A campeã do Carnaval carioca de 2024 leva para a avenida a história de João Batista, um líder quilombola que passou a ser cultuado como entidade afro-indígena nos terreiros de Jurema. O historiador João Monteiro, nesta entrevista, explica quem foi esse personagem e diz ter esperança de que ele possa ser mais conhecido como tema de enredo da escola de samba.
Quando a Unidos do Viradouro entrar na Marquês de Sapucaí, neste ano, vai apresentar uma ala composta por cerca de 70 pessoas de Pernambuco. São 35 integrantes do Catimbó de Jurema, além de professores, ativistas, indígenas, artistas e brincantes. Elas vão contribuir com a campeã do Carnaval Carioca de 2024 para levar ao sambódromo o enredo Malunguinho: o Mensageiro de Três Mundos, que conta a história de João Batista, líder do Quilombo do Catucá, situado entre a Região Metropolitana do Recife e a Zona da Mata Norte. Conhecido como Malunguinho, ele hoje é cultuado nos terreiros como uma entidade afro-indígena.
E foi somente assim que permaneceu conhecido durante muito tempo, até que o historiador Marcus Carvalho, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), numa pesquisa de pós-doutorado, mostrou Malunguinho com um personagem histórico verídico, que no Século 19 lutou contra a escravidão e foi perseguido. O trabalho acadêmico chamou a atenção do historiador João Monteiro, que criou um grupo de estudo aproximando pesquisadores e juremeiros para unir seus conhecimentos sobre o assunto.
Monteiro tem auxiliado o carnavalesco Tarcísio Zanon, da escola de samba de Niterói, nas pesquisas sobre Malunguinho e no contato com os terreiros de Jurema. Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele fala vida de João Batista, das dificuldades de obter documentação sobre ele e da discriminação sofrida pelas religiões de matriz africana e indígena. Técnico em Educação Étnico-Racial da Secretaria de Educação do Estado, ex-rei do Maracatu Nação Sol Brilhante, o historiador ressalta a importância do resgate de João Batista proporcionado pela Unidos do Viradouro e revela o desejo de vê-lo como um personagem histórico estudado em sala de aula. “Este é um bom momento para o Estado rever, no seu currículo, a história do povo preto e fazer essa inclusão de Malunguinho”.
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Quem foi João Batista, o Malunguinho? E qual o significado desse termo?
Marcus Carvalho (professor de história da UFPE) e um outro professor americano registram como sendo malungo um termo comum que os escravos usavam para quem chegasse aqui no mesmo navio. Ou seja, malungos são companheiros. O “Inho” é um termo do português de Portugal conhecido como heurístico, que é de grandeza. Então, Malunguinho seria um grande amigo. E Malunguinho também possui outras significações que levam a crer que seria um termo usado para identificar uma entidade dos bantus, que seria comparada a Exu. Mas há outros significados que ficaram no imaginário coletivo, como a fuligem que resulta da queima da cana-de-açúcar, que muita gente chama de Malunguinho.
Quanto a João Batista, infelizmente, a história do povo negro no Brasil tem um abismo profundo porque queimaram muita documentação e era comum as famílias não fazerem registros. Todo o registro que se tem de Malunguinho e de muitos outros heróis excluídos de Pernambuco é a documentação da polícia, que não o via como um preto que estava lutando pela liberdade. Naquela época, ele era visto como marginal, porque queimou muitos engenhos, abriu muitas senzalas para libertar as pessoas escravizadas.
A história de Malunguinho é extensa, vai de 1817 a 1835. Malunguinho não era só uma pessoa, houve mais de uma liderança que era chamada de Malunguinho. João Batista foi o último dos Malunguinhos que tiveram o registro documental. Antes dele, existiram João Bamba e João Pataca. Em 1828 surgiu um boato de que Malunguinho iria botar fogo no Recife e criou-se o temor entre as pessoas.
Henry Koster (senhor de engenho e cronista luso-brasileiro) e outros visitantes que chegaram aqui, registraram que tinham a impressão de que o Recife era uma África, de tanto preto que havia, e isso causava temor porque eles sabiam que se aqueles negros se juntassem, boa coisa não ia dar. Então, os senhores de engenho viviam plenamente com temor de alguma insurgência. No período da morte de Malunguinho, houve o levante dos Malês, na Bahia, houve o levante em Aracaju e a Revolução do Haiti. Assim, se disseminava e acendia uma chama de luta, de revolução também aqui.
Há um documento comunicando que sua morte foi no dia 18 de setembro de 1835 em Maricota, atual Abreu e Lima. João Batista é o último Malunguinho registrado pela polícia, que achou ter exterminado o seu quilombo após sua morte, mas alguns documentos mostram que houve levantes posteriores. Ou seja, ataques dos negros ao povo da localidade, impedindo, inclusive, uma tentativa de colonização alemã na região de Abreu e Lima. Isso denota que o quilombo não morreu junto com João Batista, ele foi apenas enfraquecido.
Onde estava localizado o Quilombo de Catucá liderado por Malunguinho?
