Livro introduz o tema da psicologia afrocentrada no debate acadêmico brasileiro – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Livro introduz o tema da psicologia afrocentrada no debate acadêmico brasileiro

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José Tadeu Arantes  – A Association of Black Psychologists (Associação de Psicólogos Negros) foi fundada em San Francisco, Califórnia, em 1968, no contexto da comoção causada pelo assassinato do pastor Martin Luther King Jr. (1929-1968) e do crescimento do movimento negro nos Estados Unidos. Tendo por objetivo inicial ajudar os psicólogos negros a se firmarem profissionalmente, em um país marcado pela discriminação racial, e fornecer atendimento psicológico para a comunidade negra, a associação evoluiu para a formulação do conceito de “psicologia negra” ou “psicologia afrocentrada” – convencidos os seus dirigentes de que uma psicologia criada por homens brancos, de classe média e cultura europeia não dava conta das particularidades da população afrodescendente.

A ideia, de mais de 50 anos, criou raízes nos Estados Unidos e resultou em um grande número de estudos, artigos, livros e clínicas especializadas. No Brasil, por outro lado, permanece praticamente desconhecida.

Um livro recém-publicado trouxe o tema para o debate acadêmico brasileiro. Trata-se de Libertação, descolonização e africanização da psicologia: breve introdução à psicologia africana, de Simone Gibran Nogueira, publicado com apoio da FAPESP.

Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com estágio de pesquisa na Georgia State University, nos Estados Unidos, Nogueira fez seu pós-doutorado em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMP), com bolsa da FAPESP.

Foi sua trajetória pessoal que a levou ao encontro do tema. Branca, de ascendência libanesa, estabeleceu contato com a cultura de origem africana por meio da capoeira angola. “Durante minha graduação, tornei-me capoeirista em um grupo muito tradicional, a Academia João Pequeno de Pastinha. Isso contribuiu para minha saúde física, mental e espiritual e também para uma compreensão crítica dos processos históricos e políticos do país. Tanto que fiz meu mestrado enfocando os processos educativos da capoeira angola e de como eles influenciam a intersubjetividade dos praticantes. Foi minha orientadora de mestrado, Petronilha Silva, quem me alertou para o débito da psicologia em relação à população negra do Brasil e me forneceu referências teóricas sobre a psicologia afrocentrada”, disse Nogueira à Agência FAPESP.

A psicologia afrocentrada tornou-se objeto de sua pesquisa de doutorado. A pesquisadora enfocou as discussões epistemológicas travadas há meio século nos Estados Unidos e no Caribe. Mas sempre buscando saber se essa construção servia para a realidade brasileira e cotejando as formulações teóricas com experiências vividas por ela e outros praticantes da capoeira angola. “Ao mesmo tempo, aprofundei conhecimentos e práticas de outras tradições afro-brasileiras com as quais fui entrando em contato a partir da capoeira. Hoje, sou professora de capoeira angola da Academia João Pequeno de Pastinha, formada por Mestre Pé de Chumbo, e makota – “zeladora de Orixás” – de Candomblé do Ilê Asè Omò Ayé, dirigido pela yalorixá Nadia Santana”, afirmou.

“Essas vivências me fizeram perceber que a proposta de libertação, descolonização e africanização da psicologia fazia sentido no contexto das práticas culturais afro-brasileiras. Por outro lado, essa proposta se insere e dialoga com uma vertente crítica maior, protagonizada pela chamada Escola de São Paulo, pelos estudos latino-americanos de psicologia e por outros fóruns internacionais, de questionamento dos modelos hegemônicos europeus e norte-americanos de psicologia social”, explicou.

A ideia subjacente a essa “vertente crítica” é a de que essa psicologia hegemônica serviu, historicamente, como instrumento para colonizar as mentes e adaptar as pessoas a uma ordem social opressiva. “Não quer dizer que não tenha havido contribuições divergentes importantes. Mas a tônica geral foi essa”, disse Nogueira.

