O interior demarcou minha formação – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

O interior demarcou minha formação

A paixão pela sétima arte sempre permeou a vida de Camilo Cavalcante. Quando morava no Rio de Janeiro, aos 10 anos, ele a pegava um ônibus sozinho com intuito de assitir uma sessão de cinema. Para acalmar a aflição da mãe, o garoto ligava dos orelhões de ficha informando que chegara são e salvo. A paixão tornou-se ofício e hoje ele é um cineasta premiado. Nesta conversa com Cláudia Santos e Rafael Dantas, Camilo lamenta o fechamento das salas de exibição no País, fala da sua infância vivida em várias cidades do interior e de planos futuros.

Como foi sua infância?
Nasci no Recife, meus pais eram médicos da saúde pública e eram transferidos com frequência. Começaram a carreira no interior do Piauí em Butiri dos Lopes. Moramos depois em Floriano, onde fui alfabetizado, depois tivemos uma passagem em São Paulo, quando meus pais foram fazer uma especialização, em seguida fomos para Parnaíba (Piauí). Moramos depois em Areia (PB), Rio de Janeiro, e em seguida voltei para o Recife, quando tinha uns 11 anos. A maior parte da infancia foi no interior, e isso é bem demarcador na formação do meu imaginário, que não é só calcado numa única cultura ou situação social econômica.

Em alguns desses lugares você foi fisgado pelo cinema?
Gosto de cinema desde pequeno. No Rio, aos 10 anos já ia para o cinema sozinho, minha mãe ficava louca. Era a época do orelhão de ficha, eu ligava pra o trabalho dela e dizia: mamãe eu pego o ônibus, sei onde desço. Depois avisava: cheguei na frente do cinema, vou assistir à sessão. Em seguida ligava de novo: terminou a sessão, mamãe, estou indo pra casa. Não tinha muitos amigos na cidade e o cinema era uma forma de preencher o tempo e de visitar outro mundo.

Você estudou jornalismo?
Sim, na Federal. Antes de jornalismo fiz um curso de técnico de segurança no trabalho. E aí naquela época você terminava o terceiro ano e fazia o vestibular. Fiz jornalismo porque era o próximo que havia do cinema. Fiz estágio na Compesa como técnico de segurança. Fazia relatórios pedindo equipamentos de proteção individual para os funcionários que não vinham nunca. Os caras entravam na fossa na base da vodca, essa era a verdade. Só que apareceu a oportunidade de fazer um estágio no Misp (Museu de Imagem e Som de Pernambuco) e abandonei a Compesa. Eu era um assessor de imprensa. Toda semana, na época, havia o Cine Ribeira, no Centro de Convenções, onde passava filmes de arte. Eu fazia a divulgação na imprensa do filme, em fax ainda, ao mesmo tempo, criava e editava o comercial para a TV com o apoio da Center Produtora, e distribuia as fitas –matic betacam- nas emissoras. Era um um misto de divulgação, criação, office-boy (risos), mas que foi bem interesse o aprendizado. Foi assim que trabalhei na Center, viabilizei meus primeiros curtas, através desses conhecimentos.

Como você compara a estrutura que havia na época para produzir filmes e agora?
Tudo melhorou. Era a época do Governo Collor que acabou com a Embrafilme e com qualquer forma de financiamento para produção de filmes. Só que naquele momento também surgiram as câmeras de vídeo VHS e Super VHS, VHS compacta, high eight, que possibilitavam filmar com pouco recurso. Com isso muita gente começou a experimentar e usar sua câmera para fazer seus filmes, suas experiências: Kleber Mendonça, Antonio Luiz Carrilho, Grilo, o pessoal do Telefone Colorido, Tarciano Oliveira. O audiovisual na época era isso. Hoje a gente está com o edital do Governo do Estado, muito forte, que tem se mantido e isso fortalece toda uma cadeia econômica de produção. Um filme dá emprego a muita gente. É algo muito interessante o que a gente vive hoje que é uma profissionalização, naquele momento tinha-se muito o desejo de fazer e as pessoas faziam como podiam. A publicidade era o que podia prover os técnicos. Trabalhei muitos anos com comerciais institucionais para pagar as contas. É também uma forma de você exercitar a relação com as pessoas no set e trabalhar coletivamente, o que você só aprende na prática.

