"Não basta ser craque na advocacia, tem que ser também um cidadão" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

"Não basta ser craque na advocacia, tem que ser também um cidadão"

Revista algomais

João Humberto Martorelli, sócio-fundador de uma das mais reconhecidas bancas de advocacia de Pernambuco, conta como desistiu do sonho de ser diplomata ao se apaixonar pelo direito, fala da trajetória do escritório, do uso da IA e defende o papel do advogado em prol das causas sociais e da democracia

Uma das bancas de advocacia mais conhecidas de Pernambuco, a Martorelli Advogados, festejou no final de 2023, sua trajetória de 40 anos voltados para o direito empresarial. Mas a atuação do seu sócio-fundador, João Humberto Martorelli, também esteve voltada para as causas sociais. Ele participou das diversas campanhas de resistência contra a ditadura militar e ajudou a fundar a organização Causa Comum, em que trabalhava de forma voluntária defendendo, na Justiça, diversos mutuários do Sistema Financeiro da Habitação.

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Foi também um dos pioneiros a adotar a política de inclusão para contratar pessoas negras, LGBTQIA+, com idade acima dos 55 anos e com necessidades específicas. Para João Humberto Martorelli o exercício da advocacia deve ser encarado como uma função social e não apenas uma atividade geradora de lucro. Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele conta como desistiu do sonho de ser diplomata ao se apaixonar pelo direito, fala das causas sociais nas quais se engajou e como a inteligência artificial tem facilitado o trabalho do escritório.

Como começou a Martorelli Advogados?

A empresa começou com um estudante de direito que não estava fadado a fazer direito, estava construindo sua vida para ser diplomata. Na época, era exigência do Instituto Rio Branco cursar até o segundo ano de direito para, só então, fazer o concurso para diplomata. Quando eu estava no segundo ano de direito, meu pai, que era engenheiro, pragmático e não acreditava muito em diplomacia, pediu um estágio para mim em um escritório de advocacia do Recife. Comecei a estagiar no escritório de Vicente Gouveia só para satisfazer ao desejo do meu pai, mas acabei me apaixonando pela advocacia.

O escritório era muito atuante, eu aprendi muito com eles e fiz um bom curso de direito, me esforcei, me dediquei bastante e, quando me formei, fiquei no escritório como advogado. Como muitos profissionais que estão em grandes bancas e têm o sonho de fazer a própria carreira, eu atendi o convite de Luiz Piauhylino e saí para montar, junto com ele, o meu escritório em 1983. Eu já tinha seis anos de formado e aí começamos uma carreira de advocacia muito interessante.

Ampliei os setores em que atuava, que eram o comércio varejista e atacadista de uma forma geral e, com Piauhylino, entrei em outros setores, como o sucroalcooleiro, atuando junto a usinas na área tributária, ambiental e contenciosa. Com isso, crescemos bastante. Piauhylino seguiu na carreira política e, em 1997, o escritório que era Piauhylino e Martorelli passou a ser só Martorelli Advogados. A partir daí, sem um sócio sênior junto comigo, eu comecei a desenvolver uma filosofia de crescer o escritório por meio da formação de estagiários. Então, ao invés de buscar sócios no mercado, comecei a, praticamente, desenvolver uma grande escola de advocacia no escritório e, hoje, quase todos os meus sócios são ex-estagiários.

Então a formação de pessoas foi essencial para o crescimento do escritório?

O escritório cresceu bastante com essa filosofia e acho que vai crescer mais ainda porque continuamos com essa prática. Muitos escritórios que estão hoje no mercado foram formados aqui dentro. São advogados que repetiram a minha trajetória: ficaram um pouco trabalhando conosco e, depois, saíram para montar os seus escritórios. Além disso, eu sempre fui muito cidadão, muito envolvido em política, não política partidária, mas eu sempre gostei muito de defender as causas populares. Eu entendo que a advocacia, antes de tudo, é uma função social, tanto que hoje o advogado é inscrito na Constituição como indispensável à administração da Justiça.

Por isso, me engajei em alguns movimentos políticos, participei das diversas campanhas de resistência contra a ditadura, e da eleição de Marcos Freire ao Senado. E, depois da derrota de Marcos Freire para o Governo do Estado, em 1982, começamos a desenvolver m trabalho na sociedade civil e fundamos uma associação, junto com João Braga (ex-secretário municipal de Infraestrutura e ex-secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos), que se chamava Causa Comum, em que nós trabalhávamos de forma voluntária defendendo na Justiça diversos mutuários do sistema financeiro de habitação que não conseguiam mais pagar a prestação da casa própria. Patrocinamos voluntariamente mais de 15 mil mutuários aqui em Pernambuco. Então, gosto de assinalar que, ainda hoje, apesar de sermos voltados para o setor empresarial, visamos sempre à função social da advocacia.

