O desafio para ofertar água e tratamento de esgoto em Pernambuco – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

O desafio para ofertar água e tratamento de esgoto em Pernambuco

Embora haja um consenso no Brasil de que o Marco Legal do Saneamento tenha como mérito estabelecer metas para a universalização dos serviços, há divergências sobre como a iniciativa privada deve atuar nesse processo.

*Por Rafael Dantas

O saneamento de Pernambuco vive uma situação dramática e crônica. Embora 96% da população esteja conectada ao sistema de abastecimento de água, 4,3 milhões de pessoas convivem há décadas com rodízios. Algumas cidades do interior, como Exu, no Sertão do Araripe, contam apenas com dois dias de água por mês. A cobertura de coleta e tratamento de esgoto no Estado é ainda muito pior: apenas 30%, segundo dados da Compesa. Esses números cobrem somente as áreas urbanas.

Diante da escassez hídrica e das deficiências nas estruturas de distribuição de água, a situação de abastecimento é crítica mesmo em cidades com intensa atividade econômica. Segundo informações da Compesa, em Santa Cruz do Capibaribe, um importante centro de confecções, o fornecimento de água é limitado a apenas cinco a cada 25 dias. Da mesma forma, em São Bento do Una, um gigante polo avícola, com significativa produção de aves e ovos, a disponibilidade de água é restrita a quatro dias, enquanto as torneiras permanecem secas por 26 dias.

“Esse é um drama com o qual o pernambucano aprendeu a conviver. As pessoas vivem em regime de conservação de água. Quase todo o Estado de Pernambuco está em regime de rodízio. Pouquíssimas cidades têm água 24 horas por dia”, afirmou o presidente da Compesa, Alex Machado Campos, em seminário realizado pelo Crea-PE (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco).

“Esse é um drama com o qual o pernambucano aprendeu a conviver. As pessoas vivem em regime de conservação de água. Quase todo o Estado de Pernambuco está em regime de rodízio. Pouquíssimas cidades têm água 24 horas por dia”. Alex Machado Campos

Enquanto a média nacional de disponibilidade de recursos hídricos é de 35 mil metros cúbicos de água por habitante por ano, em Pernambuco a média é de apenas 1.270 metros cúbicos por habitante por ano. “Estamos abaixo do que a ONU considera como índice aceitável que é 1.500 metros cúbicos por habitante por ano”, alertou Campos.

Como a pressão social por acesso à água é muito maior do que pela estruturação das redes de esgoto, os investimentos ao longo dos anos foram mais focados em distribuição. Para se ter ideia, na Região Metropolitana do Recife, após 11 anos da PPP (parceria público-privada) do Saneamento, a cobertura de esgotos é ainda de apenas 38%. Em 2013, eram 30%.

Após a aprovação do Marco Legal do Saneamento, em 2020, Pernambuco (e todo o País) começou uma corrida contra o tempo para atingir metas ousadas de universalização desses serviços até 2033. A lei estabeleceu como alvo atingir 99% do acesso à água – sem sistemas de rodízios – e 90% de conexão à rede de coleta e tratamento de esgotos. Entre 2019 e 2023, Pernambuco recebeu investimentos de R$ 11,6 bilhões no setor. Aproximadamente um terço desse valor veio da BRK Ambiental, na PPP do Saneamento da RMR (Região Metropolitana do Recife). Porém, o secretário-executivo de Parcerias e Projetos Estratégicos do Governo do Estado, Marcelo Bruto, revelou que para atingir a meta são necessários ainda R$ 30 bilhões de investimentos.

“A Compesa só nos últimos anos captou mais de R$ 3 bilhões, de diferentes fontes, para executar nos próximos anos. Está estudando PPPs para o sistema de produção de água. Só na parte de produção e segurança hídrica, mais a PPP da RMR, temos mais de R$ 10 bilhões para serem feitos de investimentos nos próximos 10 anos. Além disso, há o desafio do saneamento rural, que é outro investimento forte que o Estado precisa continuar fazendo”, elencou Marcelo Bruto. Há cerca de R$ 900 milhões captados para o saneamento rural.

O presidente da Compesa lembrou que os prazos e metas do contrato com o parceiro privado da PPP do Saneamento na RMR, assinado em 2013, não coincidem com aqueles estabelecidos no Marco do Saneamento. Nesse cenário, ele prometeu ir para uma “grande repactuação com a BRK a fim de que a gente possa restabelecer o reequilíbrio na PPP, uma vez que vai ter muito recurso público investido em esgoto”.