Na verdade, havia uma rede de quilombos que começava no bairro da Linha do Tiro, Dois Unidos e ia pelas matas até Goiana. Todas essas cidades, Paulista, Igarassu, Itapissuma, Goiana, Olinda eram espaço da rede de quilombos de Malunguinho. Inclusive, há documentos que registram ataques feitos por grupos dessa rede majoritariamente formados por mulheres, como em Sapucaia, um bairro entre Olinda e o Recife. Assim, um grupo de mulheres ligadas a Malunguinho atacava transeuntes da estrada, como um “Robin Hood” local.
Mas, na verdade, a ideia de quilombo foi ressignificada aqui no Brasil. Originalmente, principalmente em Angola e no Congo, quilombo era um espaço de formação no meio da mata, aonde os jovens iam para aprender a caçar, a administrar, aprender tudo que o precisava para ser um grande guerreiro. E aqui eles transferiram o formato de quilombo porque as matas de Pernambuco eram muito similares às de lá.
Havia uma lei, no Império, proibindo a organização de grupos nas matas. Assim, cinco negros reunidos com tapera e pilão já era considerado quilombo. A Corte Portuguesa caçava esses grupos, tanto que várias estradas que há hoje entre o Recife, Aldeia, São Lourenço foram abertas naquela época para caçar Malunguinho. Os portugueses não sabiam adentrar essas matas, por isso a maioria dos nossos quilombos, hoje em dia, estão em áreas de difícil acesso.
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Malunguinho é contemporâneo de revoluções pernambucanas como a Confederação do Equador. Esses movimentos influenciaram a luta nos quilombos?
As elites revolucionárias lutavam pelos princípios da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Mas, nesta luta, a liberdade dos negros fazia parte, mas não era prioridade. A prioridade era libertar Pernambuco do jugo dos portugueses e transformá-lo num país, como aconteceu, mesmo por pouco tempo. Então, a relação dos negros com essa elite não é muito bem definida, ambos lutavam por liberdade mas o conceito de liberdade de um era totalmente diferente do outro.
Com a deflagração desses movimentos, as elites políticas estavam brigando entre si, o que as deixou mais enfraquecidas. Os pretos se aproveitaram dessa situação que favoreceu a organização das redes de quilombos.
Segundo a comunicação da Unidos da Viradouro, Malunguinho ao ter se ferido num confronto para libertar escravizados de uma senzala, acaba indo para mata onde indígenas tratam dele com ervas e João Batista acaba tendo contato com a Jurema. Você poderia explicar esse episódio?
Uma coisa é a história que a gente conta, outra coisa é essa história vivenciada dentro dos terreiros, que foi sendo reproduzida posteriormente ao encantamento de Malunguinho, e uma outra coisa é a carnavalização disso tudo. A Jurema é indígena. Foram encontrados dois sítios arqueológicos de índios potiguaras e de tabajaras na região onde era o Quilombo do Catucá, que hoje é toda a divisa entre Aldeia, o Recife, Paulista, Araçoiaba, Camaragibe e São Lourenço e que vai até Goiana. Há documentos antigos, do Século 17, que fazem referência à Jurema como sendo apenas um alucinógeno, mas, na verdade, ela é um culto específico dos encantados indígenas.
O registro mais precioso que temos de Malunguinho, além dos registros policiais, são os registos orais que estão vivos nos quase dois mil Terreiros de Jurema que existem no Recife e região metropolitana onde outrora foi o Quilombo de Catucá. Eles têm um ritual, há mais de 115 cânticos repetidos por gerações que expressam Malunguinho.
Então, Tarcísio Zanon [carnavalesco da Viradouro], ao colocar essa história na avenida, busca nuances de ligação entre Mulanguinho e a Jurema. Malunguinho é o patrono da Jurema. O enredo da Unidos da Viradouro, tem como título Malunguinho, Mensageiro de Três Mundos. No culto da Jurema, existem três visões de mundo e Malunguinho é um ser espiritual que permeia esses três: como Exu, como caboclo, que é o mundo das matas, e como mestre, que é o mundo da ciência.
Assim, existe o Catimbó de Jurema, que é um culto presente no Recife e em toda região metropolitana da Mata Norte do Estado. Ou seja, o Catimbó se apropriou do culto da Jurema, como se apropriou de elementos africanos, de elementos da magia europeia e perpassa esses imaginários todos. Isso porque, a Jurema está ligada aos indígenas, aos encantados e ao cuidado com a saúde. O Catimbó, na verdade, é como se fossem as UPAs do interior, das regiões mais longínquas da cidade, porque as pessoas, naquela época e ainda hoje, buscam os juremeiros, as rezadeiras para curar as mais variadas doenças. Essas rezadeiras conseguiram acumular um grande conhecimento em torno dessas ervas.
O Catimbó ainda está muito vivo, ainda há muitos rezadores, principalmente na linha e do Recife a Goiana. Mas a diabolização desses cultos foi tão forte que as pessoas se fecharam, ainda têm muito problema de assumir essa ligação por medo da intolerância, principalmente neste momento que estamos vivendo.
