Filmezinho de cowboy preto e branco, fim de noite, nada mal. Nem sei o título. Já estava rolando quando zapeei. Não era com John Wayne nem dirigido por John Ford, porque quando é dirigido por John Ford a gente sabe logo pelos planos-sequência e travellings.
Os mocinhos defendiam a construção da estrada de ferro no velho oeste e os bandidos a boicotavam: explodiam pontes, provocavam descarrilamentos e avalanches. E os índios estavam a favor dos bandidos. O que não é nenhuma novidade em filmes de cowboy.
Bandidos e índios lutando por causas com algum mérito é que era novidade. Bandidos defendendo os empregos de milhares de pais de família honestos e índios lutando pela preservação do meio ambiente, ambos ameaçados pela chegada da estrada de ferro.
Quando era menino – até a adolescência, acho – a gente não via a tecnologia como ameaça de nada. Ao contrário. Tecnologia era um negócio que vinha como radinho de pilha (portátil e mais barato que o radião), maquininha eletrônica de calcular (com as quatro operações mais raiz quadrada e álgebra, que eu não sei para que servem até hoje) e camisa Volta ao Mundo, que era só lavar, não precisava passar (olha aí!, a gente não via, mas, na verdade, já tava desempregando as passadeiras).
Tecnologia era sinônimo de coisas práticas, rápidas e divertidas. Nada de apertar roscas e parafusos, tipo “Tempos Modernos”, de Chaplin. “A tecnologia destrói empregos burros e cria trabalhos inteligentes”, teria dito alguém. Ao homem, seriam reservadas tarefas mais nobres e não repetitivas. Trabalhar-se-ia menos e ganhar-se-ia mais. Ah! aposentar-se-ia mais cedo também (e contar-se-ia nos dedos os textos com mesóclises). Essas eram as expectativas. Nossas, pelo menos. Meninos nos anos 50.
Depois de muita bala de bandido ruinzinho de pontaria e índio galopando em círculo e gritando como que pedindo para ser alvejado, o trem do filme de cowboy chegou ao velho oeste. Chegou trazendo o progresso. E levando grãos, rebanhos e minérios para o leste. O progresso de uns, o desmantelo de outros.
As pequenas cidades, paradas obrigatórias das diligências, não eram mais nem passagem de trem. Toda a logística montada no tempo das diligências (estalagens, estábulos, oficinas, curtumes, seleiros, marcenarias, serrarias, saloons…) chegava ao fim. Levas de desempregados. Enquanto uma diligência, com seis cavalos, cocheiro e ajudante, transportava quatro, cinco passageiros, um único maquinista de trem e alguns auxiliares transportavam dezenas, e depois centenas, de pessoas e toneladas de carga. De quebra, o “cavalo de ferro” espantava para longe as manadas de búfalos, que eram alimento, vestuário e coberta das tendas dos índios.
Da minha infância pra cá, algumas expectativas se confirmaram com o progresso, outras não, retrocederam, até. E breve, muito breve, o limite de idade para aposentadoria deve aumentar, para que ninguém leve a vida na flauta antes de a velhice chegar.
Enquanto isso, daqui do terraço do meu apartamento, assisto à construção de um edifício que, pela pinta e tamanho do terreno, deverá ter muitos andares. Uma grua, com tecnologia da gota serena, comandada por um único operador, carrega tudo que se possa imaginar numa obra: de blocos de concreto a uma simples lata d’água. Penso cá com meus botões: quantos operários, pais de família (como os cocheiros das diligências), não estarão sendo substituídos por essa grua? Até que a filha da grua, um dia, não precise mais de ninguém para operá-la.
Quando a gente é menino, não vê essas coisas.
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