“O Recife deu as costas ao rio”

O presidente do CAU-PE, Roberto Montezuma analisa nesta entrevista o desafio do planejamento das cidades a partir da perspectiva proposta pela Nova Agenda Urbana da ONU. Na conversa com os jornalistas Cláudia Santos e Rafael Dantas, o urbanista fala também sobre os movimentos sociais urbanos e os desafios de construir cidades sustentáveis ambientalmente.

O que é a Nova Agenda Urbana?
É um programa criado pela ONU-Habitat, que é uma agência das Nações Unidas centrada no problema urbano e focada na questão da habitação. Ela pensava inicialmente, em 1976, em soluções muito ligadas ao edifício. Vinte anos depois, eles entenderam que os problemas da cidade não se resolviam apenas com habitações e o novo foco passou a ser a urbanização, compreendendo toda a infraestrutura que envolve a moradia. Em 2016 há uma grande mudança, quando surge o tema da cidade de que precisamos. Interpretamos que isso significa pensá-la enquanto um sistema integrado, não apenas do ponto de vista da infraestrutura da urbanização, mas do que dá sentido a sua aglomeração. O fenômeno é a cidade, que é um sistema composto de diferentes dimensões como do uso e ocupação do solo, do patrimônio construído e do natural etc. Para organizar isso é preciso um pacto e um projeto. O plano pode ser entendido como uma carta de navegação que a cidade vai ter que cumprir nos próximos 20 anos. A ONU apontou 17 objetivos para serem atingidos nesse prazo, como a cidade ser socialmente inclusiva, resiliente e promover uma gestão ambiental sustentável, entre outros.

O horizonte dessa agenda é até quando?
Até 2036, um ano antes do Recife completar 500 anos. Por isso que é estratégico. São cinco gestões municipais. A ONU, dentro dos objetivos gerais, aponta que é preciso fortalecer algumas ações estruturais que costuram essas metas.

Quais são essas ações?
A primeira é a construção de uma visão urbana, de onde pretendemos chegar. A segunda são os planos e os projetos complementares, que precisam vir de um amplo debate entre todos os atores que interagem a cidade: sociedade, poder público, iniciativa privada, igrejas. O terceiro ponto é a legislação para tudo isso ocorrer. Hoje temos o maior conjunto de legislações urbanas do mundo, mas nossas cidades estão colapsadas. Não adianta ter só leis, elas precisam ser legítimas. E, por fim, o financiamento da visão, dos planos e projetos e das obras. Não pode ter recurso apenas para as obras, senão nasce um projeto que é desconectado da realidade. Isso interessaria a quem? Só pode ser a um grupo muito pequeno de pessoas e não à sociedade.

O projeto Parque Capibaribe e o Recife 500 Anos seriam dois planos na perspectiva proposta pela ONU?
Acho que o Recife 500 Anos é a grande visão. Deve apontar aonde precisamos chegar. É preciso um pacto no sentido dessa construção, em direção aos próximos 20 anos, quando Recife será a primeira capital brasileira a completar 500 anos. Feito isso, como vamos agir? Vejo o Parque Capibaribe como esse esqueleto territorial que vai ajudando a revelar esse Recife que foi esquecido. A proposta do Parque Capibaribe retoma essa conexão entre o meio ambiente e os espaços públicos. É nessa perspectiva de uma cidade parque.

Na prática o que foi feito para promoção dessa agenda da ONU?
Realizamos o Fórum Internacional HOJE Implementando Cidades Sustentáveis junto com o 4º Congresso Pernambucano de Municípios, no mês de julho. O presidente da Amupe, José Patriota, teve a sensibilidade de perceber que essa conexão seria frutífera. Iria conectar Pernambuco com a ONU. Aprendemos com as Nações Unidas que é preciso estabelecer um plano vertical, uma macro política. Nos últimos anos trabalhamos na estruturação dessa macro política, quando foram feiras as grandes conexões. Agora é a hora das pequenas conexões, das ações do dia a dia. O congresso lidou com quase 3 mil gestores, entre prefeitos e secretários. Há vários prefeitos nos procurando. No congresso estruturamos quatro salas especiais para discutir questões como a cidade inclusiva, interligada, a metrópole, a cidade resiliente.

