No mês passado, uma moradora de Afogados, no Recife, colocou uma boneca de forma assustadora num cruzamento do bairro para espantar os ladrões. A iniciativa deu tão certo que nenhum “meliante” ou mesmo trabalhador ousou chegar perto do brinquedo sinistro. Essa história divertida do cotidiano recifense mostra como a cidade ainda guarda no seu imaginário as assombrações que fazem parte da vida dos seus moradores desde a colonização. O jornalista e escritor Roberto Beltrão acredita ser importante manter esse imaginário e resgatar as antigas lendas e mal-assombros pernambucanos. Por que? Porque fazem parte da nossa identidade, que tem raízes no patriarcalismo da civilização do açúcar. Nesta divertida conversa com Cláudia Santos, permeada de causos mal-assombrados, Beltrão fala da influência de Gilberto Freyre, autor da obra seminal Assombrações do Recife Velho, e dos seus projetos que incorporam a cultura de massa para fazer com que o Papa Figo seja tão pop quanto Freddy Krueger.
Como surgiu a ideia de criar o projeto O Recife Assombrado?
Foi na década de 1990. Sempre tive interesse por história de assombração, sou muito fã de Edgar Allan Poe e de literatura fantástica latino-americana, lia muito Gabriel García Márquez e Julio Cortázar. Um dia, conversando com um amigo, que é maestro, Sérgio Barsa, sobre lendas da cidade, ele me disse: “sabia que existe um livro de Gilberto Freyre que fala das assombrações do Recife?” Sérgio me emprestou o livro e fiquei fascinado. São quase 40 histórias de assombração. Com Sérgio e um outro amigo, André Balaio, que é escritor e roteirista, pensamos que se Gilberto Freyre escreveu o livro em 1955 e depois outras tantas lendas apareceram no Recife, teríamos que divulgar essas novas assombrações também.
Bolamos o fanzine Assombrado em 1996. Mas não deu certo, só teve o número zero. No ano 2000, fizemos um site https://www. orecifeassombrado.com/ que teve grande repercussão. Tudo o que tínhamos pesquisado, colocamos no site e pedíamos contribuições dos visitantes. Eles mandavam muitas histórias. Depois, abrimos um fórum – que na época era moda, não havia redes sociais – que teve grande participação.
Sempre tratamos o assunto explorando o espanto, o medo, o horror, porém com uma pegada de humor. Mas fomos criticados, algumas pessoas diziam: “você vai dizer que o Recife é uma cidade assombrada?” Agora, todo mundo acha ótimo. No segundo ano do site, produzimos o livro Histórias Medonhas do Recife Assombrado, uma coletânea de histórias que foram publicadas no site, que está na terceira edição. O livro fez um sucesso bom, foi adotado por escolas da rede municipal e particulares. Sempre houve essa ligação do site com os livros, porque também queremos fomentar a literatura fantástica que, na época não era valorizada. O realismo sempre foi o cânone da literatura brasileira, depois do modernismo.
Em seguida, publiquei o livro de crônicas Estranhos Mistérios do Recife Assombrado em 2008. Em 2010 fizemos outra coletânea de textos, chama-se Malassombramentos. A partir de 2012 nós nos associamos a quadrinistas e lançamos a coletânea Histórias em Quadrinhos do Recife Assombrado, que se esgotou.
Hoje o site é meio estanque, em que as pessoas podem fazer pesquisas, e recebe algumas colaborações. Ajo muito nas redes sociais. O principal objetivo do projeto é produzir conteúdo. Em 2015, fechamos um ciclo: adaptamos para HQ o livro de Gilberto Freyre chamado Algumas Assombrações do Recife Velho. Foi um trabalho feito em conjunto com a Fundação Gilberto Freyre, editado pela Global. Também foi produzido o filme O Recife Assombrado, do qual fiz parte da equipe de roteirista. Ele ficou em cartaz nos cinemas em 2019 e agora está na plataforma Now.
Todos esses trabalhos tiveram boa recepção do público?
Sim. Existem dois tipos de público: as pessoas, a partir dos 50 anos, para as quais as histórias tocam na memória afetiva, e o jovem, que por meio da cultura de massa, tem contato com obras fantásticas. Muitas produções do catálogo da Netflix seguem esse tema. E veja como a meninada se comove com uma história de Harry Potter! Quando percebem que podem encontrar um conteúdo parecido, que é próximo da cultura deles, eles se interessam demais. E não só no Recife, temos contato com públicos de outros Estados. Recentemente fiz um livro ilustrado infantojuvenil com o quadrinista de São Paulo Kiko Garcia chamado Assombracontos, causos que o povo conta, que vendeu muito até no interior de São Paulo, cheguei a quase todos os Estados do País.
Por que o Recife é tão profícuo em assombrações?
O próprio Freyre desvendou isso e outros pesquisadores que vieram depois corroboraram com a ideia dele de que há uma relação estreita das assombrações com a sociedade patriarcal que se formou em Pernambuco, em torno do cultivo da cana-de-açúcar e na figura do senhor de engenho. O Recife era cercado de engenhos.
A casa grande era sempre assombrada, havia muita opressão do senhor de engenho. Nessa estrutura patriarcal, existia uma espécie de catolicismo mediúnico, característico do Brasil que também é uma herança portuguesa. Nas casas grandes havia uma hierarquia que era: Deus, os santos e os mortos, para depois virem os vivos.
Isso era perceptível até fisicamente: colocavam-se fotos dos santos junto dos mortos nos altares domésticos e sempre se acreditava que os mortos permaneciam ali naqueles ambientes, inclusive de maneira física porque era um costume da época não enterrar as pessoas da família em cemitério, que só veio a existir no Recife em torno de 1840, depois de uma briga do Estado com a população que não queria de se apartar dos seus mortos. Enterrava-se nas capelas, nas igrejas, nas ordens religiosas.
Uma história muito característica desse contexto é a lenda da botija, na qual a pessoa enterra um tesouro em algum lugar do casarão ou dos sobrados, morre e não revela onde está. Depois volta, na forma de fantasma, ou aparição em sonho, para revelar a alguém onde estava o tesouro. A obra mais conhecida do escritor Carneiro Vilela, A Emparedada da Rua Nova, retrata uma situação fictícia, mas com ecos na realidade: o sujeito que emparedou a filha, ao ficar com raiva porque ela engravidou sem ser casada. Depois, ele passou a ver o fantasma dela na rua Nova, Centro do Recife.
É importante ressaltar que os engenhos situavam-se num cenário devastado. No livro Nordeste, Gilberto Freyre mostra como o cultivo da cana-de-açúcar destruiu a mata atlântica. A civilização que se instalou ali não tinha relação nenhuma com aquela mata e se assustava com ela. E isso se revela no mito da Comadre Fulozinha. Diante de todo esse panorama, não tem como o Recife não ser a cidade mais assombrada do Brasil.
Leia a entrevista completa na Edição 187.2 da Revista Algomais: assine.algomais.com