Na sua época não havia curso de cinema. Como você se formou cineasta?
Acho que eu já estava me formando em Parnaíba, quando via os filmes de Jerry Lewis, na Sessão da Tarde, ou d’Os Trapalhões no cinema. Na universidade paralelamente comecei a experimentar com essas câmeras caseiras. Calice foi meu primeiro curta sobre um suicídio ocorrido na Casa do Estudante. Com ele participei de festivais e aí você vê que não está só no mundo, outras pessoas estão na mesma batalha, isso, de certa forma, te fortalece. Fui a Cuba em 1996 estudar roteiro, uma experiência muito rica para minha formação. Não pelo curso em si, mas pela escola, que tinha uma videoteca riquíssima, pude ver muita produção latino-americana que naquela época não havia internet, não tinha como você ter acesso. Todo dia havia uma sessão de cinema de clássicos. Fiz meu segundo filme lá, Hombre a Hombre. Foi também bem experimental, com duas pessoas que estadavam lá que atuaram. Minha formação foi também muito lendo, vendo filmes.

A logomarca da sua produtora, a Aurora, remente a Deus e o Diabo na Terra do Sol. Qual a influência do Cinema Novo na sua produção e por que o Sertão fascina tanto os cineastas?
O Sertão me fascina pela vivência que tive no interior do Nordeste, da forma como se dá relação interpessoal nessas cidades, como é viver em vizinhança, em casa e na rua, quase sem diferença social. O filho do dono do fiteiro estudava na mesma escola do filho do médico. E o cinema Novo teve influência na produção do imaginário do Sertão, de como registrar o Sertão. Mas acho que História da Eternidade não faz muita referência ao Cinema Novo, nem em termos narrativos nem em termos estéticos, mas o movimento influencia de forma insconsciente. Gláuber Rocha tem influência nem só pelos filmes e temáticas, mas muito mais pelo ideal de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, de fazer filme nesse impulso criativo, mesmo sem ter recursos suficientes. Você não tem como lutar tecnicamente contra Hollywood, não tem dinheiro para manter uma estrutura técnica e humana. Então nossas armas são outras, talvez uma honestidade, uma sinceridade que se coloca na tela. Sempre admirei Glauber Rocha, seus filmes tem uma gramática muito particular e obviamente que o que interfere nessa gramática é a escassez de recursos. Aí você tem que emular uma outra coisa dentro da sua ideia para poder tornar realizável. Eu sempre trabalhei assim também por causa da escassez de recursos. Você até sonha planos mirabolantes, mas tem que fazer conforme as perspectivas.

Por que o cinema pernambucano é tão vigoroso?
Acho que pela pluralidade. Não há uma movimentação uníssona, num único fluxo, são “movimentações”, como já disse Jomard Muniz de Brito em relação ao super 8. Há muito fluxo de ideia, mas não tem um modelo. Acho que cada realizador se expõe muito na sua obra que vem muito com o seu DNA, com sua alma. Cada realizador pensa diferente e vem de meios diferentes por mais que se cruze nesse grande meio que é o cinema, mas tem referenciais particulares.Acho que essa particularidade é que torna o cinema pernambucano forte e cada filme genuíno.

Como foi a repercussão de História da Eternidade?
Foi muito bacana. O filme estreou no festival de Roterdã, numa mostra em 2014, foi muito bem recebido. Foi o filme latinoamericano melhor votado pelo público, o que mostrou que o filme penetrou de alguma forma na emoção das pessoas. Depois ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Paulínia. Inclusive, é bom registrar, que não pagaram o prêmio de R$ 300 mil, só pagaram a metade. Parece que o festival vai voltar este ano, estou louco que volte porque dá para botar um advogado e gerar um fuzuê na imprensa. Bem, o filme circulou em muitos festivais e ganhou 27 prêmios no total. No Brasil existem poucos cinemas, existe um bloqueio, uma certa máfia no mercado que você não consegue botar o seu produto na vitrine de jeito nenhum. Mas existe um circuito dedicado ao cinema autoral e em toda capital tem uma sala de exibição ou uma sessão que se dedica a isso. O filme circulou bem nesse meio.

