Nos passos do frevo

As sombrinhas coloridas e os passistas que se equilibram nas notas aceleradas dos instrumentos de metais são os símbolos de uma das principais manifestações culturais do Estado. O frevo, com seus mais de 100 anos de tradição, foi reconhecido em 2012 pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Apesar dessa e de tantas honrarias, essa expressão artística pernambucana tem uma característica sazonal e bem local. Levar o frevo a outros territórios e a permanecer vivo num calendário mais longo que os quatro dias de Carnaval é um desafio ainda a ser decifrado.


“O frevo restringiu-se, mesmo no auge, a Pernambuco, e a Estados vizinhos. No Rio de Janeiro a concorrência no período carnavalesco era muito forte, por se tratar de faturamento alto, entravam bicheiros, grandes nomes do rádio. Nas poucas vezes que entrou (no mercado carioca), no segundo ano o pessoal da marchinha bloqueava. Então ficou restrito ao Nordeste. É uma música de época, como a marchinha e a marchinha junina”, analisa o jornalista e crítico musical, José Teles. “Caetano Veloso e Carlos Fernando trouxeram o frevo para a MPB e só assim ele pode ser cantado o ano inteiro, mas em meio a outros ritmos”, destaca.

Marcelo Lacerda. PCR (1)
Foi justamente o músico Carlos Fernando, com o projeto Asas da América, um dos pioneiros a fazer o frevo voar um pouco mais distante. Trazendo intérpretes de renome nacional como Gilberto Gil, Chico Buarque, Lenine, Caetano Veloso, ele proporcionou um intercâmbio. Não era uma modernização do ritmo, na avaliação de Teles, mas um ajuste que levou o frevo a se encaixar com outros gêneros, sem ficar tão purista.
O professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Felipe Trotta, faz um retrospecto de como o samba e o forró conseguiram se descolar das sazonalidades do Carnaval carioca e dos festejos juninos. “O samba também começou como música carnavalesca, mas os compositores se reuniam o ano todo para cantar e tocar juntos e começou a circular o que eles chamam de ‘samba de quadra’, que também ganhou o nome de ‘samba de meio de ano’ (menos dançante, mais cadenciado e lento). Com essa estratégia eles conseguiram ocupar as rádios, fazendo com que o ritmo pudesse tocar o ano todo”, informa o pesquisador. Mas ele alerta que havia eventos de samba o ano todo. O mesmo acontece com o forró. Assim as músicas ganham espaço para serem ouvidas fora dos festejos juninos. “Com o frevo isso não acontece. Considero as características de circulação do frevo bem parecidas com às das marchinhas. Um repertório estático, sazonal, lindo e pouco conhecido. Porém, vários artistas empregam o ritmo em algumas composições, sem se filiarem diretamente a ele”, afirma.

Quem viveu essa experiência com o forró foi o cantor Maciel Melo. O músico lembra que o ritmo tocava apenas entre os meses de maio e junho. Com a fundação da Sociedade dos Forrozeiros, uma força do rádio e a insistência dos artistas é que o forró ganhou impulso para seguir vivo o ano inteiro. Também apaixonado pelo frevo, Maciel lançou o álbum Perfume de Carnaval, em homenagem a Carlos Fernando. “Levar o frevo para fora era o sonho dele. Eu compus um disco de frevo, porque, como compositor queria tê-lo na minha discografia. É preciso incentivar o frevo enquanto produto. Não reclamo disso. Propaganda é a alma do negócio. Infelizmente essa força só chega no Carnaval, o que folcloriza o frevo e ajuda para que ele se torne uma manifestação de gueto”.

Maciel Melo- Andréa Rêgo Barros-PCR
Maciel Melo. Foto: Andréa Rêgo Barros-PCR

Ao promover experiências musicais com o ritmo e a estética do frevo, alguns músicos pernambucanos, ainda raros, já conquistaram público e espaço ao longo do ano. Um desses artistas é o Maestro Spok. Ele concorda que uma das dificuldades para formar novos ouvintes e dançantes do frevo é que em sua maioria ele é executado de forma rápida e solitária (onde o artista dança sozinho), diferente do forró e xote, por exemplo. “Muitas pessoas vêm fazendo novas leituras do frevo. Não tenho nada contra quem queira experimentar, ousar, fundir. Acredito muito que consigamos fazer um trabalho com seriedade assim. Penso em trabalhar com o frevo canção, como poesia, uma forma de enxergá-lo fora das tradições”, declara Spok. A agenda lotada do maestro e sua orquestra no Carnaval não contrasta com a programação dos demais meses do ano, quando atinge o público da música instrumental e dos festivais de jazz.
Ao unir o erudito e o popular, quem também deixa sua marca vivendo da música pernambucana 365 dias no ano é o Maestro Forró e a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, criada por ele. Este ano o músico será o homenageado do Carnaval do Recife. “Há 20 anos vivo da cultura pernambucana e o frevo tem um lugar cativo em tudo o que faço. Trabalho com a pesquisa, manutenção, releitura e interação do frevo com outras culturas. Acredito que é preciso dialogar com qualidade. Começamos com um trabalho de formação na comunidade, que gerou como produto a orquestra, que em menos de um ano já ocupava um espaço de destaque no circuito cultural. O desenvolvimento comercial é consequência disso. Não há fórmula secreta”, avalia Forró, que longe dos palcos é o professor e compositor Francisco Amâncio da Silva.
O papel de educador é a faceta menos conhecida do irreverente e bem-humorado Maestro Forró. Além de revolucionar a figura comumente associada à formalidade dos maestros, ele fez ao longo da carreira parcerias que agregaram diferenciais ao trabalho, como com os músicos Hermeto Pascoal, Rember Egues (cubano), Okay Temiz (turco), que já dividiram palco com Forró.
Uma das estratégias para garantir seu espaço ao longo do ano, com um time de 27 instrumentistas, é de preparar shows para os outros ciclos festivos. Assim, ele leva o frevo para o São João e para o Natal, por exemplo.
Entre os músicos atuais do frevo, também são poucos os que conseguem atravessar as fronteiras de Pernambuco com o ritmo. Exceção, Maestro Spok participa dos festivais europeus de música instrumental e dedica algumas semanas de agosto para lecionar frevo na Califórnia, nos Estados Unidos. “Discutimos frevo a semana toda, num camping, com gente que se matricula do mundo inteiro. Desse contexto nascem músicos que vão me mandando composições de diversos lugares. Recentemente uma japonesa, que está estudando o ritmo com amigos japoneses, me mandou uma música”, disse Spok.
Através do Canal Brasil, o Maestro Forró também teve a experiência de levar sua música para fora de Pernambuco e para o exterior com o programa Andante, que cria pontes entre o frevo e a cultura de outros lugares. Nesse projeto, que produz uma série de documentários fazendo o diálogo de manifestações culturais, o músico já foi a Turquia, Bulgária, Romênia e Cuba. Ele também tem na sua carreira participações em prestigiados eventos internacionais, como o Festival del Caribe, também em Cuba.

