Nem só da precisão no manuseio do bisturi ou da indicação certeira do remédio se faz bom médico. Salomão Kelner (1916-2003), pesquisador e professor de medicina, referência em cirurgia abdominal e fundador do Mestrado em Cirurgia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aprendeu e ensinou que doença se cura com sensibilidade ético-social. Era acima de tudo um humanista. Assim fez amigos, anônimos e ilustres, como o ex-governador Miguel Arraes, o ex-prefeito Pelópidas Silveira, e o professor e médico Fernando Figueira, fundador do Imip.
“Nós temos especialistas demais (…) O Brasil não deveria permitir especialista precoce. Não se pode uniformizar a medicina”, disse o médico certa vez, durante uma entrevista, reproduzida no livro Salomão Kelner - Um Marco na Medicina Pernambucana, editado pela Cepe e organizado pelos também médicos Gilda Kelner e Djalma Agripino de Melo Filho. O perfil biográfico será lançado dia 23 de maio, às 19, no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe).
Na obra, o leitor conhece a trajetória acadêmica e científica, narrada em entrevistas e textos escritos pelo próprio Salomão, além de 28 depoimentos de amigos, familiares e discípulos. “A história de meu pai merece registro especial por sua preocupação com as camadas desfavorecidas da sociedade”, defende a psicanalista Gilda, 74 anos, que levou dois anos para reunir fotografias, documentos e uma linha do tempo que constam no livro. Tudo isso ao lado de Djalma, especialista em saúde pública e epidemiologia, além de jornalista e apaixonado pela história da medicina. Djalma, 59, conta que Salomão foi seu professor, nos anos 1980. “Naquela época já pude constatar sua sabedoria e seu compromisso com o ensino público de qualidade”, recorda. Foi justamente essa luta em defesa da universidade pública que aproximou Djalma da família Kelner.
O reconhecimento veio em vida com homenagens importantes: recebeu a Medalha Maciel Monteiro, considerada a mais alta distinção da Sociedade de Medicina de Pernambuco; e o título de Cidadão do Recife. Argentino naturalizado brasileiro desde os 2 anos de idade, Salomão se formou em 1940 na então Faculdade de Medicina, onde enfrentou o antissemitismo por ser judeu. No início da carreira, seus pares o restringiram a exercer o ofício apenas no interior do Estado.
Começou a ensinar em 1945 na faculdade, e de lá saiu apenas 41 anos depois. Auto-declarado socialista, enfrentou a Ditadura de 1964. Não se acovardou diante do golpe e da prisão de Arraes, então detido no quartel do Corpo de Bombeiros e, no dia do Natal, foi até lá para presentear o amigo com uma tela do pintor Cícero Dias. Não pôde ter com o político, mas a notícia da visita chegou até Arraes, que a recebeu com alegria. Em seguida, enviou uma carta ao amigo em agradecimento.
Salomão e a esposa, a ginecologista e obstetra Miriam Ludmer, 98, chegaram a ser presos na época do golpe militar. Antes de 1964, o médico se engajou nas campanhas de Juscelino Kubitscheck (1955), Miguel Arraes (1962) e Pelópidas Silveira (1963). Mas a militância vem desde o movimento estudantil. Apesar de não apoiar a luta armada, sempre foi um ferrenho defensor da luta pela democracia. “Sabe quais são as três prioridades do Brasil? Primeiro lugar, a educação; segundo lugar, a educação; terceiro lugar, a educação”, dizia.
Gilda conta que, mesmo nos tempos de censura, o pai ajudou muitos estudantes, inclusive financeiramente. “Mesmo sob todas as censuras da época, quando dava aulas — não é que
fizesse discursos políticos – estimulava os alunos a valorizar a relação médico-paciente e ter uma visão mais abrangente do mundo, em contraste com a visão tubular, que só via o aspecto técnico. Sugeria que era importante ler literatura e assistir a manifestações artísticas”, relata a filha.
Serviço
Lançamento do livro Salomão Kelner - Um Marco na Medicina Pernambucana (Cepe Editora)
Quando: 23 de maio, às 19h
Onde: Museu do Estado de Pernambuco (Av. Rui Barbosa, 960 - Graças)