Para enfrentar o desafio de incentivar a moradia na região, estão em elaboração um planejamento de longo prazo para Centro do Recife, com foco especial na habitação; um projeto de revitalização da Ilha de Antônio Vaz e outro de recuperação urbana da Avenida Guararapes. As iniciativas foram apresentadas em evento no Rec'n'Play.
*Por Cláudia Santos
Incentivar a habitação no Centro do Recife é fundamental para revitalizar a região, que embora seja repleta de belas paisagens e da memória e do afeto dos recifenses, passou por décadas de degradação. Ao atrair pessoas e famílias para residirem no local, elas passam a ocupar os espaços da região, aumentando a movimentação dos bairros em diferentes horários, gerando demanda por bens e serviços, o que impulsiona a economia local.
A estratégia é defendida por especialistas em urbanismo, tem sido aplicada com sucesso em várias cidades, mas não é nada fácil de ser implantada. Afinal, morar bem significa muito mais do que residir numa casa confortável. Implica também em ter segurança, acesso a serviços, áreas de lazer, espaços verdes.
A boa notícia são as várias iniciativas implantadas com o objetivo de tornar o Centro um local desejável para morar. Entre as mais recentes estão três planos impulsionados pela Prefeitura do Recife: o Centro do Recife — Na Rota do Futuro (um planejamento de longo prazo para a região, com foco especial na moradia), um projeto de revitalização da Ilha de Antônio Vaz e outro de recuperação urbana da Avenida Guararapes. Existem ainda empreendimentos privados, como o retrofit do Edifício Sertã, localizado nessa icônica avenida. Todas essas ações foram debatidas na mesa-redonda Desafios da Habitação no Centro do Recife, durante o Rec’n’Play. “São iniciativas importantes, mas temos que ter em mente que as soluções requerem tempo para ter resultados. Afinal, foram décadas de degradação que afetaram o Centro”, ressalvou Francisco Cunha, arquiteto e urbanista, sócio da TGI Consultoria, presidente do Conselho de Administração da Aries — Agência Recife para Inovação e Estratégia, e responsável pela curadoria do evento.
UM PLANO DE LONGO PRAZO PARA O CENTRO
É nesta perspectiva de longo prazo que foi concebido o plano Centro do Recife – Na Rota do Futuro, pela Aries, a partir da solicitação da Prefeitura do Recife por meio do Recentro. O plano abrange os bairros de Santo Amaro, parte da Boa Vista, do Recife, Santo Antônio, São José, Cabanga e Joana Bezerra, sendo que esses quatro últimos – que compõe a Ilha de Antônio Vaz — é considerado o perímetro prioritário.
Fruto da escuta popular e do conhecimento técnico de diversas áreas, tem como meta para alcançar seus objetivos o ano de 2037, quando a cidade será a primeira capital do País a completar 500 anos. “O propósito é promover o desenvolvimento eficiente e relevante para o Centro do Recife, coordenar as diversas iniciativas e já existentes e elaborar prioridades que levem um processo combinado de reabilitação urbana, de dinamização econômica, conservação ambiental e patrimonial e melhoria na qualidade de vida, sendo que o objetivo maior é habitar o Centro”, elencou Ciro Pedrosa, gestor de projetos da Aries, durante a apresentação no Rec’n’Play.
Para alcançar essa finalidade, Pedrosa destaca que o plano parte do pressuposto de que a estratégia comporta muito mais do que ocupar espaços físicos de moradia na região. “Envolve a ideia de viver o Centro de forma plena, com pessoas que andam, trabalham, interagem e experimentam o espaço urbano em sua totalidade”, explica. Por isso, foram estabelecidos seis programas que abrangem, além do estímulo à habitação (programa denominado Centro para Morar), a inclusão social, com destaque para a questão dos moradores em situação de rua (Centro Inclusivo), as atividades econômicas e os equipamentos culturais (Centro Dinâmico), a segurança (Centro Seguro), a mobilidade (Centro em Movimento) e as áreas verdes (Centro Parque Resiliente).