Para a pesquisadora, é preciso ir além desse movimento crítico. “Como eu escrevi no livro, descolonizar é olhar criticamente o eurocentrismo, mas também buscar outras fontes de conhecimentos e práticas. A africana é uma delas, porém, não é a única. Existem também fontes asiáticas, ameríndias, aborígenes etc. São fontes milenares, que, no entanto, podemos chamar de inovadoras, porque ainda não ganharam seu espaço na academia”, disse.

Segundo Nogueira, apesar de séculos de ataques às culturas milenares de povos considerados não-brancos, ainda sim, boa parte desses povos mantém suas tradições vivas e renovadas no século 21. “Um exemplo é a falácia que aprendíamos na escola de que povos indígenas no Brasil foram dizimados. Sabemos hoje que há mais de 200 línguas sendo faladas por eles no Brasil. Uma pergunta importante de pesquisa é justamente essa: como princípios e práticas antigas foram mantidas nos diferentes tempos e espaços até hoje, apesar das ações de extermínio?”

Comunalidades regionais

Na avaliação da pesquisadora, uma psicologia afrocentrada ainda está por ser construída no Brasil. A experiência iniciada nos Estados Unidos pela Association of Black Psychologists seria uma fonte de inspiração, mas não um modelo a ser copiado. Quais seriam os componentes mínimos que uma psicologia precisaria incorporar para ser entendida como “afrocentrada”?

“Existem milhares de culturas africanas. Mas os estudos com os quais eu dialogo, que vêm desde as contribuições pioneiras do físico, antropólogo e historiador senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), procuraram identificar elementos comuns a essas várias culturas. Wade Nobles, professor emérito da San Francisco State University (Estados Unidos) e membro-fundador da Association of Black Psychologists, sustentou que, na África, as numerosas diferenças tribais foram menos importantes do que aquilo que ele chamou de ‘comunalidades’. Essas comunalidades regionais seriam sustentadas por conjuntos de crenças orientadoras derivadas de quatro grandes troncos linguístico-culturais: Afro-asiático, Nilo-subsaariano, Níger-Congo e Khoisan”, disse Nogueira.

“Os africanos trazidos à força para as Américas no período colonial eram principalmente da grande região linguístico-cultural Níger-Congo. E os povos que comphttp://portal.idireto.com/wp-content/uploads/2016/11/img_85201463.jpgam a diáspora africana nas Américas trouxeram consigo as crenças e conhecimentos oriundos desse tronco. Na perspectiva Níger-Congo, a compreensão do ser humano deve considerar pelo menos três dimensões coexistentes: a física, a mental e a espiritual. Em certas práticas tradicionais podem ser consideradas inclusive outras dimensões. Mas pelo menos as três precisam ser levadas em conta. E isso já é um grande diferencial em relação às psicologias de origem europeia ou norte-americana, que trabalham mais com a dimensão mental. A dimensão corporal ainda é pouco trabalhada e a existência de uma dimensão espiritual é bastante rejeitada. E vista até mesmo como um tabu pela academia”, afirmou.

Além dessas três dimensões, há, no pensamento africano, uma forte ênfase em relação à comunidade. “A pessoa humana só pode ser entendida no contexto da comunidade à qual pertence – sendo que essa comunidade é composta pelos viventes; pelos que já morreram [antepassados]; e pelos que ainda vão nascer. A noção de comunidade é estendida. Então, em vez do enfoque no ‘eu’, no ‘ego’, o que melhor caracterizaria o sujeito seria a ideia de ‘nós’. E o ‘nós’ é essa comunidade estendida, acessada por meio do ritual. É um grande desafio integrar tudo isso em projeto de prática psicológica. Na pesquisa que resultou no livro, eu me ative às questões epistemológicas. Agora, quero encarar esse desafio”, finalizou Nogueira.

Libertação, descolonização e africanização da psicologia: breve introdução à psicologia africana
Autora: Simone Gibran Nogueira
Editora: Edufscar
Ano: 2019
Páginas: 134
Preço: R$25,60
Mais informações: www.edufscar.com.br/farol/edufscar/produto/libertacao-descolonizacao-e-africanizacao-da-psicologia-breve-introducao-a-psicologia-africana/1115504/

| Agência FAPESP

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