Por isso que hoje nós desenvolvemos, aqui no escritório, diversos trabalhos de efetiva inclusão. Hoje é uma tendência mas, há muito tempo, já praticávamos a defesa das causas sociais, a defesa de gênero, a postura antirracista veemente e a criação de cotas para estudantes negros, estudantes transgêneros, para idosos, etc. Temos sempre uma prática de muita diversidade dentro do escritório.

De que forma é realizada essa inclusão?

Aqui no escritório, nós temos cotas nas nossas seleções de estagiários de advogados. Destinamos uma cota para incluir negros, idosos e outras iniciativas de inclusão. Além disso, o escritório tem a postura de intransigente defensor dos direitos individuais, das causas sociais e isso é indispensável para o advogado. Hoje em dia se pensa muito assim: o estudante sai da faculdade querendo ganhar o primeiro milhão no primeiro ano. Temos que construir uma atividade com a prática baseada na seriedade, na ética, no respeito às causas sociais. Não basta ser craque na advocacia, ser bom em direito civil, tem que ser também um cidadão.

Quais os benefícios que essa diversidade traz para o escritório?

Traz muitos benefícios. O olhar diverso é muito importante e, na prática da advocacia, temos que ter esse olhar. Não me refiro somente à sigla ESG (responsabilidade social, ambiental e governança), que tem sido muito usada hoje em dia apenas como rótulo. Mas aqui no escritório isso traz grandes benefícios. Temos que saber que, no mundo, há diversos olhares: o olhar da mulher, da pessoa LGBTQIA+, do homem, do negro. Nós conscientizamos nossos clientes a esse respeito, e isso é muito importante.

E atualmente há alguma causa, além dessa da diversidade social, que o escritório está engajado?

Nós temos diversas causas, se for uma causa importante, estamos engajados. Nós temos aqui algumas ações que atendemos externamente, comunidades carentes que apoiamos juridicamente, é o que se chama advocacia pro bono. Mas a advocacia pro bono não é mais tão importante, porque hoje o Estado tem instrumentos como a Defensoria Pública de atendimento às comunidades carentes, existem diversas organizações de terceiro setor, ONGs, que ajudam e eventualmente o escritório pode apoiar essas ONGs e comunidades. O mais importante, porém, é a prática do dia a dia. É você conseguir ter uma empresa de advocacia que seja inclusiva, que seja diversa e demonstre, na prática, como contribuir para o avanço civilizacional.

Outra tendência são as inovações tecnológicas. Em 2018, a Martorelli foi um dos primeiros escritórios de advocacia a trabalhar com a inteligência artificial do Google. Hoje vocês trabalham com uma ferramenta de IA chamada Bob. Quais as vantagens dessa tecnologia para o trabalho na área do direto?

Utilizamos a ferramenta de AI chamada Bob, em homenagem a Roberto Azevedo, um grande amigo e diretor financeiro que tínhamos aqui no escritório e que faleceu. Essa ferramenta é fantástica, estamos usando na área trabalhista. É uma inteligência artificial que, por exemplo, lê o processo da Justiça do Trabalho, avalia quais decisões que já existem naquele assunto e prevê se o juiz vai ser favorável ou desfavorável. Estima qual o resultado e os valores indicados para que a empresa possa sugerir o acordo financeiro mais interessante para encerrar o processo.

Essa ferramenta também identifica se as testemunhas são reclamantes em outros processos e faz toda a radiografia para quem está na gestão. É uma ferramenta extraordinária, e as empresas gostam muito dos relatórios que ela gera. Mas eu não acredito que a inteligência artificial vá substituir o trabalho do profissional. Mas ela trouxe grandes avanços, qualidade de vida, facilita e abrevia caminhos, porém não substitui o advogado.

Em que o advogado é imprescindível?

Em tudo. A vida hoje está muito regulada, há muita intervenção e, atualmente, há até uma politização exagerada do Judiciário. Mas a sociedade brasileira ainda está em formação, o que demanda muita regulação, estamos aprendendo a conviver, principalmente diante da complexidade e das várias vertentes de discussões abertas por meio das redes sociais digitais.

Por isso, a advocacia está presente em tudo, mas insisto que o mais importante para o advogado é pensar as carências da sociedade brasileira, as demandas dos vulneráveis, a pobreza, a miséria que aumenta cada vez mais. A disparidade de renda aumenta, os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres. Então o advogado, mesmo sendo corporativo como eu sou, tem que pensar na sua função social, pois ele tem muito a dar à sociedade, mas precisa olhar sua posição de membro social, não somente de ganhador de dinheiro.

E de que forma ele pode ajudar? Existe, por exemplo, muita falta de informação da sociedade brasileira sobre os seus direitos e deveres. Como o advogado pode ajudar?

