"O Homem Contemporâneo Está Exausto Por Se Autoexplorar", Alerta Psiquiatra - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
"O homem contemporâneo está exausto por se autoexplorar", alerta psiquiatra

Revista Algomais

Em entrevista à Revista Algomais, especialista analisa as raízes da Sociedade do Cansaço, critica a glamourização da produtividade e defende o direito ao descanso como forma de preservar a saúde mental e emocional

Vivemos uma era em que estar cansado virou sinônimo de sucesso. A exaustão crônica, longe de ser um sinal de alerta, passou a ser romantizada em discursos que celebram a produtividade sem limites e a ocupação constante. Mas esse modelo tem cobrado um preço alto da sociedade. Para o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino, estamos imersos em uma lógica que glamouriza o desempenho e silencia o sofrimento — uma engrenagem que afeta não apenas os adultos, mas também crianças e adolescentes, gerando um ciclo contínuo de esgotamento físico e mental.

Nesta entrevista ao jornalista Rafael Dantas, Cantilino aprofunda as raízes da chamada "Sociedade do Cansaço", conceito popularizado pelo filósofo Byung-Chul Han, e aponta os efeitos psicossomáticos de uma cultura que não permite pausas. Ele defende que é preciso reinventar o tempo, valorizar o ócio criativo e construir políticas públicas que reconheçam o direito ao descanso como parte essencial da saúde integral.

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O que nos levou a chegar à Sociedade do Cansaço?

Vivemos uma época em que o tempo deixou de ser vivido, passou a ser apenas usado. A lógica da produtividade tomou conta de quase todas as áreas da vida, do trabalho aos relacionamentos, da estética pessoal à presença nas redes sociais. Mais do que fazer bem feito, temos que fazer tudo e ainda parecer felizes e incansáveis no processo.

O ser humano está completamente exposto ao excesso de estímulos, cobranças e tarefas. Mas o pior: esse homem contemporâneo também está exausto por se autoexplorar. Essa autoexigência constante vem gerando o que o filósofo Byung-Chul Han chamou de “Sociedade do Cansaço”.

O “animal laborans” de que Han fala tenta provar seu valor o tempo todo. É alguém que, mesmo sem necessariamente sofrer uma opressão externa, se impõe metas inalcançáveis e acaba esgotado, deprimido, em guerra consigo mesmo. Para ele, a depressão é, antes de tudo, um cansaço de fazer, de tentar dar conta.

A queixa típica de quem está deprimido, que é “não consigo mais fazer nada”, só faz sentido em uma sociedade que vive dizendo que tudo é possível, desde que você se esforce o suficiente. Quando a pessoa já não consegue mais “poder”, ela se volta contra si mesma. Se culpa. Se machuca.

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Que indicadores apontam para uma situação de epidemia desse problema?

Os sinais de que estamos diante de um problema são evidentes: crescimento nos diagnósticos de ansiedade, depressão e burnout; e uma percepção generalizada de exaustão, mesmo entre pessoas jovens e saudáveis. Há uma sensação coletiva de que estamos todos sobrecarregados, tentando dar conta de mais do que é possível.

Tem algum público específico para essa sensação de cansaço mais aguda? Apesar de pensar que atinge principalmente os profissionais, tenho visto matérias falando até das crianças.

É verdade. O cansaço deixou de ser um problema exclusivo dos adultos ou dos profissionais altamente exigidos. Hoje ele atinge praticamente todas as faixas etárias, inclusive as crianças e adolescentes.

Nas crianças, vemos sinais de esgotamento ligados ao excesso de estímulos, à agenda cheia de compromissos (aulas, cursos, telas, redes) e à falta de tempo livre para brincar, descansar ou simplesmente “não fazer nada”, algo que é essencial no desenvolvimento saudável. É nesse tempo livre, aparentemente vazio, que a criança pode inventar mundos, conversar consigo mesma, perceber o que sente, criar. É no tédio que ela aprende a lidar com o silêncio, com a espera, com a frustração.

A adolescência, que deveria ser um tempo de descobertas, experimentações e construção da identidade, tem se transformado em um período de pressão. Cada vez mais cedo, os adolescentes entram em rotinas que se assemelham às de executivos: escola pela manhã, cursinho à tarde, estudos à noite, finais de semana com simulados, redações, revisão. Pouco tempo para lazer, quase nenhum tempo para si. O vestibular, que deveria ser uma etapa importante, mas pontual, da vida escolar, virou um centro de ansiedade desde o 1º ano do ensino médio. Muitos adolescentes internalizam a ideia de que precisam estar sempre produzindo, sempre rendendo. E quando não conseguem, sentem culpa, medo, ou se julgam incapazes.

Já entre os adultos, isso se intensifica com as demandas de carreira, família e um ideal de sucesso que parece inalcançável. Cada grupo vive o cansaço à sua maneira, mas o que todos compartilham é a sensação de estar sempre “no limite”.

