"O Conhecimento Dos Judeus Influenciou Pernambuco Nos Ideais Democráticos E Humanistas" - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
"O conhecimento dos judeus influenciou Pernambuco nos ideais democráticos e humanistas"

Revista Algomais

Entrevista com Daniela Levy: A saga dos judeus que chegaram ao Recife com os holandeses é abordada em livro lançado pela historiadora. Ela conta como eles influenciaram o Estado em vários aspectos e ajudaram a difundir aqui ideias democráticas e diz que a saída deles da cidade foi digna de um enredo de novela, com ataque de piratas, naufrágios e enfrentamento da Inquisição até chegarem em Manhattan. Foto: Leopoldo Conrado Nunes

Para a historiadora Daniela Levy, a saída dos judeus do Recife, no final do governo do Brasil Holandês, é comparável a um roteiro de novela. A pesquisadora não está exagerando. Ao embarcarem no navio Valk, rumo a Amsterdã, um grupo de 23 pessoas lutaram contra piratas, sobreviveram a um naufrágio, foram parar na Jamaica – à época colônia espanhola – onde enfrentaram a Inquisição. A única alternativa viável para sair de lá seria rumar para Nova Amsterdã, na América do Norte, a colônia holandesa mais próxima. Tempos depois, a cidade passa a se chamar Nova York e abrigar a maior comunidade judaica da diáspora.

Doutora em história social pela USP (Universidade de São Paulo) e autora de vários textos sobre esse período histórico, Daniela é paulista, esteve no Recife para participar de um congresso e lançar o livro Do Recife para Manhattan – Os Judeus na Formação de Nova York, editado pela Cepe. Na ocasião conversou com Cláudia Santos sobre a participação dos judeus no Brasil Holandês, a influência que tiveram na implantação dos ideais democráticos em Pernambuco e no surgimento do capitalismo. A historiadora também detalhou a saga que realizaram para ajudar a construir uma das maiores metrópoles do mundo.

sinagoga judeus

A história dos judeus que saíram do Recife para Nova York ainda é pouco estudada. O que a levou a realizar essa pesquisa?  

Sou judia e paulista. Morei uns anos em Nova York e, ao voltar, entrei no mestrado na USP.  Na busca por um tema de pesquisa, aceitei a sugestão da professora Anita Novinsky de estudar a história de judeus que saíram do Recife para Nova York. Aí, juntei a história dos judeus, que era algo do meu interesse, com Nova York, uma cidade que tenho apego emocional. 

Mergulhei nos arquivos na Jewish Historical Society, na parte de manuscrito da New York Library. Pesquisei, conheci descendentes de judeus que viveram no Recife. Ou seja, as coisas foram acontecendo para que eu desenvolvesse a pesquisa. A missão de contar essa história foi um presente na minha vida. Ela havia sido levantada a primeira vez por um historiador norte-americano chamado Jacob Rader Marcus. Depois dele, ninguém estudou mais o assunto. 

Eu usei a bibliografia dele, fui levantando documentos e, assim, descobri essa história. Há outros historiadores norte-americanos, como [Leo] Hershkowitz, que estudou sobre Asser Levy, um dos principais pioneiros que saíram do Recife, mas, ainda assim, é uma história pouco estudada. Entretanto, é muito intrigante, parece um enredo de novela, tem ataque de piratas, naufrágio, revolta dos indígenas norte-americanos, tem um pouco de tudo. 

O que levou os holandeses, predominantemente protestantes, a firmarem parceria com os judeus? Que interesses tinham em comum?

Quando o reino português passou a ser domínio da Espanha (período conhecido como União Ibérica),
a Holanda era inimiga da Coroa Espanhola. Por isso, o rei da Espanha proibiu os holandeses de comercializarem o açúcar, que era enviado de Portugal para ser refinado e distribuído pela Holanda. Em resposta, os holandeses montaram a Companhia das Índias Ocidentais – que era uma companhia de expansão comercial das colônias do além-mar – e resolveram vir para o Brasil. Mas precisavam de mão de obra, pessoas que conhecessem a língua portuguesa e o território brasileiro. 