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Qual a importância do enredo da Unidos do Viradouro para a reparação histórica de João Batista?
Na historiografia pernambucana, há um abismo grande sobre as lideranças negras. Há pouquíssimos heróis negros sendo trabalhados em sala de aula. Na verdade, não se fala de Malunguinho ainda, nem no ensino fundamental, nem no médio e muito menos na universidade. Este é um bom momento para o Estado rever, no seu currículo, a história do povo preto e fazer essa inclusão da história de Malunguinho. Eu mesmo só conhecia o Malunguinho como entidade e não como personagem histórico. Quando o professor Marcus Carvalho estava fazendo sua pesquisa do pós-doutoramento com um capítulo que tratava sobre Malunguinho, me chamou muita atenção.
Quando trabalhava no Arquivo Público, tive a ideia de criar um grupo de estudo para trazer os pesquisadores e o povo de terreiro para dentro do Arquivo e unir essas histórias. Passamos uns três anos fazendo estudos com as comunidades de terreiro. Assim, elas começaram a atinar que aquilo que gerações cultuavam era fruto de uma história verídica, não fazia parte do imaginário somente. Isso fortaleceu muito as comunidades porque, no universo das religiões de matriz africana e indígena, o Catimbó é o mais discriminado.
Essa mobilização que começou no Arquivo Público produziu muitas dissertações de mestrado, TCC de graduação,alguns doutorados. O Estado assumiu essa pauta quando assinou o Estatuto da Igualdade Racial, no início dessa gestão, mas a pauta, na educação, ainda não foi assumida.
A Viradouro chega no momento certeiro de trazer à luz essa história, porque somos carentes dessa referência de herói. Ela resgata esse personagem Malunguinho para o povo pernambucano, que não o conhece. Com a escola de samba, a história vai chegar ao grande público, porque são 300 países focados no desfile, 155 emissoras de TV do mundo todo. No dia que a sinopse do enredo foi lançada, em 25 de maio de 2024, Malunguinho foi o nome mais buscado na internet. O samba enredo já foi ouvido por mais de um milhão de pessoas, está sendo muito bem aceito, embora ainda haja reações ao termo Catimbó, porque ainda é muito diabolizado e há falta de informação.
A partir do enredo e da comissão que estamos criando agora, vai ser lançada uma agenda de atividades em torno dos 190 anos do martírio de Malunguinho, em 18 de setembro. Assim, a Viradouro vai deixar a informação carnavalizada e a comissão vai decupar tudo e fazer seminários, interações, para apresentar Malunguinho academicamente, trazê-lo para a questão pedagógica, educacional. A ideia é tratá-lo como um mártir brasileiro no mesmo patamar de Zumbi e Frei Caneca, enquanto um ser histórico para além do culto religioso.
E como vem sendo realizada essa colaboração com a Unidos do Viradouro?
Desde dezembro de 2023, a equipe do carnavalesco vem acessando documentários, dissertações de mestrado, TCCs. Fui identificado por essa equipe e organizamos uma imersão com os terreiros. Desde abril do ano passado, eu e um grupo de 70 pessoas, entre juremeiros, artistas e integrantes do movimento negro, do movimento social, estamos colaborando. Consegui articular nove terreiros que, por sua vez, fizeram a articulação com outros terreiros do entorno.
Depois que foi concluída a ideia do enredo, partimos para o samba enredo. Além de participar desse processo, as pessoas dos terreiros também vão desfilar. Haverá uma ala específica, representando a Jurema. São quase 40 juremeiras e juremeiros na ala de encerramento do desfile da escola, que é a mais importante, a culminância do enredo de Malunguinho.
Além disso, a Viradouro solicitou uma seleção com artistas pernambucanos para fazer a identidade visual do enredo. Ao invés de artistas, sugeri um concurso com alunos do ensino fundamental e médio da rede pública da GRE MetroNorte (Gerência Regional de Educação – Metropolitana Norte), localizada onde outrora foi o quilombo. Eu havia identificado um salão de artes, que aconteceu lá há alguns anos, com quadros muito lindos produzidos pelos alunos. A Viradouro comprou a ideia, e Bruna Félix que é estudante da escola Argentina Castelo Branco, localizada em Olinda, conseguiu ter o olhar que o Tarcísio Zanon pediu com a paleta de cores, o formato, o traço e, assim, a logomarca das camisas, a bandeira, todo o marketing da Viradouro neste ano ganhou o mundo e saiu de Olinda.
O senhor também participa de outro projeto que é o DNA dos Povos Tradicionais. O que é esse projeto?
Ele visa pesquisar a origem genética dos povos e comunidades tradicionais, possibilitando o desdobramento, a partir dos resultados obtidos. Assim, vamos testar os mais velhos de 70 anos das comunidades quilombolas e, a partir daí, ter uma ideia de como mapear o genoma genético delas e saber quais as perspectivas de doenças que possam ter e qual a etnia da sua origem ancestral. Além das comunidades, vamos fazer também das lideranças negras de Pernambuco.