Mariana Zerbone: “As pandemias são marcos nas mudanças urbanas”

A pandemia expôs problemas críticos nacionais, como a desigualdade social, e impôs ao mundo uma redução de velocidade que fez muito bem ao meio ambiente e mostrou que é possível fazer um esforço maior em prol da sustentabilidade do nosso ecossistema global. Sobre esses aspectos e outras lições urbanas, ambientais e econômicas do “furacão mundial” que está sendo a Covid-19, conversamos com Mariana Zerbone, que é doutora em geografia, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e editora gerente da Revista Científica Rural & Urbano. Ela defende que para que o “novo normal” se estabeleça, muitas mudanças devem acontecer no planejamento das cidades e no modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil e pelo mundo.
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Quais as principais mudanças que as cidades deveriam promover nesse cenário pós-Covid 19, levando em consideração todo trauma vivido nesses meses de maior crise e diante da perspectiva de enfrentarmos novas ondas dela ou mesmo o surgimento de outras pandemias?

O que se percebe é que as pandemias são marcos nas mudanças urbanas ao longo da história. As grandes reformas do final do século XIX e início do século XX tiveram as mazelas urbanas como justificativas para grandes mudanças nos nas formas e nos conteúdos das cidades. O que esperar das cidades pós pandemia em pleno século XXI? O que espera necessariamente não é o que vai acontecer, porém, podemos destacar, dentre tantos, alguns pontos que precisam mudar para que tenhamos cidades como melhores condições de habitabilidade, principalmente se pensando em cidades periféricas como Recife: 1. Diminuição da Desigualdade Socioeconômica 2. Melhores condições de moradia e saneamento 3. Mais espaços livres públicos.

A diminuição da desigualdade socioeconômica deveria ser a principal ação tomada após uma crise desta magnitude, contudo sabemos que a redução da desigualdade está atrelada a ruptura de uma estrutura fruto de um processo que se perpetua, fruto da desigualdade socioeconômica estão os problemas sanitários, a falta de acesso ao saneamento básico potencializa qualquer pandemia, e com isso ficou evidente a necessidade de investimento em abastecimento de água, sistema de esgoto e coleta de lixo como ações prioritárias, com ou sem pandemia. É inadmissível que em pleno século XXI ainda existam pessoas que são privadas do acesso a saneamento básico, esta é a condição mínima para a cidadania.

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Quais foram as principais transformações urbanas em outros marcos da história?
No final do século XIX e início do século XX a criação de espaços de lazer para a classe trabalhadora, como os parques de vizinhança, modificou a estrutura urbana de muitas cidades na Europa e nos Estados Unidos, e esses foram criadas com o intuito de diminuir a insalubridade dos espaços urbanos. Contudo no final do século XX, na maioria das metrópoles brasileiras, os espaços livres públicos, como praças e parques, foram perdendo sua importância e sendo substituídos por espaços fechados climatizados, como os shoppings centers, como o principal espaço de consumo e lazer. Porém, o que se observa é que para que se realize o “novo normal” a retomada da utilização de espaços abertos, sejam eles públicos ou privados (praças, parques, restaurantes, feiras, mercados, lojas), será uma tendência, e talvez a principal mudança no cotidiano dos habitantes das metrópoles, mas para que isso se mantenha como padrão tem que haver uma atenção para a segurança pública, acessibilidade e mobilidade urbana.

Espaços públicos abertos deverão ganhar maior relevância nas cidades, segundo Zerbone. Na imagem, o Jardim do Baobá. Foto: Tom Cabral

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A parada forçada do mundo apresentou alguns cases muito curiosos de retorno de animais ou de regeneração de parte da natureza quando a população ficou isolada. Que lições essa Pandemia nos deixa sobre a sustentabilidade (ou insustentabilidade) do nosso modelo de cidades?

Com a “pausa” imposta pela pandemia foi possível perceber a impressionante capacidade de regeneração que a natureza possui, porém, nesta era que tem sido chamada por alguns especialistas como “Antropoceno”, a velocidade de degradação do meio pela sociedade não tem permitido que a natureza tenha seu tempo de regeneração. No entanto, também foi possível notar que é possível desacelerar as ações predatórias promovidas pela sociedade, tendo por base a redução do consumo, a mudança de matriz energética e a substituição por ações cotidianas sustentáveis. Talvez esse momento seja uma oportunidade de ruptura no padrão de consumo, com a valorização do essencial para a realização da vida, como também uma possibilidade de mudança nos usos dos espaços das cidades, com a valorização do espaço livre público e do contato com o “meio natural”.
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A “economia verde” ou ao menos modelos econômicos que priorizem a sustentabilidade devem ganhar mais força nessa rediscussão das cidades e do próprio modo de consumo? Que recomendações cidades como o Recife poderiam adotar?
De início uma das grandes preocupações da imposição da quarentena nas metrópoles era a possibilidade de desabastecimento. Com isso ficou claro que as cidades não são autossuficientes, mas sim dependentes das atividades realizadas no campo, estas essenciais para manutenção da vida, mesmo em tempos de pandemia. A alienação do processo produtivo coloca a cidade como central no mundo capitalista moderno e invisibiliza a produção de alimentos e seus produtores, principalmente daqueles insumos indispensáveis para a sobrevivência da população. Senti falta da mídia valorizar esses trabalhadores e revelar toda essa cadeia produtiva que continuou e continua provendo o abastecimento das cidades. Em um mundo globalizado essas relações produtivas em cadeia são cada vezes mais complexas e interdependentes, mas os produtores locais continuam sendo indispensáveis para a dinâmica desses espaços. E é aí que fica evidente a importância de ações voltadas para um desenvolvimento local, com a valorização do produtor, o que potencializa a promoção da sustentabilidade tanto no âmbito ambiental como econômico.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

As chamadas economias colaborativas urbanas também se mostraram presentes neste período de isolamento social, principalmente por força das mídias sociais, onde redes colaborativas se fortaleceram em busca de valorização do consumo de pequenas empresas, e de artesão e de comerciantes de bairro. O fortalecimento dessas redes locais deve continuar sendo valorizado para se pensar em uma cidade mais humanizada, no sentido de fortalecimento das relações sociais e interpessoais.

Mariana Zerbone defende melhoria na oferta de transporte público e expansão da estrutura cicloviária.

Contudo, a desigualdade social continua permeando cidades como Recife, e não se pode pensar em novos padrões de cidade sem refletir nas condições de transporte público e mobilidade, pois não é possível falar de sustentabilidade tendo cidades com valorização do transporte individual e ao mesmo tempo com um sistema de transporte coletivo de péssima qualidade, que não prioriza os indivíduos, mas sim o rendimento das empresas. Mesmo em um momento em que distanciamento social é lei, os ônibus continuam lotados, violando a segurança sanitária de seus usuários. Promover melhores condições de transporte, com ampliação da rede, aumento da frota, além da valorização de outros modais, como a como a bicicleta, com a expansão a infraestrutura cicloviária, deve ser prioridade para se pensar as cidades durante e pós-pandemia.  Esse momento de pandemia evidencia os problemas estruturais de nossa sociedade, mas também tem possibilitado a reflexão de muitos em busca de alternativas para a construção de outros padrões sociais, mais colaborativos e inclusivos.

*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.pe@gmail.com)

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