A reforma tem sido alvo de críticas e protestos. Há os que defendem a sua revogação total e aqueles que acreditam ser possível a adoção de ajustes
*Por Rafael Dantas
A provado durante o Governo Temer, o Novo Ensino Médio (NEM) é alvo de duras críticas dos docentes, estudantes e da classe política. As rejeições são desde a sua concepção até a sua implementação. O aumento da evasão escolar e a maior desigualdade entre estudantes das redes públicas e privadas são alguns dos legados nocivos que estão relacionados à política educacional, segundo os especialistas. Alvo de forte campanha contrária do movimento estudantil, esse modelo de aprendizagem já está balançando nos primeiros meses de gestão de Camilo Santana no Ministério da Educação e foi suspenso nesta semana.
O NEM, criado com a Lei nº 13.415 de 2017, mudou a estrutura do ensino médio, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola e instaurando uma organização curricular mais flexível. No papel, ele oferece os chamados itinerários formativos, que seriam a oferta de diferentes possibilidades de escolhas no currículo que tivessem foco nas áreas de conhecimento preferenciais dos estudantes e na formação profissional.
Essas são apenas algumas novidades da política educacional. Na proposta parecem interessantes aos alunos. No entanto, na prática, as escolas públicas não conseguiram aplicar quase nada de forma satisfatória. A realidade das instituições educacionais, sucateadas por um período de apagão do MEC e com uma forte ressaca dos prejuízos que sofreram na pandemia, revelou um cenário mais dramático do que antes da referida lei.
O desalinhamento do Novo Ensino Médio com o Enem é uma das críticas de Liz Ramos, educadora e sócia do Centro de Cultura Luiz Freire e membro do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Como a nova lei reduziu a carga horária de disciplinas obrigatórias, que seguem caindo nas provas do Enem, os estudantes da rede pública viram parte do tempo de estudos de disciplinas como história e sociologia abrirem espaço para novas matérias.
“O ensino médio é a última etapa da educação básica, um direito de todos os cidadãos e que também é preparatório para o Enem, que é a porta de entrada para a universidade. A reforma quebrou essa lógica. Reduziu as disciplinas obrigatórias, incluindo uma série de outras opcionais, que não ajudam no Enem. Ele criou também os itinerários formativos, mas não houve investimento significativo nenhum para as escolas criarem estruturas, como laboratórios, para ofertá-los”.
Os itinerários formativos seriam conjuntos de disciplinas, oficinas e núcleos de estudo, por exemplo, que os estudantes teriam a opção de escolher ao chegarem no ensino médio. A expectativa é que essas trilhas pudessem aprofundar o aprendizado em uma área do conhecimento (seja matemática, linguagens, ciências da natureza ou ciências humanas, por exemplo) e da formação técnica e profissional.
No entanto, sem investimentos mais robustos e sem uma coordenação nacional do MEC, cada Estado foi criando novas disciplinas. Além de muitas escolas não conseguirem oferecer sequer mais de um itinerário, nesse contexto de formação do currículo surgiram algumas matérias como “O que rola por aí”, “Brigadeiro caseiro” e “Mundo Pets”. Mesmo disciplinas menos alternativas, como “empreendedorismo”, sofrem críticas pelo fato dos docentes não terem sido formados para ofertá-las.
“Não dá para separar a discussão da infraestrutura das escolas com o Novo Ensino Médio. Além disso, é preciso considerar os professores, que têm formação, estudaram uma disciplina, mas hoje são obrigados a fazer várias coisas ao mesmo tempo. O professor tem que dar aula de projeto de vida, por exemplo, fazendo coisas sobre as quais não tem o menor conhecimento. Ninguém faz licenciatura de projeto de vida, que ninguém sabe exatamente o que é. Abriu-se o itinerário formativo, mas como a escola não tem professor concursado de mecânica, de auxiliar de escritório, não tem laboratorista, o que acontece?”, critica Liz Ramos.
ESTUDANTES VEEM A UNIVERSIDADE MAIS DISTANTE
Kleyton Carlos Silva, 16 anos, estudante da Escola de Referência de Ensino Médio Professor Epitácio André Dias, em Jaboatão dos Guararapes, está bastante frustrado com o NEM. Ele considera que a aplicação dessa nova política educacional mudou muito a rotina da escola, com prejuízo aos estudantes. “Mudou muita coisa. Seguimos o mesmo horário, mas a carga horária das matérias mudou. Diminuíram as de matérias essenciais, colocaram outras nos lugares que praticamente não ensinam nada”.
