Maurício Romão: “O eleitor não vota primordialmente por preferência ideológica” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Maurício Romão: “O eleitor não vota primordialmente por preferência ideológica”

O economista Maurício Romão analisa os resultados do primeiro turno, com a escolha de duas candidaturas do campo das esquerdas no Recife, e faz projeções sobre o pleito no Recife. Os recados das urnas no cenário nacional e o impacto da pandemia nas urnas também fizeram parte dessa entrevista concedida ao repórter Rafael Dantas. Confira.

ALGOMAIS: O que pode explicar um segundo turno entre duas candidaturas de esquerda no Recife? Temos a única capital nesta situação no país.

Maurício Romão: Disse o coronel Aureliano Buendía, em “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Marquez, que a diferença entre liberais e conservadores em Macondo era a de que os liberais iam à missa das cinco e os conservadores iam à missa das sete horas…

Vivesse no Brasil, diante de partidos tão inorgânicos, programaticamente tão inconsistentes, e tão vazios do ponto de visto ideológico, o coronel ia repetir algo parecido sobre os rótulos de “esquerda” e “direita” em terras tupiniquins.

De fato, na eleição municipal de 2012 para prefeito (e, com certeza, não deve ter sido diferente na de 2016 e nesta de agora em 2020) os três “campos”, esquerda, direita e centro, não tiveram nenhum prurido programático-ideológico e celebraram alianças entre eles nos 5.568 municípios brasileiros (PPS com DEM, em 1.226 municípios, PSB com PTB, em 1.439 municípios, PT com PP em 1.531 municípios, com o PR em 1.402, com o PSDB, sua antítese, em 1.104 municípios e por aí vai…).

O bolsonarismo resgatou essas denominações que estavam em desuso no Brasil, marcando território para seu movimento nacional, mas obviamente sem alterar a essência dos partidos, que continuam com o mesmo pragmatismo eleitoreiro de sempre, embora travestidos de imagem e narrativa programáticas.

Basta dizer que o PSB, considerado de esquerda, patrocinador do candidato situacionista em 2020 no Recife, celebrou aliança com 11 partidos, cujo espectro ideológico é deveras flexível, vai do PCdoB ao PP, passando por Republicanos, PROS, PSD, Avante, etc.

Tudo isso para dizer que o advento de duas candidaturas de esquerda no segundo turno no Recife foi um episódio circunstancial do processo eleitoral, não guardando sintonia com as mensagens dos partidos e muito menos com preferências ideológicas do recifense.

ALGOMAIS: Que cenários devem ser observados para o segundo turno? Como devem se comportar os candidatos e eleitores da direita?

MR: Há certa divergência entre os analistas e cientistas políticos sobre se o segundo turno é uma nova eleição ou se é uma eleição disputada em duas etapas.

Independente dessas vertentes, há fortes evidências de que quanto maior a vantagem de votos que o vencedor do primeiro turno tem sobre o seu principal adversário, maior é a chance de ele ganhar o pleito no segundo turno. De fato, o piso inicial de votos dos dois postulantes no segundo turno é a votação deles no primeiro (as poucas exceções se compensam entre si).

Se, todavia, essa diferença de votos é pequena, a compreensão que se tem é a de que o segundo turno se reveste de características de outra eleição. O resultado final vai depender dos apoios conquistados entre aqueles não comprometidos com as duas postulações no primeiro turno (incluindo os que votaram em branco ou anularam o voto), das estratégias de campanha, dos debates, etc.

E este é precisamente o caso do Recife. Os dois candidatos diferiram um do outro em apenas 1,22 ponto de percentagem. Vão começar o segundo turno carregando da primeira etapa essa diferença muito pequena entre eles.

Quanto à outra parte da pergunta, os candidatos competitivos que não conseguiram ir para o segundo turno já se declararam independentes e disseram que não apoiariam nenhum dos dois que ascenderam à etapa posterior do pleito.

De qualquer sorte, mesmo que tivessem explicitado apoio a uma das candidaturas, eles não teriam a influência que se imagina sobre seu eleitorado. Uma coisa é o candidato, outra coisa são os eleitores deste candidato.

