Um filme brasileiro que captura o espírito do tempo e desafia padrões históricos da Academia
*Por Romero Maia
"A realidade apenas se forma na memória" (Marcel Proust)
O longa brasileiro “O Agente Secreto” vai ganhar ao menos um Oscar. Mais que isso. Vai ganhar pelo menos dois bonecos gigantes no carnaval de Olinda. Um de Wagner, outro de Tânia Maria. E, se brincar, mais um de Kleber por ter botado para rodar a camisa da troça carnavalesca “Pitombeira dos Quatro Cantos”. Podem me cobrar essas previsões. Garanto porque não é tão difícil prever esse merecido futuro coroado num momento em que o filme já acumula dezenas de troféus, e quando se capta com atenção o espírito do tempo.
O Oscar já se abriu um pouco mais para, como diziam os ingleses, o “resto do mundo”. A maioria dos votantes não é mais composta por americanos natos. Hoje, essa proporção é quase 30% a mais de pessoas com outras nacionalidades entre os cerca de 10 mil jurados. Com isso, filmes de diretores de fora do eixo Estados Unidos–Reino Unido ficaram um pouco melhor na fita desde 2012. A partir das premiações em anos recentes é possível perceber que a diversidade cultural se tornou algo caro na apreciação dos jurados. Ainda mais quando se deparam com enredos que empreendem uma jornada ao extraordinário por meio da crítica social realista, e vice-versa. Crítica essa que é levada a efeito por meio de protagonistas psicologicamente combalidos pelas circunstâncias da trama, em vez de grandes heróis inexpugnáveis.
Isso fica bem nítido quando observamos os prêmios de melhor ator masculino distribuídos desde a pandemia: Coringa, Meu Pai, King Richard, A Baleia, Oppenheimer e O Brutalista. No filme “O Agente Secreto”, temos um homem de classe média econômica mas da elite intelectual, cientista com formação internacional e com carreira brilhante na universidade pública brasileira, que se vê forçado a viver com duas identidades depois de ter entrado em conflito com agentes da elite econômica. A perspicácia fica por conta do fato de que nenhuma dessas identidades é a de agente secreto, gerando no público a inquietação sobre quem ou o que, afinal, seria o enigmático “agente secreto”.
Importante notar também que já estamos a quatro premiações sem que tenhamos um diretor premiado nascido num país de língua não inglesa. Esse reconhecimento do impacto da diversidade na direção foi uma tônica na década passada, e nos anos iniciais da pandemia. Um reequilíbrio de premiações seria esperado se admitirmos que grupos de tomada de decisão tendem a apresentar padrões cíclicos. A originalidade da direção de “O Agente Secreto” fica evidente na diversidade de referências, de Babenco a Spielberg, e no brilhantismo com que conduziu tantos figurantes, atores inexperientes e medalhões com a mesma elegância capaz de fazer tudo simplesmente fluir na tela.
Para extrair o resultado mais natural possível desse time de atores radicalmente diversificado, um longa como esse requer camada extra de complexidade no treinamento do elenco e numa caracterização visual que não tinha o direito de ser menos que excelente. Um milímetro a mais ou a menos poderia truncar toda a obra. Os personagens precisavam se fundir ao Recife de 1977. E assim foi feito. O que me lembrou muito “Licorice Pizza”, do outro gênio Paul Thomas Anderson, que vem forte para o Oscar com “Uma Batalha Após a Outra”.
No entanto, a meu ver, não teve uma direção de arte (Thales Junqueira), fotografia (Evgenia Alexandrova) e figurinos (Rita Azevedo) tão impressionantes quanto o filme do Recife. E ainda podemos ter uma surpresa caso a espontaneidade de uma “Dona Sebastiana”, a vilania de um "Girotti" e a praticidade animalesca de um "Vilmar” confiram destaque ao produtor de elenco Gabriel Domingues, e ao trabalho do diretor assistente e preparador de elenco, Leonardo Lacca. Vale lembrar que o Oscar terá pela primeira vez premiação para direção de elenco… Quem sabe?