MARCO DO SANEAMENTO ESTIMULA PRIVATIZAÇÕES

O Marco Legal do Saneamento, elaborado em 2020, sendo uma atualização da Política Federal de Saneamento Básico, de 2007, recebe elogios e críticas dos especialistas do setor. A grande contribuição dessa lei, na avaliação do engenheiro Antonio Miranda, membro do Comitê Técnico Permanente do CREA-PE, foi o estabelecimento das metas. Antes, cada Estado ou município aportava investimentos nessas infraestruturas a depender da disponibilidade, sem parâmetros razoáveis ou prazos. “Esse marco legal estabeleceu metas porque, até então, as ‘Compesas’ e serviços municipais trabalhavam da seguinte forma: eu vou fazer o que eu posso, no prazo que eu conseguir e com o dinheiro que tiver. Não tinham obrigações. Era fazer o melhor possível e ponto final. Trazer uma obrigação com as metas é o lado bom”, afirmou Antonio.

“A lei não foi pensada nos benefícios sociais, econômicos e ambientais. Ela tem o objetivo de estimular a participação do setor privado, muito mais do que à qualidade da prestação de serviços adequados à população”. Antonio Miranda

Por outro lado, a lei tem entre suas características o estímulo à privatização do saneamento. Se há um consenso da gravidade da falta de acesso à água e do insuficiente sistema de coleta e tratamento do esgoto, mas há um grande dissenso sobre a venda das companhias de saneamento estatais para a iniciativa privada. “A lei não foi pensada nos benefícios sociais, econômicos e ambientais. Ela tem o objetivo de estimular a participação do setor privado. Então, é uma lei voltada à privatização, muito mais do que à qualidade da prestação de serviços adequados à população”, afirmou o engenheiro.

Após a aprovação do Marco Legal do Saneamento, vários Estados iniciaram o processo de entregar as empresas ou parte dos serviços para a iniciativa privada. Em São Paulo, por exemplo, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) foi privatizada por R$ 14,8 bilhões. A partir de setembro, a empresa terá a gestão já pela iniciativa privada.

No Rio de Janeiro, o processo de venda da empresa pública que prestava o serviço, a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro), começou em 2021. Em Alagoas, a Casal (Companhia de Saneamento de Alagoas) ficou responsável apenas pela captação e tratamento da água, repassando para o parceiro privado a distribuição para os clientes na Região Metropolitana de Maceió.

TENDÊNCIA INTERNACIONAL É CONTRÁRIA À PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

No entanto, o movimento do Brasil de avançar para o repasse desses serviços ou das empresas de saneamento para a iniciativa privada está na contramão das tendências internacionais. De acordo com o pesquisador Léo Heller, ex-relator especial da ONU para Direitos Humanos à Água e Saneamento, esses processos aconteceram no mundo principalmente a partir da década de 1990. Mais ou menos 35 anos depois, que é o período típico de várias concessões no Brasil, algumas centenas desses sistemas retornaram ao poder público.

No seminário promovido pelo CREA-PE, Léo Heller afirmou que nessas tomadas de decisão que estão acontecendo no Brasil nos últimos anos há uma falta de “revisão de literatura”. Em outras palavras, ele expressa que se houvesse um olhar para o que aconteceu no cenário internacional e que já está registrado nas publicações científicas, os esforços de universalização do saneamento não teriam como principal aposta a iniciativa privada.

“Está havendo um forte movimento de reversão dessas privatizações. Existe um estudo, um levantamento muito criterioso, que mostra que entre 2000 e 2019 ocorreram 330 casos no mundo de remunicipalização [o termo utilizado de forma internacional]. Então, eles voltam para a esfera pública”, afirmou Léo Heller, fazendo referência ao estudo.

Há desde grandes cases latino-americanos, como na Bolívia e na Argentina, como nos países europeus. As motivações passam por descumprimento de contratos, queda na qualidade de prestação dos serviços, dificuldade de regulação e aumentos elevados nas tarifas. No Reino Unido, por exemplo, Léo Heller ressalta que os preços da água aumentaram 360% entre 1989 e 2023. Nesse mesmo período, a inflação geral do país foi de 145%. Uma das queixas da experiência britânica foi a falta de investimentos, que é justamente um dos problemas que o Brasil pretende atacar com a atração da iniciativa privada.