Como é o seu projeto que leva o cinema ao Sertão?
É o Cinema Volante Luar do Sertão. Já aconteceram quatro edições com mais de 10 mil espectadores. Passamos em 23 municípios. A gente leva cinema onde não tem sala de exibição, com uma programação composta por curtas brasileiros premiados e que instigam também a reflexão. Exibimos e fazemos um debate. As pessoas se identificam com os filmes. Tem um curta chamado A cerca da cana, de Felipe Peres Calheiros, que mostra a luta de uma moradora, que resiste dentro de uma zona de usina, que foi ameaçada de morte. As pessoas em Carnaíba se identificaram muito porque lá há um empresa ameaçando os moradores de tomar suas terras. E há uma reflexão: as salas de cinema, principalmente no interior, se acabaram. O cinema, enquanto espetáculo coletivo, em que você assiste junto com outras pessoas e comenta, parou de existir. O Cinema Volante vem resgatar essa possibilidade. E há demanda. A gente também fecha convênio com as prefeituras para levarem os alunos dos municípios. A entrada é franca, a gente faz com incentivos do Funcultura do Governo do Estado de Pernambuco. Por isso a importância desse edital.

Como você vê outras formas de exibição como o Netflix?
Video on demand é o presente e a perspectiva para o futuro próximo. A questão é a gente se inserir nesse sistema. A História da Eternidade ficou disponível no Now. Mas cinema enquanto forma coletiva está ficando restrito. O ingresso está muito caro no shopping-center, está excludente. Há 20 anos o cinema era popular, o preço do ingresso equivalia a duas passagens de ônibus. O Teatro do Parque era R$ 1 e agora está fechado. Existe também a cultura do medo, da violência, que parece que quanto pior, melhor, porque as pessoas ficam presas em casas ou vão consumir dentro de um shopping trancadas e amedrontadas, sem vontade de andar na rua. E acabam os espaços coletivos, que deveriam ser ocupados. É isso que os construtores querem para poder levantar seus prédios. É complicado porque o ser humano vai acabar se segregando e o natural é agregar e o cinema é uma forma de agregação muito rica, mexe com a fantasia, provoca sentimentos, coloca questões éticas e morais para reflexão, além de ser uma diversão. É preocupante essa situação. As pessoas asssitem aos filmes e depois comentam a série no Facebook, são outras interfaces. Ainda prefiro o contato humano.

Quais são os próximos filmes?
King Kong en Assunción será um longa-metragem. É a história de um matador velho, que está em crise existencial, se sentindo só. Tem vontade de parar de matar, pega a última recompensa e vai para Assunção em busca da filha, que é uma mulher, por volta dos 40 anos, que ele nunca conheceu. Começa no interior da Bolívia e atravessa a fronteira com o Paraguai. A gente não tem muita verba, nem muito tempo, então será uma construção fragmentada.

E por que rodar num outro país da América do Sul?
O Brasil olha pra cima, para os Estados Unidos, e fica de costas para quem está muito proximo. É uma tentativa de produzir conjuntamente, com profissionais daqui e de lá. É uma forma de integrar. Estou saindo do Sertão mas vou para outro interior, que de certa forma tem ligação com a infância. Também estou finalizando um outro documentário que se chama Beco, sobre o Beco do Inferno, que é um corredor anexo ao Mercado de Afogados. Acho que lá é um divã popular, as pessoas vão em busca de um encontro, de uma palavra, de um olhar, de um copo de cerveja, de uma comida. Muita história de vida. Estamos montando esse filme. Acho que no ano que vem será exibido.

E os planos futuros?
Planejo outra edição do cinema volante em comunidades quilombolas no Sertão, também sou diretor e roteirista da série de TV Olhar com diretores pernambucanos, já fez duas temporadas. A gente pleiteia a terceira temporada com mais 10 diretores. Estou trabalhando num longa, chama-se Bete Davis Eyes. É um filme urbano sobre o dia que antecede a noite da última apresentação de uma artista transformista, já com seus 60 a 70 anos. Convidei um amigo, roteirista e cineasta, Alan Ribeiro para escrever comigo porque acho que o roteiro não está bom suficiente e aí a gente vai trabalhar este ano para começar a inscrever em editais. Vou dirigir uma série para TVs públicas também sobre iniciativas sociais bem sucedidas que trabalham com crianças e adolescentes. E planejo lançar uma edição especial do roteiro original da História da Eternidade em livro, com encartado o DVD da obra finalizada, com as cenas extras que estavam no roteiro mas foram cortadas na montagem final. Acho que é um bom material para estudo para exercício e pesquisa.

 

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