“Não vendemos só o maltado, nós proporcionamos boas lembranças”.

Fundada por Fidélio Lago, um imigrante de Cuba, As Galerias funciona há 95 anos no Bairro do Recife. O neto do fundador, Jorge Gomes, conta como uma bebida e um bolinho de receita cubana conquistaram o paladar do recifense a ponto de a lanchonete se tornar patrimônio da cidade.

Uma bebida, originária de Cuba, ostenta a proeza de ser patrimônio cultural, gastronômico e imaterial do Recife. Mas é um reconhecimento bastante compreensível e justo, afinal o maltado, produzido na lanchonete As Galerias desde 1928, faz parte da memória afetiva de muitos recifenses e se incorporou ao paladar da cidade tanto quanto uma tapioca. Sua receita, trazida na bagagem do imigrante cubano Fidélio Lago, tem como segredos o malte retirado da amêndoa do cacau e o sorvete de baunilha, ambos produzidos na lanchonete. Outro sucesso é o bolinho cubano, que traz uma cobertura de malte, castanha e amendoim granulados.

Boêmios, assíduos frequentadores da agitada noite do Bairro do Recife de décadas atrás, eram os principais clientes d’As Galerias, quando ela ainda funcionava no edifício conhecido como “Ferro de Engomar” (que sediou o Instituto Cultural Santander). Hoje, a lanchonete está na praça do Arsenal, mas Jorge Gomes, neto do fundador Fidélio, sonha em retornar ao antigo endereço. Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele fala da trajetória do empreendimento que atrai uma clientela em busca do famoso maltado e até turistas interessados na sua história, ilustrada em antigas fotografias que adornam as paredes da lanchonete.

Emocionado, Jorge também ressalta o significado de manter a tradição do negócio – “eu atendo famílias por várias gerações: o avô trouxe o pai, o pai trouxe o seu filho e o filho está trazendo o neto”. Um negócio que tende a se perpetuar com as filhas Vanessa e Vitória. “Elas já sabem fazer muito bem o Maltado”, assegura, orgulhoso.

Como teve início As Galerias?

A lanchonete foi fundada pelo meu avô, Fidélio Lago, que veio de Cuba e chegou no Recife em 1928 e, como um bom cubano, trouxe suas “especiarias”, entre elas, o maltado que até hoje sobrevive e é o nosso carro-chefe. Inicialmente a lanchonete era localizada numa construção histórica do Bairro do Recife conhecida como “Ferro de Engomar”. O imóvel liga as avenidas Marquês de Olinda e Rio Branco. As Galerias ficava no número 58 da Marquês de Olinda, no piso térreo, era uma passarela ligando uma avenida à outra. Daí vem o nome.

Ficamos nesse local por 74 anos. Em 2003, tivemos que entregar o prédio à seguradora a quem o edifício pertencia e fomos para a Rua do Bom Jesus. Em seguida, mudamos para a Rua da Guia, nº 183, onde permanecemos até o imóvel ser vendido após o dono falecer. Mudamos, então, para a Rua da Guia, nº 207. Estamos aqui há quatro anos, mas meu desejo é, em algum momento, voltar ao primeiro endereço, na Marquês de Olinda. Este retorno seria importante não só para As Galerias enquanto empresa, mas para os clientes e para a cultura e lembrança do Recife.

Eu assumi a lanchonete em 2008, ao lado do meu pai, Antonio Gomes, que faleceu em 19 de outubro de 2012 com o desejo de transformar As Galerias em patrimônio. Em 2014, conseguimos tombar a lanchonete como patrimônio cultural, gastronômico e imaterial do Recife, resistimos à pandemia da Covid-19 e seguimos sempre trabalhando com respeito à nossa história e à tradição da cidade do Recife. Levamos isso muito a sério, é tanto que estamos aqui há 95 anos, exercendo essa atividade com muito respeito, muito carinho, atravessando gerações de pai para filho, abrindo mão de vida social, trabalhando quase todos os dias do ano, pois aqui só fecha no dia 1º de janeiro e na Quarta-Feira de Cinzas. Trabalhamos de domingo a domingo, sempre servindo o tradicional maltado.

Qual o segredo do sucesso do maltado? De que ele é feito?

Tem gente que pergunta “esse maltado é aquele que tem leite, Nescau, gelo e açúcar”? Eu respondo que não, isso é achocolatado. O maltado, por sua vez, se faz misturando leite com sorvete de baunilha e malte, que vem da semente do cacau. O malte é quase um xarope da semente do cacau, por isso tem essa saborosidade de chocolate, mas não é enjoativo, você pode tomar um litro tranquilamente e não enjoa.

São vocês que produzem o malte?

É uma receita nossa bem peculiar de fazer. A gente faz esse malte que leva um pouco de açúcar. O sorvete de baunilha também é uma receita nossa. Quando misturamos o sorvete, o leite, o malte e açúcar, fazemos essa bebida que é uma delícia. Você pode tomar todos os dias e não enjoa. É refrescante, saborosíssimo, por isso se mantém até hoje.