Por exemplo, na pesquisa de véspera da eleição (sábado) o Datafolha perguntou ao eleitor se ele não fosse votar em tal candidato, quem teria chance de receber seu voto?

Se o eleitor não fosse votar em Mendonça Filho, 25% responderam que dariam o voto a João Campos, 15% a Marília Arraes e 26% à delegada Patrícia. Já se o eleitor não votasse na delegada Patrícia, 38% destinariam seu voto para Mendonça Filho, 22% para João Campos e 9% para Marília.

No âmbito dos eleitores de João Campos, 35% concederiam seu voto a Mendonça Filho, 30% a Marília Arraes e 14% a delegada Patrícia. Finalmente, entre os eleitores de Marília, 18% dos votos iriam para Mendonça Filho, 42% para João Campos e 7% para a delegada Patrícia.

Como se vê, a destinação do segundo voto, em alternativa à preferência inicial, vai para todos os candidatos concorrentes, em proporções variadas.

Então, (a) a declaração do candidato perdedor de apoio a determinada postulação não garante transferência automática de votos para essa escolha e (b) fica meridianamente claro o que foi dito acima: o eleitor não vota primordialmente por preferência ideológica.

ALGOMAIS: O apoio de Bolsonaro aqui e nas demais capitais atrapalhou os candidatos da direita? Qual a sua avaliação sobre o bolsonarismo nas eleições de 2020?

MR: O apoio de um líder político de prestígio a determinada candidatura pode ajudar essa candidatura, nem que seja simbolicamente. O imaginário popular, entretanto, associa tal apoio à transferência de votos: se o postulante apoiado venceu o pleito ou terminou numa boa colocação, o líder ajudou. Caso contrário, atrapalhou.

O fato é que transferência de votos de lideranças políticas para candidatos, quando ocorre, é sempre numa proporção muito menor do que se espera. Em política não existe portabilidade total de votos. E muitas vezes fica difícil detectar se a performance do candidato se deveu a seu desempenho próprio ou ao suporte recebido do líder político ou a outras intercorrências conjunturais.

Ortega y Gasset já dizia que “o homem é ele e suas circunstâncias”. Por analogia, o candidato é ele e suas circunstâncias (alianças partidárias, recursos financeiros, tempo de rádio e TV, apoios parlamentares e políticos, propaganda, estratégia, etc.). Entre as circunstâncias está o apoio do líder político, cujo peso é relativo.

No que tange à segunda parte da pergunta, é voz comum que o bolsonarismo perdeu força nas eleições de 2020. Isso porque os maiores vencedores são os partidos de centro, ou de centro-direita, o que em tese se traduz numa rejeição aos extremos, em um dos quais o bolsonarismo estaria situado. Em função dessa evidência empírica, a mídia tem tributado esse encolhimento a uma derrota pessoal do presidente Bolsonaro.

O bolsonarismo transcende Bolsonaro. É um movimento, assim como o lulismo, o trumpismo, o peronismo, etc. É uma onda conservadora em sua essência, alicerçada em símbolos moralistas, na segurança, na autoridade (lei e ordem), nos sentimentos antilulopetista e anti-sistema.

É um movimento que tem raízes nas insurgências de 2013, ignoradas pelo sistema político tradicional e pelas burocracias partidárias, mas capitalizado com maestria por Bolsonaro. Então, esse movimento, como se está vendo, encontrou guarida em uma parcela significativa da população brasileira que, por índole, por cultura, por sua história, é religiosa, tradicional nos costumes, enfim, conservadora do ponto de vista de sua formação.

Então, o que se deve analisar daqui pra frente é até que ponto o fato de Bolsonaro ter-se inclinado por algumas candidaturas que terminaram por ser derrotadas enfraqueceu eleitoralmente o movimento que ele lidera. Repita-se: uma coisa é o candidato ou o líder político, outra coisa são seus eleitores, seguidores ou admiradores.

ALGOMAIS: Qual a relação entre a pandemia e o resultado das urnas este ano?

MR: A característica principal desta eleição foi a de que as campanhas dos candidatos aconteceram com pouca presença física junto ao eleitorado. As campanhas, que sempre foram analógicas, por assim dizer, passaram a ser virtuais. É uma mudança muito profunda em termos de eleição no contexto tradicional.