De diversas formas. Primeiro participando dos seus órgãos de classe, como as associações, a OAB, que foi um grande instrumento de defesa da democracia. Hoje em dia acho que ela se perdeu um pouco porque são muitos advogados e ela se tornou uma espécie de sindicato, algo mais classista, mais assistencialista. Mas a gente tem isso na nossa classe, os grandes advogados, as grandes bancas atuam para os clientes que tem um perfil mais conservador.

Eu faço parte de uma associação em São Paulo que é o CESA (Centro de Estudos das Sociedade de Advogados), que congrega as maiores bancas de advocacia do País e, hoje em dia, é uma entidade progressista. Mas, há 30 anos, eu estava numa reunião do CESA e a diretoria estava fazendo a pauta do ano e perguntou: o que é que a gente vai tratar este ano? E eu disse: eu sei, inclusão de negros nas grandes sociedades de advogados. Foi uma Sibéria, gelo, ninguém falou nada. Hoje o CESA tem um programa que se chama Incluir Direito, que patrocina cursos de aperfeiçoamento e inclui negros nas grandes sociedades de advogados.

Na reunião do dia 8 de março, por exemplo, sugeri que devemos eleger uma diretoria só de mulheres. É preciso haver ações afirmativas, não apenas falar. Temos que fazer com que essa e outras associações, como a OAB se abram mais para a sociedade. O advogado tem que abrir os espaços das organizações, ser intransigente com todas as violações do estado democrático de direito.

Eu, por exemplo, numa coluna que escrevo para o Jornal do Commercio, não falo somente de assuntos técnicos e, durante os quatro anos do Governo Bolsonaro, sempre me posicionava contra o então presidente da República, porque era impossível conviver com as suas tentativas de violar a Constituição. O perfil da minha clientela é conservador, mas acho que o advogado tem que ter independência e toda autonomia para fazer prevalecer os grandes postulados da advocacia, e o primeiro deles é a defesa intransigente do estado democrático de direito.

O senhor falou de ESG. Sustentabilidade é o assunto do momento. O que vocês têm feito? Em que a advocacia pode contribuir?

É o assunto do momento como slogan ainda, mas a agenda verde vai se impor. Está para ser aprovado, no Congresso Nacional, um projeto de lei em que as empresas terão que se conformar com os regramentos ambientais, parar de poluir ou terão que comprar créditos de carbono. Terão que entrar em cotas para não pagar pesadas multas. Isso abre uma grande oportunidade para as usinas, por exemplo, porque são geradoras de crédito de carbono.

Então, esse mercado de crédito carbono vai se estabelecer. As empresas já estão atentas e nós estamos fazendo diversos trabalhos de compliance, para que elas cumpram as regras e normas. E o advogado, sobretudo o advogado empresarial, tem um papel importante nisso. Existem empresas, pernambucanas inclusive, que levam isso muito a sério e que estão desenvolvendo grandes trabalhos internos de ESG na área social, na área ambiental e na área de governança, abrindo a participação para funcionários, sendo mais transparentes, isso talvez não seja o mundo que eu vá ver, mas eu acho que é o mundo que meus netos verão: as empresas todas abertas para o mundo e dando satisfação à sociedade.

Em termos de expansão, como o escritório atua nos outros Estados?

E como está o processo de internacionalização? Sempre tivemos uma visão de crescer para os outros Estados e internacionalizar o escritório. Hoje nós estamos com unidades em São Paulo, Maceió, Salvador, São Luís e Teresina. Temos diversos parceiros nos Estados Unidos, na Inglaterra, em Portugal, na Espanha, na França e estamos sempre analisando a possibilidade de instalação do escritório lá fora, mas esse não é um processo muito simples, porém é algo que está no nosso horizonte.

Os analistas estão projetando uma retomada do processo econômico este ano. Como essa recuperação pode impulsionar a demanda para o serviço de advocacia, principalmente os especializados em direito empresarial?

Muitos consultores dizem que vai haver uma forte retomada do processo econômico a partir do segundo semestre. Eu sinto aqui no escritório que essa retomada já dá sinais bastante positivos. Vejo que, de uma maneira geral, os empresários estão vislumbrando novos negócios, estão mais interessados em fazer investimentos, em ampliação, em fazer crescer seus negócios.

Como foi a comemoração dos 40 anos da Martorelli?

Fizemos uma festa no final do ano passado e saiu todo mundo reenergizado. Gilberto Gil e os Gilsons fizeram um belo show. Foi uma escolha bem cirúrgica porque aqui no escritório a gente gosta muito de falar da experiência, da tradição com a união com juventude, com a inovação. Então Gil e com seus filhos, os Gilsons, tiveram esse simbolismo pra gente.

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