"Não basta alimentar e trocar a fralda, as famílias precisam ser informadas sobre a necessidade de interação com as crianças" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

"Não basta alimentar e trocar a fralda, as famílias precisam ser informadas sobre a necessidade de interação com as crianças"

Revista algomais

Ana Maria Bastos, sócia-fundadora da empresa Descobrir Brincando, alerta para a importância dos cuidados e estímulos na primeira infância, por ser uma fase importante para o desenvolvimento cerebral. Também adverte que nesse período as interações sociais têm papel relevante para promover o potencial da criança de aprender e se desenvolver.

A ciência tem comprovado que tão importante quanto atender as necessidades físicas das crianças na primeira infância, é preciso oferecer também um ambiente favorável aos seus aspectos emocional e cognitivo. Até os 6 anos, em especial dos 0 aos 3, acontece um desenvolvimento cerebral no ser humano com uma grande quantidade de sinapses (conexões entre os neurônios) sendo criadas numa velocidade que não torna a acontecer novamente durante as outras fases da vida. As interações sociais auxiliam a impulsionar essa atividade do cérebro e, caso não aconteçam, pode prejudicar o potencial da criança de aprender e se desenvolver.

Num país como o Brasil, com tamanha desigualdade social, é um desafio para as famílias vulneráveis economicamente oferecer condições para que seus filhos possam ter um pleno desenvolvimento. Diante dessa situação, Ana Maria Bastos, sócia-fundadora da empresa Descobrir Brincando, sediada em São Paulo, realiza um trabalho para auxiliar os adultos que cuidam de crianças a construir competências para que possam contribuir com o período de maior transformação humana, que é o começo da vida. Isso inclui não só os familiares dos pequenos mas, também, profissionais de vários setores, como saúde, educação e assistência social.

Ana – que tem várias especializações na área, em instituições, como Associação Pikler – Lóczy, na França; Rosa Sensat, em Barcelona; e no Center on the Developing Child, Harvard (EUA) – esteve no Recife para realizar um trabalho nas Bebetecas dos Centros Comunitários da Paz e conversou com Cláudia Santos. Ela destacou a importância de estimular as crianças na primeira infância, ressaltou a necessidade de políticas públicas para permitir que famílias mais pobres possam ajudar seus filhos a se desenvolverem e disse que, nesse sentido, a iniciativa do Compaz é um exemplo a ser seguido.

Por que é tão importante investir no desenvolvimento da criança na primeira infância?

Com o avanço da tecnologia na saúde e pesquisas científicas, começamos a entender melhor o funcionamento do cérebro das crianças desde o nascimento aos primeiros anos de vida, que são anos críticos de desenvolvimento. A primeira infância é de 0 a 6 anos. Nela, há um recorte chamado primeiríssima infância, de 0 a 3 anos, que são muito estruturantes e fundantes em termos de desenvolvimento, de arquitetura cerebral. Fazendo uma metáfora, dizemos que essa fase é a base da casa, a estrutura. É a partir daí que a pessoa vai se desenvolver.

É um período curto, comparado ao resto da vida, mas é extremamente sensível, uma janela de oportunidades, em que o cérebro está se desenvolvendo numa velocidade que depois nunca mais teremos. Nesse período, as experiências que a criança tem, no ambiente em que vive, vão influenciar muito. A genética também influencia, mas, na medida em que as experiências vão acontecendo, as funções vão se desenvolvendo e a qualidade com que isso acontece é o principal aspecto. Ou seja, segundo evidências científicas, tudo que se investe nesse comecinho da vida resultará em ações mais efetivas e até menos custosas em termos de políticas públicas.

Isso não significa que, quando passar a primeira infância, não tem mais jeito. Mas, se houver investimentos nessa fase, haverá benefícios na vida adulta. Assim, o ser humano que teve um ambiente favorável na primeira infância tem maior chance de ser um adulto mais produtivo economicamente, menos chance de estar no sistema prisional, menos chance de usar o sistema de saúde. Um desenvolvimento adequado na primeira infância tem fatores protetivos e envolve uma agenda ampla, de vários setores, como saúde, educação, assistência social, cultura, esportes, orçamento.

Como esse investimento, nos anos iniciais da vida, repercute nas habilidades cognitivas da pessoa?

Os estudos mostram que há dimensões de desenvolvimento. Existe a dimensão cognitiva – que é do pensamento, da lógica –, a dimensão física, a emocional e a de linguagem. E, na criança nesses primeiros anos, essas dimensões estão todas interligadas. Por isso, a presença do adulto cuidador, dos familiares próximos, é essencial para as experiências significativas em todas as dimensões, inclusive na aprendizagem.