A primeira vez que vieram para o Brasil, foram para a Bahia, mas não deu muito certo porque tinham poucos aliados que nem conheciam o território e nem falavam português. Na segunda vez, precisavam de soldados e contrataram mercenários de todas as nacionalidades: escoceses, ingleses e judeus portugueses que haviam fugido para Amsterdam, na Holanda, em 1536, para não serem presos pela Inquisição e poderem retornar ao judaísmo naquele momento. Isso porque no governo holandês havia liberdade religiosa. Então, a questão da língua foi importante para os negócios. 

No livro, a senhora conta que os judeus sofreram muita discriminação no Recife por parte de protestantes e cristãos. Além das diferenças religiosas, esse comportamento também envolveu interesses econômicos, o temor da concorrência?

Quando os judeus chegaram aqui, o governo holandês prometia a liberdade religiosa, mas veio também um grupo de protestantes conservadores que tinham certa reticência em aceitar judeus. No início, era algo mais ligado a questões religiosas, depois começou a haver uma rivalidade, não só desse grupo religioso, mas dos holandeses em geral. 

No começo, os holandeses precisavam dos judeus, que conheciam a língua portuguesa e faziam a intermediação. Com o passar do tempo, eles começaram a falar português e não precisavam mais pagar comissão aos judeus para intermediar os negócios. Além disso, havia os portugueses católicos, que também tinham uma questão religiosa com os judeus. Isso porque os judeus falavam tanto com os luso-brasileiros, quanto com os holandeses que viviam aqui, tinham facilidade nos negócios devido a essa rede comercial que estabeleceram. Então, para os católicos e para os protestantes, era uma concorrência desfavorável, eles achavam que era injusto e, assim, criou-se essa rivalidade. 

Apesar das diferenças, muitos senhores de engenho, num primeiro momento, aliaram-se aos holandeses. Por quê?

Os senhores de engenho acabaram negociando com os holandeses por uma questão de sobrevivência. Além disso, muitos deles eram parentes desses judeus e, por isso, tinham facilidade de negociar melhor o seu açúcar e tiveram um bom relacionamento com o governo holandês, principalmente na época de Nassau. Ele era um homem de grande tolerância, um grande humanista, entendia que a boa convivência era importante para o desenvolvimento. 

Com o passar do tempo, uma das promessas da Companhia das Índias Ocidentais era a de que quem viesse com eles poderia adquirir terras no Brasil. Isso era proibido aos judeus na Europa desde a Idade Média. Então, esses judeus vieram para cá e puderam adquirir engenhos. 

Como era a vida dos judeus, no Recife, nessa época?

Eles conseguiram estabelecer uma grande comunidade, importaram o modelo de Amsterdam, que era baseado nos pilares relacionados ao ciclo da vida judaica. No pilar do nascimento, é preciso ter a sinagoga, onde é feito o brit milá (circuncisão do menino), rituais como casamento e para poder cuidar da vida religiosa. Também é preciso haver escola. No judaísmo, há uma lei que a torna obrigatória, onde há mais de um judeu, deve haver uma escola. Todo judeu tem que saber ler e escrever para aprender a Torá (livro sagrado do judaísmo). 

Tem que haver também hospital e programas de assistência social. Então, eles importaram um instituto de caridade da Holanda, que cuidava de viúvas e órfãos. Tem que ter ainda um cemitério para fazer o enterro de acordo com as regras judaicas. Também há a preocupação com as regras alimentares, tem que ter uma pessoa que saiba abater os animais de acordo com os rituais judaicos, por exemplo. 

RuadosJudeus

O fato de não poderem adquirir terras na Europa, fez com que os judeus desenvolvessem outras habilidades laborais como a medicina e o comércio. Como esse conhecimento influenciou o Recife?

Os judeus se empenharam muito nas profissões ligadas ao estudo, como direito e medicina. Quando os holandeses vieram para cá, vieram médicos, engenheiros, bacharéis em direito, pesquisadores, como botânicos, vários especialistas que catalogaram plantas, conforme comprovam as gravuras do Frans Post. 

