Dramaturgo, roteirista, compositor e ator, João Falcão adora se arriscar em projetos ousados. Pernambucano nascido numa usina, costuma sair do eixo Rio-São Paulo para voltar a produzir na sua terra. Foi assim em 2000, quando, depois de dirigir montagens de sucesso com atores do porte de Marieta Severo, se aventurou estrear A Máquina no Recife. Com linguagem inovadora, a peça foi protagonizada por desconhecidos jovens atores que logo ganharam o estrelato: Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Wagner Moura. Ele está de volta à terra, onde estreia um espetáculo com a ainda pouco conhecida mas promissora cantora Isadora Melo. Na conversa com Cláudia Santos, ele comenta as dificuldades de patrocínio para a arte e fala de sua carreira.
É verdade que desde pequeno você faz encenações?
Não, pelo contrário. Minha mãe encenava uns pastoris no final de ano na Usina Tiúma, onde nasci, próximo de São Lourenço da Mata. Era para eu fazer o papel de Simão Pastor, mas ela me desescalou. Disse: “meu filho você não serve pra isso não” (risos). Mas ela cantava muito e me influenciou. Morei junto com meus 12 irmãos lá até os 13 anos na usina. Era um local bem rural, havia grande canavial, uma vila de operários e vários engenhos. Meu pai era médico e atendia a vila e os engenhos também.
Como começou a trabalhar com teatro?
Vim para o Recife para cursar a Escola Técnica e lá comecei a participar dos festivais de música. Fiz parcerias e participei de algumas bandas com amigos. Depois estudei na Faculdade de Arquitetura, que era um centro de artes, lá também tinha os cursos de licenciatura em educação artística, música, artes cênicas. E a turma de artes cênicas e música se juntou para fazer um grupo de teatro. Comecei a me interessar por essa área. Nessa época, minha namorada era bailarina da Academia de Mônica Japiassu e me disse que estavam precisando de alguém que tocasse. Eu fui e encenamos Morte e Vida Severina, com direção de Rubem Rocha Filho. Acabou que ele me deu um personagem. Era uma montagem interessante. Simultaneamente, no grupo da faculdade a gente queria encenar Flitcs, do Ziraldo. Escrevemos para a Sbat (Sociedade Brasileira de Atores) solicitando perrmissão dos direitos autorais. Quando chegou o texto e a autorização todos queriam atuar. Aí eu disse eu quero dirigir. Todo mundo aprovou porque não era uma função que ninguém queria. Nesse ano um monte de coisas foi acontecendo: atuei em Toda Nudez Será Castigada, foi a época do incêndio no Teatro Valdemar de Oliveira, houve um grande movimento da classe teatral pra não deixar que o espaço virasse outra coisa.
Qual foi a primeira peça que você escreveu?
Chamava-se Muito pelo Contrário. Era sobre o Recife e Olinda e essa coisa da cultura contemporânea. Fez muito sucesso. Falava sobre nós, gente daqui. Depois disso não parei mais. Fiz várias peças: Pequenino Grão de Areia, Ver Estrelas, etc. A música sempre esteve presente, mas comecei a escrever mais música para o teatro. O teatro que faço sempre foi muito musical.
Você chegou a fazer televisão aqui?
Não. O que eu fiz foi publicidade, onde comecei a descobrir outra coisa que é a linguagem do audiovisual. Aprendi a linguagem de câmera, de corte, de montagem. Era uma época (anos 80) em que havia muito equipamento aqui porque as pessoas faziam campanhas políticas e quando terminava a campanha não tinha trabalho pra tantas produtoras que se formavam. Naquela época 90% dos comerciais criados eram produzidos em São Paulo. Como eu vinha do teatro, conhecia os atores, fazia uma coisa mais ousada. A gente arriscava: “vamos fazer uma coisa com alguma dramaturgia, encenação, interpretação”, e deu muito certo. Fizemos comerciais com a nossa cara, com nosso sotaque. Fiquei um tempão fazendo comercial de tv e fazia teatro esporadicamente. Comecei trabalhando na agência, depois montei uma produtora de publicidade. Até que o Guel (Arraes) leu umas peças minhas e perguntou se eu não queria colaborar no roteiro de algumas coisas que ele fazia.
Vocês se conheciam do Recife?
Não. Conheci o Guel no Rio. Eu respondi a ele que tinha a minha vida aqui no Recife. Ele propôs que eu ficasse uma semana no Rio e passasse o resto do mês aqui mandando textos. Trabalhávamos eu,aqui, ele no Rio e o Jorge Furtado no Rio Grande do Sul. A gente se encontrava uma vez por mês, ficávamos 5 dias juntos e voltávamos pra casa pra escrever.