Por exemplo, em relação à linguagem, se a criança é envolvida num ambiente favorável, onde o adulto conversa com ela, lê histórias, canta, ela vai ter um repertório de vocabulário maior do que aquela que não tem essas experiências e terá mais facilidade na alfabetização. Uma criança de 2 anos de idade que já consegue falar entre 50 a 100 palavras é um indicador de letramento na idade escolar, entre os 6 e 7 anos. Ou seja, quanto maior o vocabulário da criança, nos primeiros anos de vida, maior é a facilidade dela se alfabetizar. Então, ela só vai ter curiosidade de explorar, descobrir o mundo, se tiver essa segurança, um vínculo com o adulto referência.

Além do estímulo à aprendizagem, em que consiste essa segurança do adulto referência?

O bebê humano é diferente de outras espécies, ele é o que mais tempo precisa dos cuidados do adulto. Um filhote do reino animal sobrevive sem um adulto, o bebê humano, não. Nesse começo da vida humana o adulto é essencial no desenvolvimento. É a partir dessa interação, desse vínculo com o adulto que a criança vai se constituir como sujeito. Apesar dos muitos avanços nas pesquisas, ainda existe uma crença de que, se o bebê está bem alimentado e com a fralda sequinha, está tudo certo. As famílias precisam ser sensibilizadas e informadas sobre a necessidade de interação, da conversa, do olho no olho, com crianças da primeira infância.

A criança necessita dessa base segura, estabilidade e segurança emocional para se desenvolver. Existe uma diferença entre sobreviver e se desenvolver. Então, não basta alimentar e trocar a fralda, atender as necessidades físicas básicas. Isso, apesar de parecer óbvio, não é uma informação que chega à população em geral. Nesse sentido, é preciso sensibilizar o quanto antes, os adultos, as famílias, para a importância do seu papel no desenvolvimento da criança.

Que comportamentos ou atitudes os adultos devem ter com crianças nessa fase? A senhora poderia dar algumas dicas?

Devemos começar pela concepção de infância. É preciso olhar essa criança pequena desde a barriga da mãe, como um ser que já é. Não podemos olhar esse ser como um miniadulto. Ele é uma criança, é capaz. Mas também deve-se ter cuidado para não hiperestimular o bebê. Na verdade, é preciso entender a importância da qualidade da relação entre o adulto e a criança, principalmente nesse momento em que a pressa, o consumo e o uso da tecnologia atravessam essa relação.

Sobre as tecnologias, qual a influência de dispositivos como celular e tablets nas crianças pequenas?

Eu não sou contra a tecnologia, mas temos que saber usá-la. Nessa faixa etária que estamos falando, não é aconselhável, porque a criança, nesse período, precisa de experiências concretas. É um período que a gente chama sensório-motor, em que ela precisa se movimentar, tocar, colocar na boca. Além disso, o problema não é só o celular na mão do bebê, é também na mão do adulto, que deve interagir com a criança, conversar, olhar no olho.

Essa interação é o que faz a gente virar gente. Muitos diagnósticos de atrasos no desenvolvimento motor e na linguagem da criança apontam para a falta de interação. Essa questão das telas é muito importante e não é só de ordem familiar, é preciso sensibilizar toda a sociedade. Na educação, por exemplo, há leis proibindo o uso de celulares nas escolas. Precisamos de leis no âmbito coletivo.

No Brasil, há muita desigualdade social. Quais os desafios do País para oferecer uma assistência adequada às crianças na primeira infância?

O Brasil é um país continental com muitas desigualdades. Quando falamos das dimensões da pobreza, não é só sobre a renda. Dados de uma pesquisa recente mostram que temos desigualdade do acesso a direitos básicos, de moradia, água, acesso à informação, proteção contra as violências à criança e ao adolescente. Há municípios brasileiros, por exemplo, que têm 100% da água encanada e outros municípios com 90% de água não encanada, esgoto a céu aberto.

Então, são necessárias política públicas básicas mesmo, educação de qualidade, assistência social, que é um serviço importantíssimo nesse recorte de famílias em situação de vulnerabilidade.

Assim, se uma criança com 18 meses de idade, muito antes de entrar na pré-escola, já se encontra em situação de vulnerabilidade, vai ter um desenvolvimento diferente de uma criança que não está nessa situação. Por isso, quando falamos do impacto preventivo de políticas públicas para a primeira infância, é justamente para diminuir essa desigualdade. É preciso começar a diminuir esse gap, pois a criança que não tem um ambiente adequado, vai ser um adulto menos produtivo economicamente, vai adoecer mais fisicamente e mentalmente. Isso é um ciclo que se repete e precisa ser rompido. É um grande desafio, mas estamos caminhando.

Você poderia elencar algumas experiências bem-sucedidas de assistência às crianças no Brasil?