Agora, em que medida essa contingência afetou os resultados da eleição para algum candidato em particular é difícil de dizer, já que, em princípio, as restrições sanitárias e protocolares impostas pela pandemia afetaram a todos os concorrentes igualmente.

Um subproduto da pandemia foi que ela afastou muitos eleitores das urnas, gerando uma abstenção maior do que a ocorrida nas eleições anteriores. A maior ausência do eleitor no dia da votação está longe de deslegitimar o processo eleitoral, mas seria melhor que mais opiniões fossem emitidas, é claro.

A alta abstenção nas eleições municipais, entretanto, pode vir a afetar o desempenho eleitoral de alguns candidatos, dependendo das características sócio-econômicas de seu eleitorado.

Por exemplo, segundo o Datafolha, na pesquisa mencionada, os eleitores de João Campos são proporcionalmente em maior número entre os mais idosos, entre os que só possuem o ensino fundamental e entre os que pertencem a famílias cuja renda mensal é menor que dois salários mínimos. É possível que a incidência de abstenção nesses estratos tenha sido maior que em outros nos quais o candidato tenha desempenho menos pujante, o que reduziria sua quantidade de votos recebida.

Como os outros concorrentes também são mais ou menos afetados pela elevada abstenção, seria necessário mensurar empiricamente o percentual de abstenção por estrato e cotejá-lo com o perfil dos eleitores de cada candidato para saber quem restou mais ou menos prejudicado.

De maneira geral, então, pode-se dizer que a maior abstenção, ainda que possa ter tido algum efeito sobre essa ou aquela candidatura, não chegou a alterar o resultado final da eleição, a ponto de ela vir, por exemplo, ser encerrada no primeiro turno.

Em resumo, em termos de eleição majoritária, pode-se dizer que a pandemia foi relativamente neutra, não interferindo nos resultados eleitorais. Entretanto, nas eleições proporcionais, é possível que tenha prejudicado mais os candidatos de primeira vez que precisavam de maior circulação e mais contatos pessoais para se contraporem aos vereadores de mandato, candidatos à reeleição. Estes, já formaram suas bases anteriormente e não precisavam desbravar novos territórios, tanto quanto os candidatos de primeira tentativa.

ALGOMAIS: Que sinais as urnas sinalizaram nas eleições de 2020 como recados para 2022?

MR: É oportuno salientar de início que, diferentemente de 2018, as questões morais tiveram pouco peso na eleição deste ano. Ademais, a democracia tem a capacidade de desenvolver seus próprios antídotos quando se vê ameaçada. De 2018 para cá, com o passar do tempo, a própria sociedade foi rejeitando os extremismos, rechaçando os arroubos fundamentalistas ou obscurantistas e coibindo as tentativas institucionais de adoção de medidas intolerantes ou antidemocráticas.

A eleição de 2020 no âmbito municipal, ao referendar partidos e propostas do centro político, sinaliza para a continuidade dessa depuração e, mais específica e claramente, dá um recado à sociedade que quer o combate a polarização política que está paralisando a nação e interferindo nosso desenvolvimento social e econômico.

É lógico que dos resultados da eleição até o aparecimento de proponentes de peso que tenham autoridade para promover diálogos nesse sentido há uma distância grande. Reconhece-se que são enormes as dificuldades práticas de se levar adiante tal empreitada, em face do sectarismo imperante.

Não obstante, a história registra alguns exemplos, até de acordos de união nacional, que prosperaram exitosamente, ainda que, de início, parecessem impossíveis diante da enorme gama de obstáculos que se antepunham à celebração de entendimentos (Pactos de Moncloa, na Espanha, a Agenda 2010, na Alemanha, o Pacto por México, em 2012, etc.).

A questão do Brasil se situa num plano mais imediato e objetivo: entendimentos suprapartidários que mobilizem a sociedade em torno de uma proposta política que consiga minimizar a sectária divisão política existente no país.

Se isso for feito, mostrada a disposição para o diálogo, a formatação do conteúdo do processo de “concertación”, como ele será desenvolvido e quem serão seus participantes virão por gravidade.

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