A ideia é promover um crescimento da população residente do Centro do Recife, por meio de moradias acessíveis e qualificadas e uma maneira de viabilizar esse propósito previsto no plano é o retrofit de imóveis para habitação. “O objetivo principal é incentivar a reabilitação de edificações históricas para uso habitacional, visando modernizar os sistemas estruturais e operacionais de edificação em conformidade com a legislação patrimonial”, informa Inês Domingues, analista de projetos da Aries. O foco prioritário para imóveis retrofitados seria no entorno da Rua da Imperatriz, porção norte de Santo Antônio e porção sul e central do Bairro do Recife.
Outra iniciativa é o estímulo à habitação de interesse social, que seria viabilizada com mecanismo de financiamento específico, com o intuito de aumentar a quantidade de famílias de baixa renda vivendo no Centro, além de reduzir o déficit habitacional. A prioridade da sua implantação seria nas ZEIS (zona especial de interesse social).
O aluguel social também é previsto no plano para contemplar famílias de baixa renda, em especial nos bairros de Santo Antônio, Boa Vista e Cabanga. O financiamento seria pela PPP (parceria público- -privada) Morar no Centro, voltada para famílias cuja renda seja a partir de um salário mínimo até o teto de 3,5 salários mínimos. O projeto é fruto de uma parceria da prefeitura com o Governo Federal, além da Caixa Econômica Federal. “Essas iniciativas permitem que o Centro tenha moradores com níveis de renda diversificados. A mistura de classes sociais é importante também para vitalidade econômica e social de qualquer território”, justifica Inês.
ILHA DE ANTÔNIO VAZ INTEGRADA
Não por acaso, a Ilha de Antônio Vaz é prioridade do plano Centro do Recife – Na Rota do Futuro. Trata-se de uma das áreas mais degradadas do Centro e, ao mesmo tempo, que apresenta grandes possibilidades de implantação de moradias. O curioso é que poucos recifenses têm noção de que Santo Antônio, São José, Joana Bezerra e Cabanga compõem essa ilha, isto é, não concebem esses bairros como um território integrado. Essa percepção, como ressaltou Francisco Cunha em artigo na Algomais, foi perdida com a deterioração urbana sofrida pela região que, por ironia, é fruto do primeiro plano urbanístico da cidade, concebido no governo de Maurício de Nassau em 1637.
Apesar dos problemas, a Ilha de Antônio Vaz apresenta muitas possibilidades, segundo Roberto Montezuma, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e coordenador-geral do projeto Recife Cidade Parque. Ela é uma centralidade urbana da mobilidade metropolitana e regional; possui um rico patrimônio histórico, artístico e cultural, material e imaterial; conta com espaços públicos que podem permitir uma integração social; possui uma diversidade de paisagens e é estuário comum dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipio, ou seja, é no entorno desta ilha onde as águas das bacias dos três rios se encontram e fluem para o mar.
Essas condições levaram Montezuma a conceber uma integração da ilha, a partir do projeto de pesquisa e inovação Recife Cidade Parque, que propõe uma nova visão de futuro para a capital pernambucana. A partir da malha hídrica da cidade, composta pelas bacias dos três rios e pela frente marinha, o projeto estuda integrar a natureza ao tecido urbano, por meio de um sistema de parques, que transformariam o Recife numa cidade-parque. “É uma visão de urbanismo em que se repensa e se reestrutura a cidade a partir do meio ambiente”, resume o arquiteto.
Dessa visão, Montezuma propõe um masterplan – ou um plano urbanístico – no qual um dos pontos chaves é transformar a Avenida Dantas Barreto num boulevard, ou seja, numa via arborizada, que seria um eixo estruturador que possibilitaria a integração da Ilha de Antônio Vaz. Assim, a mesma avenida que foi uma das responsáveis por transformar o território num verdadeiro quebra-cabeça demontado, seria, agora, parte da solução. Sua construção, nos anos 1940, provocou a demolição de vários edifícios históricos e repartiu a região, contribuindo para criar a atual percepção fragmentada da ilha.
