*Por Beatriz Braga
Eu já amava Elisabeth Moss desde que ela foi Peggy Olson em Mad Men, série que retratava o mercado publicitário dominado por homens nos anos 1960. Agora ela voltou a arrasar ao interpretar June em The Handmaid´s Tale. Na Nova Iorque do século passado, Peggy coloca o filho para adoção - após ter engravidado de um dos caras importantes da agência - porque sabia que a maternidade lhe tiraria qualquer vislumbre de carreira. June, por sua vez, é escrava sexual em um país dominado por uma seita religiosa.
Handmaid´s é brutal, forte e cruel. Baseado no livro O Conto da Aia, de Margaret Atwood, o mundo sofre com um grave problema de reprodução e as mulheres férteis são mantidas sob cativeiro.
É um enredo dramático e violento, mas, apesar de fictício, não o vejo tão distante. Como poucos filmes de terror, o mais assustador de Handmaid´s é que podemos nos enxergar ali. A série me dá arrepios, mas não canso de assisti-la para tentar entender em que partes me identifico com aquela mulher.
A personagem de Moss - longe de corresponder aos padrões ideais de beleza de Hollywood - recebe o novo nome de Offred (lê-se “de Fred”, referente ao seu dono dentro da seita) e tem três grandes versões. Primeiro, a mulher livre do passado; depois a mulher que habita seu corpo, escrava do presente; e seu verdadeiro eu, a mulher que habita sua mente.
Sem nenhum direito à vida, as prisioneiras são reduzidas aos seus úteros. A metáfora está aí. Estupros, exploração do corpo feminino, o papel da religião na subjugação da mulher e, claro, a resistência. Tão pertencentes ao passado como ao presente.
Se Peggy Olson de Mad Men existisse agora, o cenário seria diferente, mas ainda desanimador em muitos sentidos. Ela ainda teria que trabalhar três vezes mais por ser mulher; ainda ganharia 30% menos que os homens igualmente capacitados e, ao se descobrir mãe solteira, ainda teria sérios problemas morais e econômicos para levar sua carreira adiante.
A medida que avançamos, novas montanhas surgem como obstáculos. O Conta da Aia foi escrito em 1985, mas continua pertinente. O útero, ao mesmo tempo que nos dá o poder mais incrível de todos, o de gerar vidas, também nos aprisiona. O problema não é desse órgão poderoso, claro. É que a sociedade continua não nos enxergando muito além dele. É similar ao que acontece na religião. O caos não está no nosso corpo, está na interpretação dos homens.
Nascemos com prazo de validade, somos desvalorizadas no mercado de trabalho por sermos consideradas menos lucrativas, somos levadas como vulneráveis, histéricas, hipersensíveis. Ainda somos extremamente definidas pelo o que fazemos ou deixamos de fazer com nosso sistema reprodutivo. E extremamente julgadas em todos os momentos: as que não querem ter filhos e a mães, eternas rés desse mundo.
A verdade é que quando Offred é estuprada em um ritual sagrado e nos fita com seu olhar enigmático, enxergo as notícias reais do meu dia a dia. De quantas maneiras nossos corpos ainda são presas fáceis no mundo em que vivo.
“A liberdade, como toda as outras coisas, é relativa”. Fazia sentido em 1985 e ainda resiste. Acho que sei o que olhar dela quer dizer naquela cena. Montanhas foram erguidas e montanhas continuarão a serem escaladas. Que venha a segunda temporada.
*Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais
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