DIVULGAÇÃO. Mas é evidente que Spok e Forró são exceções. Em geral a principal reclamação dos músicos é o fato de o frevo não ser tocado nem sequer nas rádios pernambucanas. Dessa insatisfação nasceu em abril de 2013 a Lei municipal Momento do Frevo, que obrigou as emissoras recifences a veicular pelo menos duas canções e/ou instrumentalização em ritmo do estilo. A lei não pegou.
O músico Getúlio Cavalcanti, carnavalesco há mais de cinco décadas, lembra de outros tempos quando havia mais espaço para o frevo no rádio. Apesar de historicamente o ritmo ser bem sazonal, o músico informa que nos anos áureos da Fábrica de Discos Rozenblit a realidade era um pouco melhor. “Como havia os lançamentos da gravadora por volta do mês de outubro, o frevo permanecia no ar no último trimestre do ano até os dias da folia. Havia essa época pré-carnavalesca mais extensa que fazia com que nossas músicas fossem mais executadas”, afirmou Getúlio.
De acordo com a dissertação O frevo nos discos da Rozenblit, da designer Paula de Rezende e Valadares, o ritmo pernambucano era a menina dos olhos do empresário José Rozenblit. Desse trabalho foram imortalizados os registros sonoros de Nelson Ferreira, Maestro Duda, Claudionor Germano e do próprio Getúlio Cavalcanti. Entre os anos de 1954 e 1964, cerca de 25% da música nacional gravada pela fábrica era frevo. Isso não era pouco para quem chegou a deter 22% da produção de discos no Brasil na década de 60. Apesar do fim da Rozenblit, Getúlio lembra que por ano são gravados de 6 a 8 CDs de frevos que mal chegam ao público local.
Uma exceção nesse contexto é a Rádio Universitária FM, com o programa O Tema é Frevo. Apresentado pelo radialista Hugo Martins. É o único espaço exclusivo para o ritmo pernambucano.
Além das rádios, outro instrumento de valorização do frevo que foi perdido foram os festivais. A ausência desses eventos reduziu a divulgação das canções e prejudicou a formação de novos artistas. “Seguimos tendo grandes compositores, mas muitos eram criados nesses concursos de música. Não existem mais as novas gerações que nascem dos festivais”, lamenta Cavalcanti.
O uso das novas mídias para disseminação da música ainda é um terreno pouco explorado pelos músicos do frevo. O que de certa forma distancia o ritmo da nova geração que não ouve rádio, nem compra disco.
As dificuldades de alcançar os mais jovens não se restringem ao espaço nos meios de comunicação. Na opinião dos artistas e críticos, a construção de um público mais amplo e o surgimento de novos músicos passam por um trabalho de educação. “Jovens não se interessaram por frevo porque é uma música que eles não cresceram ouvindo no rádio e na TV. Além disso, para fazer frevo pra valer mesmo, é quase que obrigatório saber ler música, fazer orquestração, arranjos, ou ter alguém por perto que saiba. Não é música que se faz tocando em caixa de fósforo”, diferencia Teles.
Existem iniciativas bem-sucedidas de formação, como a Escola Comunitária de Música da Bomba do Hemetério, dirigida pelo Maestro Forró. Desse trabalho nasceram grupos como os Hemetéricos da Bomba, Frevo S.A. e a Trombonada. O próprio Paço do Frevo tem uma proposta maior que a de ser um museu. Sua função também é formar novos músicos e dançarinos. “É importante a construção de espaços para fomentar novos músicos. Mas, o estudo dos instrumentos para se alcançar a execução do frevo de forma perfeita é um trabalho de médio e longo prazo”, diz Spok, que faz consultoria da Orquestra Frevessência no Paço.
Seja na educação ou na circulação das músicas, ainda há muito o que ser feito para popularizar o frevo entre as novas gerações e em todo o País. Mas as possibilidades estão postas para que as sombrinhas coloridas continuem girando por mais 100 anos e além dos limites de Pernambuco.

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