O bolinho cubano é outro sucesso. De onde vem essa receita?

O bolinho também é uma receita que nossa família trouxe de Cuba. Aqui na lanchonete, vendíamos sete ou oito dúzias desse bolo por dia. Sempre vendemos junto com o maltado. É uma receita da época em que não existia hambúrguer, x-burguer, por isso vendíamos muito. Como também não existia refrigerante. Além do maltado, vendíamos o ice cream soda, que era uma bebida gaseificada. Com o surgimento do refrigerante, as vendas do ice cream soda caíram, mas o maltado continuou persistente.

E, nesse período, quem eram os clientes que frequentam As Galerias?

De 1928 até meados dos anos 1960, o Bairro do Recife tinha vida noturna, nós tínhamos o Porto do Recife vivo e isso atraia o público à noite. O Recife Antigo era um bairro de baixo meretrício, até os anos 1960 ainda havia vestígios dos cabarés. Aqui era o que se conhecia por “zona”, termo originário de Zona Portuária, que culturalmente passou a ser associado a prostíbulo.

Os frequentadores eram as pessoas da boemia. Eram os portuários, embarcadiços, despachantes, estivadores, os gringos que vinham para cá e também as pessoas daqui do Recife que queriam ter uma vida noturna e buscavam alguma forma de prazer. Vinham escondidinhos por aqui, faziam a farra, dizendo que vinham trabalhar (risos).

Também se consumia cerveja. Recentemente conversando com um amigo que frequentava aqui há uns 30 anos, ele me disse: “quando eu era moço, vinha para cá, passava a noite farrando, tomava um maltado e voltava para farra. O tempo foi passando, eu vinha farrar, tomava um maltado e ia embora. Hoje eu só venho tomar um maltado” (risos) .

E hoje quem são os clientes?

Nosso público é bem diversificado. Temos um público tradicional, que agradeço por ter nos mantido durante a pandemia. As pessoas vinham diariamente comprar o maltado no modo “pague e leve”, garantindo a sobrevivência da empresa. E temos o público mais jovem, em sua maioria, pessoas que estão conhecendo As Galerias agora por meio das redes sociais. Muitos desses clientes trabalham no entorno, no Porto Digital.

Na parede d’As Galerias há uma foto bem conhecida do Zepelim. Qual a relação dessa foto com a história da lanchonete?

Essa foto do Zepelim é emblemática porque, quando o dirigível sobrevoou o Recife em 1937, nós já vendíamos o maltado há nove anos. A foto reforça a tradição da lanchonete. Então, para mim, a relação que a foto tem com a empresa é forte. Embora não esteja aparente, não esteja à mostra, mas já estávamos ali vendendo esse maltado, sim.

Nessa época, não existia shopping, nem lanchonete, mas nós tínhamos um corredor que servia o maltado, o bolinho cubano com a ice cream soda, e a banana split. Servíamos uma cartola e o Bauru, que é um sanduíche no pão de caixa com presunto, queijo e bastante salada. Hoje em dia, esse sanduíche nem aparece mais desse modo como se fazia nos anos 1920. O Bauru de hoje costuma ser relacionado à cidade de Bauru em São Paulo e é feito com pão francês.

Vocês têm quantos funcionários hoje? Eles estão aqui há muito tempo?

No momento, temos quatro funcionários fixos e três comissionados que trabalham dois dias na semana, tiram folgas e recebem a comissão. Desses quatro da casa, dois são bem antigos, pois costumam permanecer conosco, só saem quando morrem.

O folguista trabalha aqui apenas dois dias na semana porque assim deseja, pois tem outro emprego. No final de semana, quando o movimento melhora, é que precisamos de mais pessoas.

Durante o Carnaval, por exemplo, aqui é bastante frequentado. Inclusive, neste Carnaval, o Recife acolheu muitos turistas de outros Estados e até de outros países, e nós recebemos muita gente.

É verdade que muita gente de fora se interessa pela lanchonete como se fosse uma atração turística?

É verdade, porque é uma lanchonete antiga. A gente sabe que é uma proeza hoje em dia estar ativa há 95 anos e, aqui para nós, eu acho que eles pensam “eu quero ver o que que tem aí pra estar viva até agora”. E não tem nada que materialmente justifique isso. Estamos aqui pelo sentimento. As Galerias consegue promover (ainda hoje promove como sempre foi desde a época da inauguração) um ambiente onde as pessoas se sentem à vontade, são bem acolhidas, celebram, se encontram, se reúnem.