O Brasil está avançando muito em termos de políticas, de leis, temos o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), um Marco Legal pela Primeira Infância de 2016. Temos uma política integrada no Ministério da Casa Civil, que começou com um grupo de trabalho diante do desafio da intersetorialidade nas políticas de primeira infância, pois são muitas pastas que envolvem os cuidados: saúde, assistência social, educação. Então, acessar todos esses dados da família de maneira uniforme é um avanço.

Também temos o Programa Nacional de Visitação Domiciliar, que é o maior do mundo, e agora está em reordenamento e faz parte do Suas (Sistema Único de Assistência Social) por meio do Programa Criança Feliz. Para você ter uma ideia da dimensão desse programa, todas as famílias inscritas no CadÚnico (Cadastro Único da Assistência Social) que tenham gestantes ou crianças na primeira e primeiríssima infância podem receber, se desejarem, a visitação domiciliar de um profissional da assistência social que vai falar justamente sobre como os pais ou cuidadores podem promover o desenvolvimento da criança.

No Brasil, também temos a Rede Urban95, da qual fazemos parte. É uma rede de muitos municípios, entre 26 e 27, que tem vários eixos como programa de serviços, qualidade do ar, mobilidade urbana, refletindo sobre formas de melhorar a cidade para as crianças, pois uma cidade boa para a criança é uma cidade boa para todos. Temos municípios que estão brilhando nas construções dessas políticas, que, independentemente do governo vão se sustentar.

O Recife é um exemplo de uma cidade da Rede Urban95 em que é possível observar a implantação do urbanismo tático, com praças e parques. Sabemos que uma cidade em que há mais crianças brincando na rua é menos violenta. Isso é bom para todo mundo. Temos também o Compaz, que é uma iniciativa de prevenção dentro da Secretaria de Segurança Cidadã, que tem uma agenda voltada para a primeira infância que são as Bebetecas. Então, no Brasil, temos muitas iniciativas nacionais e locais.

O que é uma Bebeteca?

É um serviço, que além do espaço físico, tem como objetivo acolher a família da primeira infância, porque não se pode desvincular a criança do adulto. A saúde e o bem-estar do adulto impactam diretamente no desenvolvimento e na saúde do bebê. Então, a Bebeteca, que no caso do Compaz está dentro das bibliotecas, acolhe essas famílias para a criança poder fazer o trabalho dela, que é brincar. Ali é um espaço seguro, tanto para a criança, quanto para o adulto. Como entendemos muito de desenvolvimento infantil, proporcionamos, na Bebeteca, tudo que a criança precisa nessa fase da vida em termos de interesses, brincadeiras.

Em relação aos adultos, sabemos que esse período em que a pessoa se torna mãe ou pai é muito intenso, traz muitas mudanças e pode ser muito solitário, com as famílias cada vez mais nucleares, principalmente nos grandes centros urbanos. Então, apoiamos para fortalecer esses adultos cuidadores. Por isso a Bebeteca é um exemplo de uma política pública que tem por objetivo fortalecer essa função parental de cuidar e educar uma criança, que não é fácil.

Assim, a Bebeteca é um espaço gratuito, público, um equipamento de qualidade ímpar e já está no âmbito nacional, pois o Compaz está sendo implantado para o nível nacional pela Rede Convive, através do Ministério da Justiça. Essa rede fez um levantamento dos municípios brasileiros com maior índice de criminalidade, onde será replicado. Estamos pleiteando para que cada equipamento já nasça com esse espaço da primeira infância. Nós, da Descobrir Brincando, tivemos o prazer de implantar as cinco Bebetecas dos cinco Compaz daqui. Acabamos de entregar uma e estamos no processo formativo dos profissionais diretamente e indiretamente relacionados ao funcionamento dela.

Como é o trabalho que vocês desenvolvem na Descobrir Brincando?

Nossa teoria de mudança consiste em estudar o desenvolvimento infantil, construindo as competências no adulto cuidador, para fortalecer sua relação com a criança, que é a base ao desenvolvimento integral dela. Trabalhamos na qualificação do capital humano, das famílias, dos profissionais de vários setores, como saúde, educação, assistência social, fazendo uma sensibilização sobre a importância dos adultos no desenvolvimento infantil.

É justamente esse nosso papel: sensibilizar e instrumentalizar esses profissionais que estão em contato com as famílias de primeira infância brasileiras. Na verdade, nós da Descobrir Brincando atuamos com o adulto. Não trabalhamos só com o bebê, trabalhamos para o bebê. Seja diretamente com as famílias em programas de parentalidade, ou com os profissionais que estão em contato com essas famílias. Diante de tantas desigualdades no Brasil, decidimos direcionar nosso trabalho para políticas públicas voltadas às classes menos favorecidas.

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