Vocês escreviam para quais programas da Globo?
Fazíamos Brasil Especial, uma série de adaptações da literatura pra TV. Fizemos O Alienista, Coronel e o Lobisomem, Suburbano Coração, O homem que sabia Javanês e Comédia da Vida Privada, do Veríssimo, que inspirou uma série, que durou uns três anos. Durante esses três anos comecei a ir mais pra lá e aí Guel me convidou para morar lá. Eu disse que não queria. Mas aí ele disse que eu poderia aprender mais sobre televisão e ele queria aprender sobre teatro comigo. Eu disse que ia pensar, já era casado, tinha duas filhas. Mas eu sempre tive essa coisa de aventureiro. Aí fui pro Rio. E fiz muita coisa lá no teatro: Uma noite na Lua, com (Marcos) Manini; Burguês Ridículo também com ele, A Dona da História, com Marieta (Severo) e com Andrea (Beltrão), fiz também de novo com Manini e Marieta Quem tem medo de Virgínia Wolf.
E como foi que você concebeu A Máquina?
Eu queria voltar para o Recife com uma certa experiência que eu tinha, de alguma maneira trabalhar por aqui e encontrar as pessoas. Foi quando eu fiz A Máquina, no Armazém 14. Peguei um monte de jovens atores que eu tinha conhecido. E foi incrível. Eu sabia que ia ser um evento que seria um acontecimento e que queria que essa experiência fosse partilhada aqui, onde tenho muitas raízes.
Você tinha a expectativa de que seria sucesso de público?
Eu não sabia que ia acontecer tão popularmente, mas sabia que era uma coisa importante. Na época me mudei pra cá de novo, alugamos um apartamento, ficamos morando com os atores, quase acampados. Eu intuía que A Máquina ia acontecer porque era um projeto muito ousado, tinha uma proposta de linguagem. Encontro muita gente que me diz que faz teatro porque assistiu à Máquina. Fiz depois um projeto chamado Clandestinos, no Rio, que também revelou muitos atores de 18 a 28 anos, mas eram pessoas que nunca fizeram nada profissional. Nos testes muitos diziam que foi a primeira peça a que assistiram e que ela mudou a minha vida deles. Era um espetáculo que o jovem se identificava muito, com aqueles atores que tinham cerca de 21 anos.
Seus musicais são diferenciados, porque no Brasil esse gênero remete muito à Brodway.
Esse tipo de musical não me interessa. Nada contra quem faça. Gosto muito de música brasileira, muito, muito mesmo. É o que o Brasil faz de melhor. A Máquina é quase um musical, mas num outro contexto, Gonzagão, a Opera do Malandro são musicais. Fiz agora Gabriela também com músicas brasileiras. Agora, montar A Bela e a Fera, ou Fantasma da Ópera, que já foram lançados no mundo inteiro, é muito simples, você não precisa arriscar, é um franchising, tem todo lugar. Por isso, investe-se nisso, que, com certeza, já tem um público, em detrimento a musicais como Gabriela, que é um livro, inspirou uma novela e fizemos um musical brasileiro. Então, a criação de uma identidade própria no teatro musical fica prejudicada. Acho que tem que ter tudo, mas o fomento, o incentivo devia ser mais distribuído. A atenção do investimento é mais voltada para aquele tipo de musical e eu acho uma certa bobagem porque tudo que se faz com um pouco de requinte no teatro brasileiro dá muito certo.
Você tem ainda dificuldades em obter patrocínio para suas produções?
Muita. O teatro hoje no Rio de Janeiro e São Paulo em vez de ser feito por artistas está muito empresarial, no sentido de que a figura principal não é o elenco, ou o diretor, o autor, ou os compositores, mas a empresa que tem o contato com o patrocinador, que bota o projeto na Lei (de Incentivo à Cultura) da forma que ela quer, com a concepção que ela quer. Como se tivesse tirado hoje do artista o papel de agente criador, modificador e apontador de caminhos. Essa coisa de lei, de captação, virou o foco para o empresário. Não existe mais aquele produtor que gostava de produzir arte. Hoje ele é um empresário que pensa como o espetáculo pode dar lucro.
Como é o seu trabalho com os atores?