Também vieram poetas, como o Daniel de Barrios, e joalheiros. Em Amsterdã e na Antuérpia, havia uma comunidade de joalheiros muito forte. Muitos vieram para se dedicar ao comércio e tinham parentes espalhados em vários países criando redes internacionais de negócios. Também vieram pessoas para coletar impostos, financistas, contadores. Saber ler e escrever fazia com que fossem uma mão de obra importante também na administração pública, para cargos políticos, na economia. 

O Século 17 é conhecido como o século dos homens de negócio que eram também chamados de Gente da Nação. Gonçalves de Mello tem um livro com esse nome, que fala desses grandes comerciantes da comunidade judaica no Recife com muitos detalhes. Todo esse conhecimento dos judeus influenciou Pernambuco porque a mentalidade desses homens judeus era muito avançada para a época, já apontava para os ideais democráticos e humanistas do Iluminismo. Essa mentalidade ficou arraigada na população nordestina, principalmente no Recife, tanto é que movimentos emancipatórios começaram antes em Pernambuco. A luta pelo respeito à democracia, a resistência, a força humana de manter seus ideais é muito forte aqui. 

Como foi a saída dos judeus e dos holandeses de Pernambuco?

Em parte se deu de forma amistosa porque, quando eles perderam a batalha, havia uma necessidade de negociação para a saída. O general português Francisco Barreto teve boa vontade com os holandeses, que exigiram respeito aos judeus, pois muitos deles tinham sido batizados em Portugal. E a Inquisição só tinha jurisdição sobre a pessoa batizada, sobre o convertido, o cristão-novo. Como era uma instituição da Igreja Católica, só aquele que tinha sido batizado podia responder ao tribunal. Assim, o general segurou a Inquisição por um tempo e deu o prazo de meses para que os judeus saíssem. Caso contrário, a Inquisição voltaria forte e não teria como ser controlada. 

Mas era muito difícil para os judeus abandonarem tudo que haviam construído, como as suas propriedades. Alguns conseguiram deixar representantes aqui e receber os lucros, mas a maioria pegou o que pudesse carregar e foi embora do Recife. Foi uma saída atribulada com grupos em vários navios. Houve um grupo que conseguiu voltar para Amsterdã, um que foi para o Caribe, que também era colônia holandesa, e fundou as comunidades judaicas do Caribe. 

Teve um grupo que foi atacado por piratas no caminho, naufragou, foi socorrido por uma fragata francesa e levado para Jamaica, que era colônia espanhola. A Inquisição espanhola fez um levantamento e os que tinham sido batizados ficaram lá, uns ficaram presos, outros ficaram livres e conseguiram sair após a negociação com o capitão de outro navio que falou: “posso levar vocês para o porto mais perto, é o lugar mais barato que eu consigo, que é a outra colônia holandesa”. O porto mais perto era a Nova Amsterdam, que é hoje Nova York. 

A vida desses judeus em Nova Amsterdam não foi fácil, especialmente pela figura do governador Peter Stuyvesant, que era um calvinista muito religioso e não gostava de nenhuma outra religião além da dele. Além disso, Nova Amsterdam era pequena, não tinha uma economia forte. Era uma comunidade de indígenas que estava sempre em conflito com os holandeses, não tinha nenhum produto de interesse comercial para a época. O governador disse que não havia dinheiro para sustentar os judeus e, então, a comunidade judaica de Amsterdam teve que interceder, começou a mandar dinheiro, eles começaram a se estabelecer e, aos poucos, foram conquistando os direitos, sempre com luta jurídica, a duras penas. 

Hoje Nova York é a maior comunidade judaica da diáspora. Como foi esse processo a partir da expulsão dos holandeses? 

Em 1654 o rabino de Amsterdam, vendo muitos judeus voltando para lá e sem trabalho para todos, negociou a possibilidade do retorno de judeus para a Inglaterra. Desde o Século 12, era proibido ao judeu entrar na Inglaterra, só poderia entrar como cristão-novo. Então, o rabino de Amsterdam negociou com o [político inglês Oliver] Cromwell, que era burguês e viu que os judeus poderiam colaborar no desenvolvimento econômico. Isso foi importante para o capitalismo comercial. Alguns desses judeus que foram para a Inglaterra, depois migraram para a América do Norte, se juntaram com esses de Nova York e foram formando essa comunidade. Em 1660, a Inglaterra derrotou os holandeses e assumiu o território de Nova York. 