Na sua nova configuração, a avenida faria uma “costura” do território, unindo espaços públicos de diferentes épocas, como explica Montezuma: “um boulevard capaz de costurar um passeio urbano, como um sistema de jardins, nascendo na Praça da República (antigo Parque de Friburgo), passando pela Praça do Diário, (antiga praça do comércio holandês), seguindo para o Pátio do Carmo (símbolo do barroco brasileiro), encontrando o recinto da antiga igreja dos Milagres (que foi demolida), envolvendo a praça Sérgio Loreto, até chegar, como apoteose urbana contemporânea, na bacia do Pina”. Essa apoteose seria o Parque das Águas, localizado no final da Dantas Barreto, na altura do empreendimento Novo Recife, no Cais José Estelita. Teria uma arquitetura imponente, muito verde, espaço para lazer e de contemplação para o estuário.
A partir desse trajeto transversal da avenida, seriam criadas conexões com as bordas da ilha e com o restante da cidade. Essas articulações se realizariam de diversas maneiras. Uma delas seria por meio de um sistema de parques: Parque da República, nas imediações do Palácio das Princesas, Parque das Águas; Parque Ferroviário, na antiga instalação da Rede Ferroviária Federal no Cais José Estelita, e o Parque do Povo, que seria implantado na Ilha do Zeca, que fica entre as comunidades do Coque (Ilha Joana Bezerra) e Caranguejo Tabaires (Ilha do Retiro), uma área considerada Zona Especial de Proteção Ambiental.
Outra forma de integração da Ilha de Antônio Vaz seria pela diversidade de espaços públicos (praças, edificações históricas, pátios, Av. Guararapes, polo jurídico etc), por meio de um sistema integrado de mobilidade (abrangendo caminhadas, bicicletas, ônibus, metrô, até o VLT e a possibilidade do teleférico, que foi implantado com sucesso em Medellín).
“A ideia desse projeto é a de que é preciso pensar o Centro de forma sistêmica para poder implantar a habitação. Não basta apenas ocupar o território, mas a forma como ele será ocupado é importantíssima”, adverte Montezuma.
O RETORNO DO GLAMOUR DA AV. GUARARAPES
Uma das joias da Ilha de Antônio Vaz é a Av. Guararapes, localizada no bairro de Santo Antônio. “Foi a primeira avenida volumetricamente projetada e foi considerada a Manhattan brasileira”, recorda Francisco Cunha. Mas, assim como as demais regiões do Centro do Recife, a então glamorosa e movimentada avenida, que abrigava comércio, cinemas e uma animada boemia, acabou impactada pelo esvaziamento e pela degradação do Centro.
Entretanto, surge a esperança de a Guararapes retomar o seu esplendor com o projeto de requalificação da icônica avenida, tendo como uma das estratégias o incentivo à habitação. A iniciativa é capitaneada pela Prefeitura do Recife e tem a coordenação do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) que contratou um consórcio de empresas (entre elas a renomada Jaime Lerner Arquitetos Associados, de Curitiba, e o escritório Pires Advogados) para estruturar um estudo de reabilitação urbana.
O ponto de partida é ressignificar o território por meio da elaboração de um masterplan de ordenamento e ocupação da área, associada a um projeto conceitual de arquitetura e engenharia, com referências do passado, do presente e de um futuro desejável. Esse projeto seria orientado pela tríade: sustentabilidade, diversidade e identidade. “A ideia é identificar modalidades de intervenção que possam utilizar ativos imobiliários e urbanísticos para catalisar e impulsionar um desenvolvimento de curto e médio prazo”, explica Sandra Pires, da Pires Advogados, acrescentando que a fase inicial de diagnóstico já foi concluída.
Entre as ações realizadas na fase de diagnóstico está o levantamento de 60 imóveis na avenida que poderiam ser recuperados para a habitação. Para cada um deles foram identificadas a caracterização das edificações e benfeitorias, o estado de conservação, se está tendo uso ou não, a identificação do proprietário e a situação fiscal (se tem dívidas). Os imóveis também foram avaliados a partir da possibilidade de expansão da área construída, da acessibilidade, de gerar diversidade de uso, de densidade de ocupação, a sua localização e inserção no contexto urbano, além do potencial paisagista, histórico e cultural.