Os filmes mais cotados da concorrência jazem na saturada fórmula de adaptações de biografias. Têm sempre valor e emocionam, mas a repetição acabou por deformá-las em nada mais que um filão comercial equivalente a super-heróis para adultos. Sem contar que, sim, essas produções já foram devidamente reconhecidas com indicações, de Lincoln a Elvis. Tal receita comercial foi a aposta de outro mestre do cinema, Richard Linklater, que entra com “Blue Moon”, sobre a vida de um célebre compositor americano. Apesar de bem cotado, categoricamente não se pode dizer que é um filme com intenção de originalidade, muito menos que agrade por qualquer atributo de diversidade.
Em “O Agente Secreto” vemos o contrário. É apresentada uma vida comum que se torna extraordinária por circunstâncias adversas que não são superadas. O herói perde na jornada. O fato social é coercitivo e se impõe, esmagando o agente. Não há um gênio que alcança a vitória apesar dos pesares. Contudo, algo permanece após a derrota. Alguma coisa imperceptível que se mistura às cinzas de carnaval. Algo secreto, que ninguém entende muito bem, sempre fica. A cidade é o palco onde se acumulam esses resquícios, e que no filme podemos entender como a “memória”. Reminiscências que são guardadas não por acaso, mostra Kleber, mas com esforço intencional de preservação da história. A luta contra o esquecimento precisa ser permanente, como sugere o final do filme.
Apesar de todos esses méritos da obra para receber um Oscar, é preciso observar também os dados. Não é comum filmes muito celebrados em Cannes darem um lá e lô no fechamento com o Oscar. Quando observamos as 97 edições do prêmio da Academia e as 77 competições em Cannes, fica evidente que os jurados nunca se sentiram pressionados pelos critérios franceses. Apenas os atores Ray Milland e Jean Dujardin ganharam tanto em Cannes quanto no Oscar pelo mesmo trabalho. No que tange à direção, o feito é simplesmente inédito. Não obstante grandes nomes como Roman Polanski, Alejandro Iñárritu e Joel Coen terem sido amplamente reconhecidos, mas por filmes diferentes. Já para o prêmio máximo, o de melhor filme, a coisa melhora em todos os sentidos. Foram quatro os que já fizeram história em ambos os continentes: Farrapo Humano, Marty, Parasita e Anora. Mesmo diante de dados que desafiam nosso argumento sobre os ciclos, a categoria de melhor filme internacional é, enfim, um prêmio que dou como certo na ausência dos demais. Mais adequado, porém, seria repetir o feito de Parasita, filme que também realiza crítica social que faz o espectador se perguntar quem de fato está representado no título da película. O ponto é que o Oscar tem enxergado valor em filmes que apresentam dilemas universais através de culturas específicas. O Recife pode soar como a Seul de 2013 em sua apresentação particular do antiquíssimo conflito de classes.

Kleber e sua equipe possuem esse leitmotiv de facilitar a identificação dos atavismos que nos cercam. O Agente Secreto é progressista. Assim, o mistério do agente se desvela como tudo que age na contramão do jogo de cartas marcadas, do apelo ao autoritarismo e das tendências reacionárias persistentes. Elas estão nos desvarios de grupos policiais e militares manipulados por suas lideranças, na soberba de famílias tradicionais, e em grupos empresariais que não hesitam em dar um “banho de indústria” (leia aqui artigo sobre isso) em qualquer opositor. Eis o fio condutor que marca todo o enredo, o espírito democrático sempre ameaçado em sua marcha lenta, oscilante como equilibrista, mas resiliente como a Dona Sebastiana. Esse é o verdadeiro agente secreto que redimiu o Recife algumas décadas atrás. E que ainda pode triunfar no clima de obscurantismo que afeta hoje o país do Oscar.
*Romero Maia é gestor de pesquisas estatísticas, professor e escritor. Divulga suas publicações pelo canal @SimpliciDados.
