lugar para receber doações e famílias desabrigadas. 

A existência de uma sede comunitária para um território se torna quase uma tecnologia para responder àquilo que é preciso. Além disso, esses espaços são potentes para fomentar a cultura e a educação. Também buscamos levar moradias para o Rio Grande do Sul, que é uma demanda muito grande, mas, para isso, também estamos buscando financiamento para conseguir levar uma tipologia que existe na TETO Brasil chamada Moradia Resiliente, fruto de uma parceria com o Bank of América, a partir do entendimento de que as mudanças climáticas afetam as moradias que a TETO também constrói. Ou seja, quais mudanças são necessárias na nossa tipologia de moradia para responder ao calor extremo e à chuva extrema. A ideia é levar essas moradias para lá, que são similares à Moradia Emergencial, mas com um material diferente para atender às famílias que hoje lá estão e demandam por moradia e por essa transformação. Gostaria de destacar que a primeira Moradia Emergencial foi implantada no Recife.

Como as mudanças climáticas vêm afetando a moradia das pessoas mais vulneráveis?

As mudanças climáticas atingem a todos, mas algumas pessoas são atingidas de forma diferente. Nos territórios em que a TETO atua no Recife, por exemplo, há pessoas expostas ao calor, sem conforto térmico. Ou seja, enquanto há pessoas que, em dias quentes, podem abrir janelas ou acessar a praia, há territórios nos quais as janelas nem existem, os materiais usados para construir as paredes e o telhado não foram pensados para isso, então, quando o dia é quente, a sensação térmica é ainda maior nessas casas. 

Quando chove, para esses territórios, significa que tudo pode ser perdido porque a água vai subir quase que na altura do barraco, não existe a possibilidade de retirar os móveis porque o território todo é afetado. Eu ouvi relatos, em uma das comunidades que atuamos, que uma árvore caiu sobre um barraco e a família estava presa porque a casa só possuía uma saída. Então, as mudanças climáticas afetam esses territórios de forma muito mais potente pela falta de estrutura e porque estão localizados em partes da cidade que sofrem ainda mais. 

Temos uma comunidade no Recife chamada Fazendinha, entre Boa Viagem e Imbiribeira, muito afetada pelas chuvas, está perto de um córrego sem tratamento e, quando chove, essa água vai para dentro da comunidade. Isso não acontece em bairros como Graças e Espinheiro. Assim, além das famílias viverem num contexto de negação do direito à moradia, com essas mudanças, está cada vez mais quente ou cada vez mais frio, e esses lugares de hipervulnerabilidade são os menos atendidos. 

Como é a atuação da TETO no Recife, considerada a 16ª cidades mais vulnerável do mundo às mudanças climáticas? Há possibilidades de adaptar as iniciativas do Rio Grande do Sul à capital pernambucana? 

Enchente no Recife PCR 2

Já atuamos em seis comunidades no Recife. Hoje a TETO está presente continuamente em quatro e já construiu dezenas de moradias e soluções na expansão da rede de água. Há o relato de uma idosa que afirmou passar o dia sem beber água porque não estava bem de saúde para buscar fora da comunidade. Essa é a realidade de milhares de pessoas que vivem em assentamentos precários. Também já construímos lavatórios comunitários, no Recife, na época da pandemia. Neste momento estamos construindo uma sede comunitária em um território em Olinda que faz um trabalho incrível mas que não tem uma estrutura física que potencialize isso. 

Sobre as soluções do Rio Grande do Sul, o que a gente tem feito lá não é uma ação dentro da lógica preventiva. Aconteceu um grande desastre e a TETO está entendendo como apoiar esses territórios que estão resistindo e se reconstruindo. As soluções que a Teto tem hoje, especialmente de moradias, tem um potencial absurdo de tentar proteger essas famílias, caso a gente venha a lidar com uma emergência dessa. O Recife está o tempo todo ameaçado pelas águas, é um lugar que não conseguirá lidar bem com um grande transtorno de emergência climática como enchentes e aumento do nível do mar. 

Mas para além de pensar no que pode vir a acontecer é pensar no que já acontece hoje: já existe a emergência. Existem famílias sofrendo muito com o calor, que são afetadas pela chuva. É importante atuar nessa emergência que já existe, a habitação hoje é uma emergência. 

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