Lígia Pereira, nutricionista da Faculdade Pernambucana de Saúde, destaca que comer não é só um ato fisiológico mas, também, envolve componentes afetivos e culturais e que essas características devem ser levadas em conta ao se adotar uma alimentação saudável. Ela também fornece dicas para quem exagerou nas ceias de fim de ano.
Comer aquele bolo delicioso feito pela sua avó ou manter uma alimentação saudável e ficar “de bem com a balança”? Para a nutricionista Lígia Pereira, esse dilema pode ser resolvido, sem que seja preciso eliminar uma das opções: num dia, você come o quitute familiar, sem culpa, e no restante da semana, retorna para sua dieta. Afinal, pertencemos à raça humana e, por isso, a comida também está relacionada à cultura e não se restringe à simples saciedade da fome. “Não nos alimentamos só pela questão fisiológica, mas também pelo desejo, pelo prazer”, esclarece Lígia, que é tutora do curso de Nutrição da FPS (Faculdade Pernambucana de Saúde).
Na verdade, acrescenta a nutricionista, a alimentação é um forte laço que nos une à nossa identidade cultural. Então, como pertencer a um Estado, como Pernambuco, secularmente vinculado à produção açucareira, e eliminar de finitivamente da mesa o bolo de rolo ou de noiva? Lígia reforça ainda que as sociedades mais saudáveis são as que mantêm seus hábitos alimentares.
Nesta entrevista a Cláudia Santos, ela também explica como o fast food estimula um sistema do cérebro de modo a que a pessoa queira cada vez mais esse tipo de alimento, o que torna mais difícil a perda de peso. Lígia Pereira esclarece ainda a relação entre alimentação saudável e saúde mental, além de fornecer dicas preciosas para quem exagerou na bebida e nas comilanças das ceias de fim de ano.
Que efeitos as pessoas sentem no organismo quando exageram comendo e bebendo muito nas ceias de fim de ano?
O corpo é nossa máquina perfeita, ele tem mecanismos regulatórios próprios e, por isso, nosso organismo sempre tenta se autorregular. Nas festas de fim de ano, em que há um certo exagero, ele vai trabalhar nesse sentido. A baixa de energia que sentimos após as comilanças acontece porque o corpo vai direcionar mais energia para fazer a digestão desses alimentos. Nesse período de autorregulação, sentimos alguns sintomas como fadiga, sede, indisposição, enjoo. Em relação ao consumo de álcool, a sede que sentimos na ressaca também tem a ver com a autorregulação. O álcool tem esse efeito que desidrata o organismo.
Após uma semana comendo e bebendo muito, o que se deve fazer para reequilibrar o organismo? Os sucos detox funcionam?
Os sucos funcionam para aumentar a qualidade de ingestão hídrica, o que é muito bom nesta época do ano em que tendemos a ingerir mais bebidas alcoólicas, mais alimentos salgados, porém quem faz o “detox” – como eu disse – é o próprio organismo. Os rins e o fígado, que são órgãos de suma importância, vão fazer essa depuração de impurezas, de substâncias que não são adequadas ao metabolismo. A detoxificação refere-se mais à saúde desses dois órgãos, do que propriamente à alguma substância que ingerimos.
Mas não vamos cair nem no exagero, nem na demonização: os sucos são altamente benéficos. Se exageramos muito na comida e bebida alcoólica, principalmente nesta época superquente, o suco vai oferecer um aporte de frutas, portanto, eles são importantes. Mas para manter o organismo alinhado novamente, é preciso voltar a um alinhamento de forma geral. Então, a recomendação é começar a consumir mais líquidos e voltar a sua rotina, evitar alimentos cujo teor de sal sejam muito grandes, preferir sempre os mais naturais, fazer as refeições completas para recuperar o organismo, consumir mais frutas e verduras para ter esse aporte. A digestão já foi altamente impactada, por isso, precisamos de alimentos mais leves, ou seja, é preciso retomar a rotina com carinho.
Qual a importância da hidratação e quantos litros de água devemos beber ao dia?
Nossa região é muito quente e vivemos dias cada vez mais quentes com essa questão do aquecimento global, então é extremamente importante para o nosso corpo ter mais água. A hidratação vai ajudar nosso metabolismo na digestão. É muito comum haver constipação ou diarreia após esses exageros alimentares e isso tem a ver com a hidratação. Por exemplo, a constipação está muito associada à falta de água e, na diarreia, ocorre uma perda grande de água.
A hidratação vai ajudar a reequilibrar tudo. Por isso, temos que retornar à vida normal tendo bons hábitos e repor a água no organismo de maneira adequada. A quantidade ideal que devemos consumir por dia depende do peso de cada pessoa. Mas estabelecemos a fórmula de 2,5 litros de maneira geral, porque fica fácil. Lembrando que os outros alimentos e bebidas que ingerimos também vão contribuir com esse conteúdo de água.
Os exercícios físicos também podem ser retomados rapidamente? É verdade que quem se exercita regularmente tem mais chances de não ter a saúde tão afetada quando exagera na comida e bebida?