Também foi realizado um levantamento da legislação e os principais instrumentos legislativos que pudessem contribuir para transformar os imóveis em moradia. A conclusão do consórcio foi bastante positiva. “Temos uma estrutura legislativa favorável à habitação”, constata Sandra Pires. Os programas habitacionais – como Minha Casa, Minha Vida, Programa de Democratização de Imóveis da União, Morar no Centro e Bom de Morar – são outro fator que contribuem para o uso residencial da Guararapes, segundo a advogada. A próxima etapa das atividades do consórcio é a estruturação e modelagem do masterplan.
Transformar uma parte das edificações da Guararapes em moradia enfrenta, segundo Sandra Pires alguns entraves, como a situação fundiária de alguns imóveis que têm propriedade compartilhada, o que torna mais difícil a negociação para serem requalificados. “A boa notícia em relação a esses 60 imóveis é que 60% são de monoproprietários”, ressalta Sandra. Entre outros obstáculos a serem enfrentados estão a cultura do Recife de preferir a construção nova e não o retrofit, ausência de regulamentação de alguns instrumentos urbanísticos e algumas restrições impostas pelo Plano Diretor.
Em compensação, a advogada ressalta existirem também aspectos que podem alavancar a transformação dos imóveis, como o valor histórico, paisagístico da região central, a proximidade com âncoras e clusters, a demanda latente por habitação, iniciativas públicas que podem mudar a percepção das pessoas em relação ao Centro (como a a PPP Morar no Centro e instalação do campus do IFPE no Edifício Trianon e onde funcionou Cine Art-Palácio), a restrição ao desenvolvimento imobiliário em outras áreas da cidade e a lei do Recentro. Essa lei constitui-se num plano de incentivos fiscais para atividades econômicas, moradias para fins de interesse social, construções ou intervenções destinadas à recuperação, renovação, reparo ou manutenção de imóveis situados no Centro.
Apesar dos desafios para requalificar o bairro de Santo Antônio, onde está a Guararapes, Sandra está otimista de que as mudanças vão acontecer. “Agora eu tenho mais do que esperança, eu tenho confiança porque estamos num momento político e econômico muito propício: o BNDES e o prefeito João Campos estão querendo fazer, assim como o consórcio e a população. Vamos acreditar!”
O EXEMPLO DO EDIFÍCIO SERTÃ
O otimismo de Sandra Pires encontra respaldo na ousadia do engenheiro Bruno Castro e Silva. Ele fez o primeiro retrofit de um prédio comercial para transformá-lo em imóvel residencial. O Edifício Sertã, localizado na Guararapes, pertence a sua família e foi construído na mesma época da avenida, nos anos 1940. Com nove pavimentos, antes contava com loja, sobreloja e sete andares que abrigavam 45 salas, alugadas para serviços, principalmente consultórios médicos, odontológicos e escritórios de advocacia.
“Essa avenida nas décadas de 40 e 50 era o ponto alto da cidade. Na esquina do Sertã havia uma delicatessen muito procurada como ponto de encontro das senhoras que iam fazer compras na Rua Nova e dos políticos que chegavam do interior e se encontravam para ir à prefeitura ou o palácio do governo”, lembra Bruno.
Essa situação permaneceu até meados da década de 1960 quando a avenida passou por transformações. “A delicatessen fechou, mas foi rapidamente substituída por uma agência bancária”, conta o engenheiro. Os médicos também se mudaram para outras regiões da cidade e as salas do edifício foram ocupadas sucessivamente por uma multinacional, 10 anos depois pelo Ministério do Trabalho, em seguida pela universidade Maurício de Nassau, até ficarem 33 anos sem ocupação.
Foi então que em 2016 Bruno contratou uma pesquisa que revelou a viabilidade de transformar o edifício para moradia. Ele chegou a ser desencorajado por um síndico de um prédio em frente ao Sertã que alugava quitinetes. “Ele disse que eu ia jogar dinheiro fora, mas com muita ousadia e paixão pela cidade resolvemos arriscar”. Desde 2020 suas salas comerciais se transformaram em 14 amplos apartamentos, com três quartos e mais de 100 m², onde reside moradores com perfil diversificado. “O retrofit ficou muito barato, o retorno sobre o capital foi satisfatório. O prédio serviu de instrumento e propaganda de demonstração que pode acontecer uma transformação na cidade”, garante o engenheiro.
*Cláudia Santos é jornalista e editora da Revista Algomais (claudia@algomais.com)