“Está havendo uma forte reversão dessas privatizações. Existe um estudo, muito criterioso, que mostra que entre 2000 e 2019 ocorreram 330 casos no mundo de remunicipalização. Então, os serviços voltam para a esfera pública”. Léo Heller

“Cidades no mundo inteiro avaliaram que o caminho da privatização não era o que melhor respondia aos seus interesses. Muitas vezes essa remunicipalização se deu simplesmente pela não renovação do contrato. Mas houve casos em que os governos precisaram rescindir o contrato, com as empresas indo para as cortes de arbitragem internacionais. Isso gerou indenizações muito altas e mostrou que não é trivial romper um contrato. O Brasil é um caso único de um país no mundo que está apontando para esse caminho da privatização, como que ignorando todo o acúmulo da experiência internacional”, afirmou Léo Heller.

CASO PERNAMBUCANO

No seminário promovido pelo CREA-PE, o presidente da Compesa e o secretário-executivo de Parcerias e Projetos Estratégicos do Governo do Estado informaram que os planos para o Estado são de uma concessão parcial. Alex Campos foi taxativo ao afirmar que a Compesa não será privatizada. No entanto, dos atuais serviços que estão sob a gestão da companhia, permaneceria a captação e o tratamento da água.

Num modelo, que está sendo aprofundado e estudado, vamos ter a Compesa investindo em infraestrutura e segurança hídrica. E atrair investimentos no front de distribuição e no esgotamento sanitário”. Marcelo Bruto

Marcelo Bruto defendeu que além de muita presença do estado, Pernambuco precisaria também de muita presença da iniciativa privada para superar os desafios do setor. “O melhor desenho que está sendo pensado para Pernambuco e aprofundado é um modelo de concessão parcial”. O gestor afirma que o modelo é baseado em uma experiência que vem de Portugal.

“Está sendo pensada a atuação do Estado na captação e entrega de água tratada. Dentro desse modelo, que está sendo aprofundado e estudado, vamos ter a Compesa investindo em infraestrutura e segurança hídrica. E atrair investimentos no front de distribuição e no esgotamento sanitário”, afirmou Marcelo Bruto.

O secretário afirmou que atualmente estão sendo aperfeiçoados estudos de engenharia e demanda, estão em desenvolvimento os insumos para os planos de saneamento de água e esgoto. Além disso, está em desenvolvimento uma área também de governança e regulação para gerenciar os contratos. “Nossa expectativa é que todos os estudos se encerrem ao longo deste semestre. Vamos passar por um percurso do debate com o poder concedente, mas isso terá que ser discutido de forma compartilhada com os municípios e com o emprego da consulta pública, para sair com o melhor projeto do Estado, e com o Tribunal de Contas”.

DIFICULDADE DE REGULAÇÃO

Existem pontos sensíveis na concessão que não podem ser ignorados. Um deles é o prazo. A assinatura de um contrato de 35 anos, que vai cobrir o que seria equivalente ao mandato de mais de oito gestões do Governo do Estado, é um ponto de alerta apontado tanto por Léo Heller, como por Antonio Miranda. Isso porque, passada a gestão para a iniciativa privada, poder estadual e os municipais têm pouca margem de ajustes.

“Qualquer que seja o resultado da modelagem dessas concessões, ela terá um prazo de validade muito grande. Diferentemente de planos elaborados com governos em que, ao ter mudanças políticas, é possível refletir diferentes estilos e formas de enfrentar o problema, com no máximo oito anos de duração, uma concessão privada dura entre 30 e 35 anos. Mesmo que um governador eleito tenha uma ideia muito boa sobre como sanear, ele vai encontrar uma situação que não vai conseguir mexer. Esse é o contexto da razão pela qual o CREA-PE propõe esse debate com a população”, alerta Miranda.

A regulação, que seria o caminho natural para gerenciar essa relação com os serviços públicos realizados por empresas privadas, como em outros setores, tem um histórico de extrema fragilidade. Mesmo na experiência internacional, dos países europeus, o poder regulador desses contratos foi insatisfatório, gerando a necessidade de retomada dos serviços ao setor público.

“Nós não temos uma tradição boa de regulação, de fiscalização e de imposição de penalidade. A telefonia celular é um exemplo. Mesmo com toda a concorrência que tem, quando temos um problema, a gente tem dificuldades até de se comunicar com as empresas. Isso em um serviço privado que tem concorrência”, afirma o engenheiro e membro do CTP do CREA-PE.