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No corpo, quais os efeitos negativos gerados pelo esgotamento que vivemos, que é mental e físico? A que extremos esse problema pode levar?

O corpo e a mente estão profundamente interligados — quando um adoece, o outro também sofre. O cansaço crônico, seja ele físico, mental ou emocional, pode levar a uma série de sintomas: insônia, dores musculares, enxaqueca, problemas gastrointestinais, baixa imunidade, alterações hormonais, crises de ansiedade e até quadros depressivos. Quando esse estado se prolonga, a pessoa pode chegar a um ponto de esgotamento completo. É quando o corpo literalmente “desliga”. Esse esgotamento pode levar a afastamentos do trabalho, prejuízos nos relacionamentos e perda de propósito.

Porém é importante reconhecer que, embora o cansaço esteja frequentemente ligado a fatores emocionais, sociais e existenciais, como o excesso de trabalho, a pressão por desempenho ou a falta de vínculos, muitas vezes ele tem causas físicas que não podem ser ignoradas. Distúrbios do sono, alterações hormonais (como hipotireoidismo), deficiências nutricionais (especialmente ferro e vitamina B12), doenças autoimunes, cardiovasculares ou infecciosas, entre outras condições clínicas, podem se manifestar inicialmente por meio de um cansaço persistente. Por isso, diante de uma fadiga prolongada, é fundamental realizar uma avaliação médica cuidadosa, que investigue tanto os aspectos físicos quanto os emocionais. Cuidar da saúde de forma integral é compreender que corpo e mente não estão separados e que o cansaço pode ser o primeiro sinal de que algo, em alguma dessas dimensões, precisa de atenção.

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Diferente de outros males, como a solidão e a depressão, penso que parte do cansaço tem um "marketing" dentro dessa nossa sociedade produtivista. O workaholic parece estar envolto em um glamour. Precisamos reverter isso?

Com certeza. Existe um discurso social que glamouriza o cansaço. A ideia de que estar sempre ocupado, “sem tempo nem para respirar”, é sinal de sucesso.
Ser workaholic virou símbolo de força e dedicação. No entanto, pode refletir apenas uma inquietude. O excesso de estímulos, informações e tarefas afeta diretamente a nossa atenção, que vai se tornando cada vez mais fragmentada e superficial. A chamada "multitarefa", tão valorizada na sociedade atual, não permite foco profundo, de contemplação. Substituímos o descanso mental pelo tempo cronometrado. E o tédio, que antes era fértil e criativo, passou a ser visto como um problema. Mas, sem ele, a tendência é que tenhamos só repetição acelerada do que já existe.

Ninguém funciona bem em modo “liga” o tempo inteiro. No nosso tempo, aprender a parar, a dizer “não”, a respeitar os próprios limites é sinal de sabedoria, e não de fracasso. O glamour do cansaço é uma armadilha. E quem tenta sustentar esse ritmo por muito tempo, uma hora paga o preço.

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Que caminhos — individuais e mesmo coletivos ou públicos — precisamos traçar para reverter essa tendência de adoecimento pelo cansaço?

Quando vivemos escassez, o foco está em absorver, em reter. Mas em tempos de excesso, como o nosso, a preocupação vira o contrário: como expulsar, como rejeitar o que nos sufoca. A superabundância de comunicação e de informação acaba sobrecarregando nossas defesas psíquicas. É como se o excesso nos deixasse vulneráveis, não por falta, mas por saturação. Assim é importante que se pare para pensar o que pode ser deixado de lado, que se repense o que é “sucesso”. A pergunta é: “o que não faz sentido para a minha vida?”.

É essencial recuperar o tempo da celebração, do encontro, do prazer gratuito. Não precisamos de um motivo para comemorar a vida. A festa, a convivência sem meta, o silêncio partilhado são formas de cura em uma sociedade doente de excessos.

Outro caminho importante é resistir à ditadura da performance. Não somos máquinas, e mesmo as máquinas param. E mais, é urgente reabilitar a pausa como algo com valor próprio, e não apenas como uma ferramenta para “funcionar melhor”. Descansar, contemplar, fazer nada, tudo isso precisa voltar a ter lugar na nossa vida cotidiana. A ideia é permitir-se a imperfeição e o recolhimento. A vida não pode ser apenas útil, ela precisa também ser interessante.

Coletivamente, precisamos de políticas públicas e ambientes institucionais que valorizem o tempo humano: jornadas mais equilibradas, apoio à saúde mental, direito à desconexão, educação emocional desde cedo. Também precisamos de cidades e escolas que criem espaço para o ócio, para o brincar, para o tempo livre sem culpa.

Reverter o adoecimento pelo cansaço passa, portanto, por reencantar o tempo, devolver-lhe profundidade, sentido e liberdade. Esse é um projeto de cuidado com o outro, com o mundo e, antes de tudo, consigo mesmo.

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