Quem tem a prática de exercício já consolidada tem naturalmente essa tendência de retomar às suas atividades, por ter um gasto energético maior. Portanto, consegue lidar melhor com esses aumentos de volume alimentar e também tem mais disposição. O corpo está mais bem adaptado às mudanças. Mas não se pode extenuar o corpo. Então, pós-ceia de Natal ou Réveillon, deve-se descansar, porque o corpo também precisa de descanso. A nossa tríade de qualidade de vida é manter uma boa alimentação, a prática de exercícios físicos e um bom sono.
Então, assim que der, deve-se retomar os exercícios, mas sem compensar. Pois as compensações são muito maléficas. Se você vai à academia, não precisa aumentar o tempo de treino para compensar a ceia. Vale lembrar que todo ganho de peso é um processo contínuo, não é a ceia de Natal que vai fazer você engordar. A dica é, antes de ir para uma confraternização ou ceias, fazer refeições, porque, quando você vai com fome, não tem senso crítico para escolher os alimentos. Também é natural comer um pouco mais nessas ocasiões em que há comidas diferentes das que consumimos no dia a dia porque não nos alimentamos só pela questão fisiológica, mas pelo desejo, pelo prazer.
Manter uma dieta saudável o restante do ano não é fácil, principalmente diante da falta de tempo, o que é algo perceptível em todas as classes sociais. Quais as dicas para enfrentar essa dificuldade?
Essa dificuldade é muito ligada à nossa forma de vida. O primeiro ponto é discutir a quais políticas alimentares estamos expostos, porque é muito difícil fazer escolhas, no supermercado, quando os produtos ofertados não são adequados. Além disso, o viés da vulnerabilidade econômica está sempre batendo à nossa porta. Se temos um aumento do preço da gasolina, vai impactar nos gêneros alimentícios. A dica é fazer o possível sempre que puder, lembrando que “o almoço nunca é grátis”, ou seja, aquele alimento que já vem temperado, talvez tenha mais tempero do que você colocaria em casa, logo, ao invés de comprar um peito de frango temperado, compre sem tempero e tempere em casa.
Se tem alguma feira perto da sua casa, olhe se os preços lá estão mais em conta. Sei que há a questão do tempo, mas já temos iniciativas de alguns supermercados, de startups inclusive, que ofertam alimentos com preços mais adequados. O ideal é pensar no que é possível dentro de uma alimentação mais natural e sempre lembrar: será que compensa? Se um pacote de biscoito custa R$ 2, por exemplo, analisar: com esse valor o que eu posso comprar de fruta? Quando comemos um pacote de biscoito, voltamos a ter fome mais rápido. Será que, quando se coloca isso na ponta do lápis, consegue-se perceber que a economia financeira também passa por comer alimentos mais naturais, manter uma alimentação mais saudável?
Lembrando, como falei, estamos expostos aos alimentos industrializados e é difícil fugir disso, eles vão entrar na nossa alimentação mas temos que saber fazer escolhas. Tem uma frase do escritor americano Michael Pollan que diz “se sua avó não conhece o alimento, não coma”. Infelizmente, a gente esbarra nessa questão da escala de trabalho, mas devemos pensar que, se eu não fizer escolhas isso vai impactar a minha alimentação.
Congelar alimentos também seria uma boa alternativa?
É uma excelente alternativa para os tubérculos, como macaxeira e inhame, pois quando você chega do trabalho, por exemplo, é mais complicado ter que descascar. Então, congelar é sempre bom, temperar antes é sempre bom. Pode-se preparar porções de feijão antes, congelar e descongelar na hora que precisar. Outra alternativa é, sempre que chegar da feira, limpar as frutas, porque elas vão durar mais tempo na gaveta da geladeira. São atitudes para que você, quando tiver fome, não caia na ideia de comer o que está mais fácil, mais à mão.
Conforme você falou, comer não é só um ato fisiológico, há componentes afetivos e culturais como aquele bolinho feito pela mãe, principalmente em Pernambuco, a terra do açúcar. Como manter uma alimentação saudável sem perder esse componente afetivo?
Esse equilíbrio passa primeiro pelo autoconhecimento de quem somos enquanto povo. Vivemos num mundo do 8 ou 80, ou pode ou não pode, são extremos que, geralmente, nos colocam em situações mais vulneráveis. O primeiro ponto é entender que não há como dissociar alimentação de quem nós somos como um todo. Nosso passado é de economia açucareira, então temos um viés cultural e emocional vinculado a sobremesas, isso é muito forte.
Também temos o passado das casas de farinha, está aí a tapioca, por exemplo. Mas não é preciso abandonar nossos hábitos. Se um dia você vai à casa da sua avó e ela vai servir aquele bolo maravilhoso, você come, sem culpa. E, durante a semana, sua alimentação deve voltar ao normal. As pessoas hoje estão muito vinculadas a esse comer emocional, à ideia dos aplicativos em que acabam pedindo comida sem critério, e se deixam levar por essa vida do excesso de estresse, do isolamento social, como vimos durante a pandemia quando tivemos um consumo muito aumentado de algumas coisas.