Além disso, o saneamento é um setor típico de um monopólio natural. O que isso significa? Diferentemente da telefonia, em que há diferentes empresas disputando os clientes pela qualidade do serviço ou pelo preço, na oferta de água isso não será possível. Há uma ausência de concorrentes, que representaria um cenário mais comum de atuação da iniciativa privada.

Antonio Miranda aponta outro aspecto que está no seu campo de preocupações, as chamadas outorgas onerosas. Elas são pagamentos que podem ser previstos nos editais para que as empresas façam ao poder público – aos caixas dos estados e municípios – por conta das concessões.

O engenheiro, enquanto técnico, não em uma posição do CREA-PE, considera que as outorgas onerosas deveriam ser proibidas no Brasil. Na sua avaliação, ao serem incluídas no pacote desses contratos, o debate sobre as melhores alternativas para o atendimento à população fica em segundo plano, em detrimento da discussão dos valores que os entes públicos pretendem arrecadar.

Além disso, o custo dessas outorgas onerosas no longo prazo acabará sendo pago pela população, embutido na tarifa. Isso torna a conta da sustentabilidade econômica mais difícil, tanto do lado de uma possível empresa concessionária, como no bolso da população, que pagará o adicional desse valor ao longo das décadas de prestação de serviço.

A perspectiva da manutenção de uma tarifa justa é outro fator crucial. No seminário foi destacado que 64% das famílias em Pernambuco estão inscritas no CadÚnico do Governo Federal. Ou seja, praticamente dois terços dos clientes dos serviços de saneamento no Estado são de baixa renda. Ao todo, 1,6 milhão dessas famílias (39%) estão em situação de pobreza. É um retrato do mercado consumidor que expõe uma extrema fragilidade de absorver aumentos tarifários.

ALTERNATIVAS NA MESA

A mobilização de recursos para vencer o déficit de infraestrutura e de prestação de serviço no setor tem alguns caminhos possíveis na análise dos engenheiros, além da realização de grandes concessões. No seminário, uma das alternativas propostas para vencer o desafio do saneamento foi promover um grande processo de reestruturação da Compesa. A empresa seguiria com a titularidade dos serviços, mas estabelecendo novas prioridades e com uma nova cultura corporativa.

Outra possibilidade é com o avanço de contratos de performance. Trata-se de um modelo em que a empresa contratada recebe pelo resultado que obtém, não apenas pela execução de um trabalho. Em outras palavras, ao invés de receber, por exemplo, por cada medidor instalado, a remuneração é proporcional ao aumento de faturamento que a instalação proporcionou. A adoção de PPPs específicas é outra alternativa em discussão pelos engenheiros, o que difere das grandes concessões ou da passagem das ações das empresas para a iniciativa privada.

“Não existe uma fórmula mágica. Uma fórmula possível é de tentar fazer com que a empresa pública maximize as suas eficiências, as suas prestações de contas e tenha uma gestão a mais profissionalizada possível, agregando o privado na medida do que for necessário”, ponderou Antonio Miranda.

Diferente dos encanamentos e tubulações, que não estão visíveis no nosso cotidiano, a aprovação do Marco Legal do Saneamento, em 2020, e a abertura atual do debate sobre os rumos de Pernambuco nesse setor colocam luz nesta pauta sensível para a qualidade de vida no Estado. “O CREA-PE deseja construir alternativas que valorizem o nosso Estado, a população e as nossas profissões. Neste debate temos que olhar para o passado, sobre o que construímos ao longo do tempo, onde chegamos e o que nós queremos fazer para o futuro. O futuro passa obrigatoriamente por planejar e buscar as melhores alternativas, porque água é vida”, afirmou Adriano Lucena, presidente do CREA-PE.

Adriano Lucena – na foto durante o seminário no CRE-PE que discutiu o saneamento em Pernambuco – defendeu ser necessário planejar e buscar as melhores alternativas sobre a questão. “Porque água é vida”, afirmou.

Há muitos fatores técnicos, econômicos e sociais – além de toda a problemática ambiental, impactada pelas mudanças climáticas – a serem considerados nas tomadas de decisão. Sem essas análises, corremos o risco de jogar por água abaixo todo um conhecimento construído no Estado em décadas de convívio com racionamento e a gestão dos recursos hídricos. Com 88,7% do território inserido no semiárido, é fundamental não desperdiçar essas contribuições no planejamento do futuro do saneamento.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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