Muito se fala na influência dos protestantes no desenvolvimento do capitalismo como, por exemplo, na obra de Max Weber, mas a contribuição dos judeus é pouco mencionada. Por que isso acontece? 

Como mencionei, judeus foram importantes para o capitalismo comercial. A saída deles da Espanha e de Portugal, inclusive, contribuiu, de certa forma, para a decadência desses países. Há pesquisas que tratam da colaboração judaica para o desenvolvimento do capitalismo comercial. Mas, em geral, não se fala tanto porque a historiografia tradicional excluiu os judeus, como se eles não existissem. Assim, não se fala dos judeus na Revolução Francesa, no desenvolvimento das tecnologias para as Grandes Navegações. 

Em relação às perdas ibéricas, a Espanha perdeu quando expulsou os judeus e todos aqueles especialistas no desenvolvimento de aparelhos, estudos náuticos, cartografia, cosmografia, conhecimentos relacionados à navegação. A época do Sefarád (nome hebráico para a Penísula Ibérica)  foi a época de ouro, quando judeus e muçulmanos desenvolviam os estudos nas academias de Toledo.  

Já Portugal, engordou a Escola de Sagres com essa mão de obra e tornou-se pioneira nas Grandes Navegações. O país também decretou a expulsão dos judeus mas, ao perceber que perderia o trabalho deles, obrigou todos a se converterem em cristãos-novos. Por isso, a era dos cristãos-novos é a partir dessa conversão forçada em 1497, quando os judeus estavam no porto, aguardando os navios para partirem para outros lugares, e o rei de Portugal, Dom Manuel, mandou a guarda cercar todos. Daí, a expressão “ficar a ver navios”.  Dizem que os guardas arrastavam as pessoas pelos cabelos e os padres passavam jogando água benta, batizando os judeus forçosamente. Foi muito violento. Cronistas contam que um pai judeu ficou tão desesperado que matou os quatro filhos sufocados embaixo do talite (xale que eles usam para rezar) para que não se convertessem. 

Ou seja, o rei Dom Manuel tirou o nome das pessoas, a identidade, as tradições, os costumes e fez nascer uma nova pessoa. Ele trocou o nome, os costumes, a religião, mas apenas externamente, pois internamente, tudo aquilo está impregnado na alma, não se troca essa bagagem cultural, eles a levaram para os descendentes. 

Mas, no livro, a senhora também fala de uma certa crise de identidade do cristão-novo. Por que esse sentimento aflorava?

Era muito difícil para o cristão-novo se encaixar no judaísmo ortodoxo e quando Amsterdam constituiu a comunidade judaica, com a chegada dos judeus de Portugal, eles precisavam se refazer e aí se acreditava que precisavam ser mais conservadores para poder conseguir resgatar os princípios. Esse conservadorismo dificultava muito para o cristão-novo retornar, porque ele já tinha costumes misturados, ele já não era judeu, nem cristão.

Havia alguns que diziam: “prefiro ser uma mosca do que ser um cristão ou do que ser um judeu”. Eles tinham essa dificuldade em se encontrar, que é o que a Anita Novinsky trouxe da alma dividida, depois o Edgar Morin também resgatou essa ideia. Mas também havia os que se identificavam e falavam: "a minha alma está muito ligada ao judaísmo, quero ser um judeu conservador”. 

Alguns fizeram circuncisão já adultos, aqui, na época dos holandeses. E teve aqueles também que falaram: "Não quero mais saber de religião". E se tornaram céticos, descrentes. Tinham aquela ligação com o judaísmo pelo seu passado histórico, pela identidade dos antepassados, mas não uma identidade religiosa. Então, havia vários tipos de judeus e de cristãos-novos. O judeu pode ter ido para vários lugares, mas ele sempre foi muito fiel ao país que o recebeu. Tanto o judeu que foi para Amsterdã era fiel ao governo holandês, como o português era fiel ao Império Lusitano, por serem muito ligados às suas raízes. 

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