Então, é fundamental você saber que não é proibido comer pizza, mas pode pegar uma pizza quando estiver com a família no domingo à noite, por exemplo, e, dessa forma, acontece o equilíbrio. É uma tendência das culturas que se consolidam como mais saudáveis manter os hábitos alimentares vinculados a sua história e não apenas à questão da alimentação saudável.
Ao pensar apenas no que é saudável, muita gente acaba consumindo, às vezes sem necessidade, alimentos que nem fazem parte da sua cultura, como a quinoa, por exemplo.
Pois é. A quinoa é boa? É ótima, mas o preço da quinoa no mercado é exorbitante e, às vezes, posso ter um grão aqui tão acessível e eu não dou valor porque ele se perdeu no tempo. Outro exemplo são as frutas ricas em vitamina C, temos acerola, caju, e as pessoas escolhem a pitaia, que é caríssima. E do ponto de vista mundial, essa ideia do sistema alimentar globalizado traz esses prejuízos, a gente perde essa questão da individualidade. Por exemplo, aqui tão perto, na Paraíba, a gente tem o arroz vermelho, que é riquíssimo em nutrientes. Então precisamos nos conectar novamente às nossas raízes alimentares também.
Em relação ao doce, vários estudos comprovaram alguns malefícios provocados pelos adoçantes dietéticos. Que atitudes devemos ter em relação a eles? E qual tipo de açúcar é menos prejudicial?
Essa é uma questão polêmica de vários níveis. Como tudo no mercado entra para suprir uma necessidade de mercado, então acho que precisamos discutir inclusive esse nosso paladar excessivo para os doces. Qual é a necessidade de todos os líquidos que eu tomo serem extremamente adoçados? É nessa “dor” que entraram os adoçantes, em sua grande maioria derivados sintéticos de petróleo, fabricados pela indústria. E a indicação é para aquelas pessoas que têm alguma doença, alguma patologia que impeça a ingestão de açúcar, como o diabetes ou alguma outra condição.
Infelizmente, isso foi disseminado socialmente como se a vida saudável dependesse do adoçante. Em contrapartida, existe realmente uma questão de que nós brasileiros consumimos muito mais sal e açúcar do que deveríamos. Sobre as classificações do açúcar, o mascavo é o que sofreu menos processamento, então até o sabor dele é mais parecido com o melaço da cana. O demerara passou por um nível de processamento mínimo, o cristal tem um branqueamento e o refinado ainda passou por um processo de quebra. Do ponto de vista de tecnologia dos alimentos, quanto mais bruto, mais nutrientes teremos, então seria o açúcar mascavo aquele detentor. Mas quando a gente analisa do ponto de vista bem técnico, a quantidade de nutrientes é muito pequena. Então, se você se adapta bem ao mascavo, ótimo, mas se está acostumado com o cristal, então, use com moderação.
Além da adição do açúcar nos nossos líquidos, consumimos muitos produtos que vêm com açúcar adicionado, industrializados, e essa é a nossa grande questão. Então, se você não tem diabetes, você pode consumir o açúcar e em relação a essa questão do processamento, fica muito mais a critério de sabor. Mas deve-se atentar realmente à questão da quantidade de açúcar, porque é isso que tem feito muita diferença.
Alguns estudos relacionam a dieta equilibrada à saúde mental. Você poderia falar um pouco a respeito?
Estamos vivendo cada vez mais um boom de saúde mental e uma transição epidemiológica. Nesse sentido, há duas questões. Uma é que a alimentação saudável, mais rica em nutrientes, com alimentos naturais, com mais fibras, pode dar mais subsídio ao funcionamento cerebral e ajudar nas patologias. O outro ponto é o sofrimento mental que a realização de algumas dietas restritivas ou a própria falta de alimentação, nos casos de vulnerabilidade social, podem trazer.
Sobre os produtos fast food, por exemplo, há uma vinculação ao prazer. Mas quando comemos esses alimentos, acabamos ativando a área do sistema dopaminérgico que vai ficar como se fosse hipersensibilizada. Então cada vez mais a pessoa vai precisar comer mais alimentos hiperpalatáveis para suprir essa necessidade que ela tem. Isso está relacionado à discussão, não só da obesidade, mas à questão de estar sempre com essa vinculação do prazer, que também é uma discussão em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, ao uso de telas, à necessidade de excessos.
Isso se liga muito à forma como a gente se alimenta hoje e não em relação ao equilíbrio corporal, como já falamos. Então uma alimentação rica em industrializados vai te suprir de energia, de calorias, mas não vai suprir de nutrientes que são essenciais, por exemplo, para a formação de neurônios e isso vai ter impacto. Essa é uma discussão ampla e há também outras questões que estamos discutindo com frequência: será que perder a nossa cultura, perder nossas raízes, também não tem impacto na nossa saúde emocional? Fazer com que todo mundo tenha medo de comer, medo excessivo do ganho de peso, também não causa um sofrimento mental muito grande?