Não vendemos só o maltado, nós proporcionamos boas lembranças, vendemos um bom passado. Por exemplo, eu atendo famílias por várias gerações: o avô trouxe o pai, o pai trouxe o seu filho e o filho está trazendo o neto. Mesmo que o avô nem esteja mais entre nós, ele é resgatado naquele momento com muito carinho. Essa tradição não acontece só do balcão para dentro, é do balcão para fora.

E é daí que vêm os apelos carinhosos para que a gente sobreviva, e este é o verdadeiro salário, poder fazer a coisa certa, porque é muito forte ver o seu cliente com os olhos cheios e dizer: “que coisa boa, estou lembrando do meu parente, do meu pai e da minha mãe”.

E falando em tradição e perpetuação, você tem filhos ou sobrinhos que vão continuar o legado de As Galerias?

Tenho sim, inclusive duas filhas que já sabem fazer o maltado, caso aconteça algum infortúnio. Minhas filhas Vitória, que tem 21 anos, e Vanessa, com18, já sabem fazer muito bem a receita. Neste Carnaval, eu as deixei bem à vontade para que caminhassem um pouquinho com as próprias pernas e fiquei monitorando. Estou sentindo que vai dar para garantir As Galerias durante mais algumas décadas.

E como tem sido as vendas na lanchonete?

Conseguimos sobreviver com dignidade. Não se chega a luxar, você trabalha com muita emoção, aqui tem muito sentimento, muito carinho. Toda empresa tem limitações financeiras, mas dá pra deitar a cabeça no travesseiro com dignidade. O que mais me move para manter esta empresa é que, há um tempo, quando eu era pequenininho, não era nem da altura do balcão, me lembro de um cenário de funcionários, inclusive meu pai, atrás do balcão trabalhando.

Nessa época, eu não imaginava que hoje eu estaria segurando essa responsabilidade toda. É uma responsabilidade muito grande, e não falo do valor econômico, falo de valor sentimental mesmo, das pessoas que vêm e que buscam um maltado, que trazem seus filhos, fazem questão de trazer a família para mostrar o maltado e dizem: “eu vou te mostrar uma coisa boa, vou te mostrar uma coisa da minha história”. Então a questão não é muito financeira, é mais sentimental.

Quantos maltados você vende por dia?

Em média, uns 200 a 300 maltados por dia. Final de semana um pouco mais.

O Centro do Recife vem passando por uma revitalização, isso melhorou o movimento da lanchonete?

Sim, tem melhorado. Nós passamos fases muito difíceis no bairro, falo comercialmente. Havia muito abandono, agora há alguns investimentos aqui como alguns hotéis famosos, o Hilton. Temos o Paço do Frevo, o Porto Digital, alguns eventos que passaram a fazer parte do calendário, como o Rec’n’Play. Temos a Feira Japonesa, o próprio Carnaval, o São João. Então essas coisas que acontecem garantem um fortalecimento nas vendas.

Após o Carnaval, as ruas tendem a esvaziar, mas aqui a lanchonete está lotada. Graças a Deus! E eu fico muito feliz. Ali (aponta a mesa ao lado) tem um grupo de rapazes jovens pedindo um maltado, acredito que já tenham almoçado e estão batendo aquele papo agradável. Esta pode parecer agora uma cena comum, mas será um momento de resgate forte daqui a alguns poucos anos, quando eles estiverem adultos, tiverem constituído família e dirão “quando eu era jovem, trabalhava em tal lugar e vinha para cá com os meninos tomar um maltado”. Em seguida, pode vir o filho de um deles e dizer: “meu pai trabalhava aqui, vinha com os amigos e me trouxe”… e assim o ciclo vai se renovando. As Galerias que vai se renovando, eu consigo enxergar a nossa filosofia de trabalho dessa forma, nesses ciclos que vão se renovando.

Agora, antes da entrevista você disse que é da Bahia e que lá já tinha visto algo muito parecido com As Galerias.

Sim, a Cubana que é uma sorveteria tradicional de Salvador, que também vende esse bolinho, localizada na parte de cima do Elevador Lacerda.

Pois é, mas você sabe que a Cubana foi fundada em 1930 e nós somos de 1928? O meu avô veio com um primo que ficou com ele aqui no Recife e, dois anos depois, ele foi à Bahia e fundou a Cubana. Ele levou, inclusive, o maltado, o coco espumante, o bolinho cubano e, por volta de 1962, vendeu a uns espanhóis que, por volta de 1993, venderam a um baiano. Ou seja, a origem da Cubana é da nossa linhagem também. Hoje em dia, já tem Cubana na Pituba (bairro de Salvador), no Pelourinho, e em muitos lugares.

Então ele trouxe alguns produtos daqui e levou pra lá?

Isso, acredita-se que eles trabalhavam juntos lá também. Ele abriu a lanchonete dele lá na Bahia, no Elevador Lacerda, que foi a pioneira. E, em seguida, foi descentralizada durante a gestão do baiano. Mas aqui no Recife, ela resistiu com a mesma família. Estamos aqui!

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