Cada um é de uma maneira, não existe um processo. Até pra escalar o elenco, não gosto de pegar um texto e dizer este papel é pra tal ator. Na televisão isso funciona. No teatro gosto de juntar o elenco e criar junto com o ator. Aquilo que a pessoa propõe também me ajuda, o que eu dou pra ela , ela desenvolve e aquilo me inspira. É um trabalho meu, mas em função daquela equipe que está ali. Gosto muito de escrever, ensaiar, ir para casa, pensar, escrever e ver o que rola. Escrever durante o processo. Mesmo depois de estreada, continuo escrevendo, reescrevendo. Diferente do cinema, o teatro tem essa possibilidade. A gente não está na lata, a gente está vivo. Muitas vezes a gente monta um filme ou uma série e percebe que poderia ser diferente, mas não já não pode mudar. No teatro pode. Então a gente aproveita o que o teatro tem de melhor, que é ao vivo, aproveita que tem pessoas disponíveis para estar ali assistindo àquela sessão que vai ser única. Muita gente diz que a internet vai acabar com o teatro. Pelo contrário, nestes tempos em que tudo é virtual, você ver uma pessoa de verdade, viva, representando pra você, com mais uma turma, isso só é possível no teatro e acho que isso deveria valer muito.
Como foi trabalhar com texto e músicas de Chico Buarque?
Pra falar a verdade senti o peso da responsabilidade, da expectativa e da cobrança de que eu ouvisse: o que é que este garoto (que na época de Cambaio era muito jovem) vai fazer com um dos nossos ídolos? Claro que teve as coisas boas de trabalhar aquele cara também é meu ídolo e conheço as canções de cor.
Como você vê a cena teatral no Recife?
Eu conheço pouco. Minha família toda é daqui, eu venho muito no Natal, São João, aniversários. Mas eu ficono Rio e quando venho ao Recife circulo pouco na cidade. Tenho conhecido muito uma galera de música. Estou impressionado com a qualidade e a quantidade dessa nova geração que não conhecia, que estou conhecendo de dois anos pra cá: Zé Manoel, Juliano Holanda, Isadora Melo, Almério. Se eu fosse fazer uma lista seria infinita. Eu acabo me identificando. Eles fazem coisas que vêm de referências que também foram minhas, que são familiares Sou atraído muito pela cultura daqui. No teatro acabei de ver o Magilut, muito bom. Estou muito curioso para ver o Coletivo Angu, que ainda não vi. Mas por algumas circunstâncias, por ter de colocar trilhas sonoras em filmes e séries de TV, acabei escutando os discos desse pessoal e fiquei encantado e a gente acabou ficando próximo. Conheci muita gente de música que virou meus amigos. Queria fazer um espetáculo aqui, mesmo sendo pequeno e surgiu a ideia de montar Dorinha, em amor. É uma maneira de estar aqui, convivendo e conhecendo coisas. Recife é muito familiar pra mim.
Como surgiu a ideia de Dorinha, meu Amor?
Isadora Melo é uma cantora daqui, que gosto muito, já a havia convidado ela para fazer Gabriela em São Paulo e ela foi no ano passado. Digo a ela que quando ela canta a vida fica melhor. Aí eu vim fazer uma oficina aqui e Dorinha estava lá também. Pensei em fazer um musical, porque tem muita gente boa no Recife. Mas eu queria logo, não queria esperar ter uma infraestrutura para fazer algo grande. Quis fazer algo pequeno, sem pretensão. Acabou surgindo esse espetáculo. A gente conseguiu um espaço, toda quinta-feira no teatro Arraial, na rua da Aurora. Conseguimos 8 quintas-feiras. Os músicos Juliano Holanda e Rafael Matos vão tocar. A gente inventou de fazer algo sobre o amor, esse estado que a pessoa fica quando está apaixonada, o sofrimento, a burrice. Será algo muito divertido, com muito humor, com canções brasileiras de compositores antigos e contemporâneos, muitos compositores daqui que compõe sobre este estado alterado do ser humano. É um espetáculo pocket, é ela em cena com dois músicos. Tem uns textos também, mas também alguns que são clássicos sobre o amor.
Como foi a experiência com o crowfunding para financiar o espetáculo?
Muito boa. Porque a gente já queria fazer logo e não esperar pelos editais. Primeiro, a ideia foi mesmo captar grana pra fazer uma coisa com mais conforto, mas funcionou como divulgação. Como isso é bom, porque acaba envolvendo as pessoas. Por que quando alguém posta nas redes sociais sobre o crowdfunding, mesmo que não contribua, já se sente meio ajudando e torce pra dar certo.Você já estreia com alguns apoiadores.
Quais seus planos futuros?
Estou escrevendo um projeto de uma série para a TV Globo que traz de volta a interatividade do Você Decide. Agora, o público escolhe o rumo que a história e não apenas o final. Pretendo também fazer A Máquina novamente da mesma forma, descobrir quatro atores jovens e energéticos e ficar em cartaz por um tempo, para as pessoas terem tempo de ver. A peça teve uma temperada muito curta no Brasil, faltou muita gente ver. Foi um sucesso intenso, muita gente até hoje fala dele, mas foi pouca gente assistiu.