O que vem a ser resiliência urbana?
Trata-se dessa cidade adaptável ao meio ambiente. Que não dá mais as costas ao seu patrimônio natural, mas volta a reconstruir sua própria historia. Muitas das cidades deram as costas para o meio ambiente, o Recife é uma delas. O Centro Histórico respeitou o rio, mas a expansão urbana não o via como meio de transporte ou fator de economia. Foi criada uma cidade rodoviária. Nessa hora, o rio passa a ser o esgoto, o quintal, o fundo e não a frente. A cidade resiliente vem nessa perspectiva de se voltar para o meio ambiente. Isso aconteceu no mundo inteiro. Amsterdã até os anos 80 estava dando as costas para o meio ambiente, secando os seus rios para colocar carros até perceber que isso era uma loucura. Passou a respeitar. Então isso é uma mudança de rota. Há um alto custo da cidade ao renegar a natureza. Este apartheid entre natureza e cidade precisa ser revisto. Veja o nível do mar subindo, o aquecimento global, o desmatamento…

Uma das características históricas do Recife é a desigualdade. O que seria uma cidade inclusiva?
A cidade inclusiva é aquela que percebe que inclusão começa por conceber a habitação de uma forma mais ampla. O programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, propõe a construção de moradias distantes do centro da cidade, impulsionando a expansão urbana. Aí que entra o plano, que envolve não só o chão do território, mas a logística das pessoas que atuam na cidade. O plano é por natureza a inteligência urbana. A igualdade social é fundamental para uma cidade sustentável.

A Metrópole é uma das questões mais discutidas pelo CAU-PE nos últimos meses. Como isso está sendo tratado?
Estamos falando da metrópole sob o aspecto de como várias cidades estão se interligando umas com as outras. Existem cidades em que se vai a pé até chegar na outra. Municípios que se distanciam um do outro em poucos quilômetros, mesmo de Estados diferentes, como Petrolina (PE) e Juazeiro (BA). Esse assunto da metrópole é tão forte que quando realizamos um evento para debater o tema, pessoas de vários setores, como da medicina e do direito, se mobilizaram para participar. Quando a gente começou a trabalhar este tema diziam que era uma coisa de louco, porque as pessoas não conseguiam entender a cidade, imagine então a metrópole.

Uma das maiores preocupações dos moradores das cidades é a segurança. Do ponto de vista urbanístico, quais seriam as soluções?
Não é uma questão apenas de algo isolado. A segurança é um composto, está dentro de um sistema geral. Quando você está trabalhando uso do solo, meio ambiente, patrimônio, você está trabalhando também com a segurança pública. Na hora em que são construídos espaços excludentes, não aprazíveis, aquilo é um lugar que vai ser inseguro. Esses muros altos são o primeiro sinal da insegurança. É seguro dentro, mas inseguro fora. E a cidade é um complemento das duas coisas. A cidade é coletiva, não é individual. É o lado humano-coletivo. O interior humano tem compromisso com a arquitetura exterior. Não é separado. É esse grande desafio que precisa ser enfrentado. O CAU-PE trabalhou para construir a ideia dessa política macro. Agora é a hora de disseminá-la através de projetos inovadores.

Essa Nova Agenda Urbana nasce num momento em que houve diversas manifestações pelo direito ao uso da cidade no mundo inteiro.
São os fenômenos do ocupes, que são mundiais. Ocupe Wall Steet, Ocupe Estelita… A gente está pagando caro pelo desplanejamento da cidade. Estamos pagando a forma de querer transformar a cidade apenas em politica partidária. A cidade não é só da política partidária, mas também, principalmente, da política urbana. Então, enquanto os profissionais (os arquitetos urbanistas) não fizerem política, os políticos partidários estão fazendo as atividades desses profissionais.

Qual a sua leitura desses movimentos?
É preciso ter uma visão elastecida desse momento histórico em que estamos vivendo. Esses coletivos são um fenômeno recente. É preciso ler os movimentos sociais, debater, agregar, contribuir. Diversos profissionais estão no movimento das bicicletas, do andar a pé. O Passe Livre, em 2013, para mim foi a ponta do iceberg. Os movimentos estão expondo pontas de um iceberg que é muito maior, que no meu entender se chama território, a cidade. O Passe Livre existe porque as pessoas querem ter direito à cidade. Direito a se mover. O Estatuto da Metrópole quer discutir o direito à metrópole. As ruas defendem uma outra forma de planejamento, mais participativa, mais cidadã. E estão dispostas a construir isso coletivamente.

Dentro dessa visão mais abrangente por onde caminham as soluções para a mobilidade da cidade?
As soluções não podem ser só sobre mobilidade rodoviária. Então, o conceito que foi utilizado desde a segunda metade do Século 20 foi muito rodoviário, que destruiu as cidades. A visão de mobilidade tem que ser repensada, em que se começa pelo andar a pé, a bicicleta, o barco, o transporte público. Depois o transporte individual. Mobilidade tem que ser tratada nessa ordem. O deslocamento é a primazia. A cidade é a academia, o palco, esse parque composto de várias temáticas, histórica, ambiental, esportiva, empresarial…

Você está encerrando o período de duas gestões como presidente do CAU-PE. O que você destaca desses mandatos?
Foi o período de implantação e estruturação. Saímos do zero, de um Conselho de Engenharia (CREA), convivendo com outras profissões. Nesses seis anos, o CAU se colocou, se tornou conhecido pela cidade. A primeira coisa que fizemos foi um planejamento estratégico. A cidade foi esse grande conceito trabalhado na gestão, depois foi a preocupação em formação e capacitação continuada. E o terceiro eixo foi ampliar o mercado de trabalho.

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