Ele relata que o tempo dedicado ao aprendizado de física, química, história e até matemática foi reduzido para abrir espaço para as matérias “Projeto de Vida” e “Como estudar?”. “Para os estudantes que realmente gostam de estudar, o Novo Ensino Médio não foi recebido muito bem. Fizemos protesto mas, infelizmente, é obrigatório. Temos professores na sala de aula que ensinam superbem quando é o assunto que eles dominam. Mas nessas novas matérias praticamente não temos aula, porque eles não sabem o que dar”, afirma o estudante do segundo ano.
Com pretensões de cursar Ciências Políticas no ensino superior, Kleyton considera que as mudanças na escola aumentam a desigualdade entre os estudantes da rede privada e pública na concorrência no Enem. “Esse Novo Ensino Médio veio para diferenciar o estudante pobre do estudante rico. Sabemos que isso não deve acontecer. É muito ruim você chegar na sua escola e não fazer nada alguns dias. É horrível. Pedimos de coração que nos ouçam, não pedimos o impossível. Não estamos lutando por superioridade, mas por educação, igualdade de oportunidade”, lamenta.
DESAFIO NAS MÃOS DO MEC
Gabriel Corrêa, diretor de Políticas Públicas do Todos Pela Educação, acompanha com preocupação os problemas vistos em diversas escolas públicas brasileiras que surgiram com a implementação do Novo Ensino Médio. “Esses problemas se dão, em boa parte, por equívocos no desenho da reforma, além dos erros de implementação. Eles não só aparecem em estudos e pesquisas, mas também no diálogo frequente que fazemos com profissionais da educação e estudantes de todo o País. Por outro lado, também entendemos que há elementos muito importantes na essência deste modelo que precisam ser preservados para avançarmos na garantia da aprendizagem. Voltar à estaca zero seria um prejuízo imenso e, por isso, defendemos o papel de coordenação do MEC para fazer os muitos ajustes necessários nas normativas, em diálogo com a comunidade escolar”.
Há um debate acalorado sobre a necessidade de se revogar ou de revisar a lei que implantou o Novo Ensino Médio. Nesta semana uma Audiência Pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco tratou da pauta. O estudante e vice-presidente da Ubes-PE (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas de Pernambuco), Inaldo Lucas, destacou que a reforma limita o acesso dos alunos de escola pública às universidades e sugeriu a revogação e o debate sobre um novo modelo.
“A posição da Ubes é de revogação. Entendemos que a proposta de 2017 não foi debatida com estudantes e aconteceram vários erros na sua implantação, o que temos visto em sala de aula. Estamos trabalhando com comitês para debater diretrizes em cada Estado. Um dos principais problemas que vemos está nos itinerários formativos pois a maioria das escolas não consegue atender essa proposta”, declarou Inaldo.
O vice-presidente da Ubes ressaltou que o problema dos itinerários tem feito alunos precisarem mudar de escolas e até de cidades para conseguir estudar. Outra crítica do líder estudantil é de que essa política pública tem sabotado as licenciaturas, permitindo o acesso de profissionais sem a devida capacitação nas salas de aula.
A senadora Teresa Leitão considera que vários erros do Novo Ensino Médio aconteceram pela falta de debate sobre a medida na sua formulação. Após a suspensão do projeto, anunciada nesta semana, ela afirma que haverá um novo processo de escuta dos estudantes, professores e da sociedade sobre as suas perspectivas para o ensino médio e transformações do modelo que foi aplicado.
“O Novo Ensino Médio tem um grande vício de origem que é a falta de debate. Quando a medida foi emplacada, os estudantes ocuparam as escolas, com críticas sobre esse modelo. O NEM em apenas um ano mostrou na prática a sua insuficiência em responder ao que se propôs. Após o Golpe de 2016, nos governos Temer e Bolsonaro, não houve acompanhamento da implementação nos Estados. O MEC deixou cada um por si e hoje está um desespero entre os estudantes. Não há um conteúdo consistente para formação profissional, ao mesmo tempo que o Enem está às portas”, declarou a senadora que assumiu a presidência da Subcomissão para Debater e Avaliar o Ensino Médio no Brasil no Senado Federal.
A senadora destaca que o ministro Camilo Santana está abrindo o debate para discutir esse Novo Ensino Médio, considerando ao mesmo tempo que o modelo anterior está superado e que o atual está distorcido. Liz Ramos é uma das defensoras de que todo o Novo Ensino Médio seja revogado. “Aumentaram as chances dos estudantes terem um desempenho fraco ou péssimo no Enem e a prática mostrou que os problemas do Novo Ensino Médio não tem solução a curto prazo. Ninguém muda a infraestrutura das escolas ou consegue formar professores em multidisciplina em 10 anos. Eu defendo a revogação. Antes nós tínhamos problemas, mas não podemos piorá-los, aumentando a desigualdade educacional”, declarou a senadora que assumiu a presidência da Subcomissão para Debater e Avaliar o Ensino Médio no Brasil no Senado Federal.
A senadora destaca que o ministro Camilo Santana está abrindo o debate para discutir esse Novo Ensino Médio, considerando ao mesmo tempo que o modelo anterior está superado e que o atual está distorcido. Liz Ramos é uma das defensoras de que todo o Novo Ensino Médio seja revogado. “Aumentaram as chances dos estudantes terem um desempenho fraco ou péssimo no Enem e a prática mostrou que os problemas do Novo Ensino Médio não tem solução a curto prazo. Ninguém muda a infraestrutura das escolas ou consegue formar professores em multidisciplina em 10 anos. Eu defendo a revogação. Antes nós tínhamos problemas, mas não podemos piorá-los, aumentando a desigualdade educacional”.
DIRETRIZES E APLICAÇÕES
O diretor do Todos pela Educação reforça essa percepção da inoperância do governo anterior nas políticas educacionais, mas defende algumas das diretrizes que estão no escopo do Novo Ensino Médio. “Temos enfatizado a importância da liderança do MEC, neste momento, após quatro anos de omissão do governo anterior, para promover os ajustes urgentes e necessários no ensino médio. Não podemos perder de vista que a essência do Novo Ensino Médio deve ser defendida e efetivada: a expansão da educação integral e a diversificação de itinerários com objetivo de aprofundamento do aprendizado dos jovens”, disse Gabriel Corrêa.
Entre as transformações a serem enfrentadas para ajustar a política educacional, Gabriel defende que é preciso corrigir algumas normativas, como a alteração do teto de horas na formação geral básica e a melhor definição dos itinerários. Além dessas medidas, o diretor da ONG afirma que é preciso ir além das transformações da escola. “Para termos um verdadeiro Novo Ensino Médio, é fundamental que o MEC assuma compromissos em relação a diversos outros pontos, como as melhorias substantivas na infraestrutura das escolas e maior apoio aos professores”.
Apesar da experiência precária de aplicação do Novo Ensino Médio, o professor da UFPE e coordenador de ciência e inovação na Proz/Joy Education Luciano Meira destaca que há um conjunto de princípios básicos nessa política que são defendidos pelo setor há anos. “Precisamos de mais tempo escolar, sem mais acúmulo de disciplinas. Os estados deveriam implementar suas políticas educacionais investindo de forma mais apropriada na educação em tempo integral. Em média há quatro ou cinco horas diárias no ensino médio. Isso é absurdo, é ridículo. A gente precisa caminhar em direção ao período integral. Todos concordam com isso. Há mais princípios importantes, como a educação técnica, concomitante, enquanto o jovem está no ensino médio. Não é que essa formação dará uma profissão, mas uma perspectiva de como o mercado de trabalho funciona”, afirmou Luciano.
O professor da UFPE avalia também que a possibilidade de o jovem escolher o itinerário a partir do seu projeto de vida é uma diretriz importante, mas não foi aplicada de forma adequada. “A maioria dos ensinos médios tem funcionado precariamente. Os itinerários são muito simplistas e sem conexão com a realidade dos jovens, que era o que se pretendia inicialmente. Os estados estão tentando se virar para fazer qualquer coisa para colocar no lugar porque virou lei. Não é assim que se faz. Está demonstrado por muitas pesquisas que os estudantes não estão satisfeitos. Não é que não estão satisfeitos com os princípios. Eles não estão satisfeitos com a implementação”.
As emoções estão acaloradas. A suspensão do cronograma do NEM pode ter aliviado as tensões, mas as soluções para uma reforma real do ensino médio ainda não estão prontas. Há um vasto conjunto de pesquisas e propostas já formulados por anos de reflexões acadêmicas e de pesquisas de instituições voltadas para a educação, que tem agora a oportunidade de se fazer ouvido pelo MEC. O relógio do ano letivo de 2023 é um dos agravantes, pois dentro de alguns meses os alunos dessas escolas vão prestar exames de acesso às universidades com o sentimento de que foram prejudicados por uma política desenhada de forma aligeirada e implantada sem olhar para os maiores interessados nela.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)