A bailarina e diretora do Aria Social, Cecília Brennand, conta como centenas de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social vislumbraram novas possibilidades em suas vidas ao frequentarem as aulas de dança e música do projeto. Ela também fala do desafio de obter patrocínios e dos espetáculos produzidos pela organização que fazem sucessos nos teatros do Recife e do Sudeste.
Além de ser fonte de bem-estar, a arte é também um instrumento que realiza, de maneira prazerosa, o desenvolvimento cognitivo, ajudando as pessoas a pensarem com criatividade e a refletirem sobre o mundo. Um exemplo desse efeito transformador da arte pode ser constatado no trabalho realizado pela organização Aria Social. Ao oferecer aulas de dança, iniciação musical e língua portuguesa, o projeto abriu a percepção de crianças e jovens de comunidades em vulnerabilidade social que vislumbraram novas possibilidades para suas vidas.
E são muitas as histórias de sucesso, como a de ex-alunos que seguiram o caminho das artes, a exemplo de Madson de Paula, que mora em São Paulo e atua em musicais no Sudeste, ou Bruna Camila, proprietária de uma escola de dança na sua comunidade onde ensina 70 alunos. Mas também há casos de pessoas que ao entrarem em contato com as expressões artísticas , sentiram-se estimuladas a seguir por diferentes áreas profissionais. É caso de Fred Ramon, que passou em nove universidades americanas e hoje estuda Ciência da Computação e Estudos Globais na Whittier College, em Los Angeles (EUA), ou Ruth Gomes, que faz mestrado na área de fisioterapia.
“No Aria, 60% nos nossos alunos vão para a universidade”, orgulha-se Cecília Brennand diretora da entidade que atende 520 alunos, com idades a partir dos seis anos. Bailarina e ligada às artes, Cecília concebeu a organização inspirada num projeto da Edisca, de Fortaleza, e também inclui entre as atividades apresentações de espetáculos de dança, que já percorreram vários teatros no Recife e no País.
Nesta conversa com Cláudia Santos, realizada na bela sede do projeto, situada no bairro de Piedade, ela conta a trajetória do Aria Social, fala dos desafios de obter patrocínio e dos planos para o futuro do projeto.
Como começou sua trajetória no mundo das artes?
Minha formação é em dança. Quando decidi me dedicar a essa arte, não havia faculdade de dança aqui, então fui aprender com Mônica Japiassú. Sou cria dela em todos os sentidos, na forma de pensar, de dançar valorizando a expressão verdadeira, a emoção, a beleza do movimento que vem de dentro para fora. Não conheço ninguém que deu aula para criança como ela. Com formação clássica, estudou na Rússia, fez arte dramática com Fernanda Montenegro e foi responsável por trazer a arte moderna para Pernambuco.
Comecei como bailarina e, aos 16 anos, passei a dar aulas de dança no salão e no jardim da casa onde morava com minha mãe, na rua Benfica. Dei aulas de dança para crianças e de alongamento para adultos durante 10 anos, mas meu forte foi trabalhar com o público infantil. No final dos anos 1980, comecei a fazer produção de espetáculos, foi quando conheci o coreógrafo tcheco Zdenek Hampl, por meio de Mônica Japiassú. Em 1991, abri a produtora Sopro de Zéfiro. Depois, passou a se chamar Aria, quando abri o CNPJ para o Projeto Aria Social.
Como produtora na Sopro de Zéfiro, fiz três espetáculos, todos coreografados por Zdenek Hampl. Um deles inspirado na obra de Francisco Brennand e os outros dois foram Peles da Lua e Lua Cambará, que é um conto de Ronaldo Correia de Brito com música composta por Zoca Madureira. Depois entrei para as artes plásticas, atuei 10 anos com uma galeria aqui onde funciona hoje o Aria Social. Fiz muitas exposições importantes, como a de Siron Franco. Mas amo dar aulas. Comecei o Aria dando aulas de dança para crianças.
E como surgiu a ideia do Aria enquanto projeto social?
Quando minha mãe alugou a casa, na época em que eu era bailarina e produtora, fiquei sem espaço para dançar e sem escritório. Então, surgiu a ideia de construir o Aria para ser um templo da arte, um espaço para produção de espetáculos. Compramos o terreno em Piedade, o bairro onde eu morava e que, na década de 1990, era um deserto, mas havia o projeto de construção do Shopping Guararapes e sabíamos que ia crescer. O nome era Ária Espaço de Dança e Arte porque era destinado à dança mas, por influência da minha mestra Mônica Japiassú, eu queria abrigar as outras artes, como artes plásticas e música.
Em 2004, conheci em Fortaleza o Edisca, um projeto social com dança, aula de artes, refeitório para as crianças. Era incrível! Tinha até um trabalho com as mães. Fiquei louca pelo projeto e pensei: é isso que quero para minha vida. Até então, aqui, praticamente, só acontecia dança, porque as crianças não tinham tempo, faziam outras atividades como inglês, computação, e a maioria não tinha orçamento para fazer dança e música.
Então, eu planejei: “com um projeto social, vou conseguir patrocínio para que as crianças possam vivenciar a música também”. Em parceria com a Escola Conviver, tinha indicações de quem estava precisando, como os projetos Casa Carolina e Pró-Criança. Comecei o Aria Social com 50 alunos de canto e havia 300 alunos particulares. Aos poucos foram entrando mais alunos no social e fui fazendo uma transição. Depois, além das aulas de dança, a escola toda passou a fazer aula de música.
Qual é a configuração do Projeto Aria Social hoje? Quais atividades que vocês promovem?
A escola inteira vivencia aulas de dança e canto. As crianças aqui têm aulas de dança, canto, flauta, violão, língua portuguesa. Temos a turma de Arte-Educação, com mais de 350 crianças, a partir dos 6 anos de idade, e a turma de Formação Artística, com cerca de 60 jovens, entre 16 e 17 anos de idade, que querem realmente vivenciar a vida artística, têm uma carga horária bem maior, de três dias na semana, a manhã toda, inclusive almoçam aqui.
São jovens que querem ter experiência de palco, de musical. Fazemos um rodízio dividindo por naipe de voz. Assim, enquanto um naipe está com a maestrina, o outro está com dança clássica, outro com dança moderna, para que vivenciem tudo. Temos um total de 520 alunos, entre crianças e adolescentes, todos de comunidades, mas cumprindo os pré-requisitos para fazer parte. Fazemos exame e várias entrevistas, em que avaliamos o perfil socioeconômico da criança, o local onde mora, se tem irmãos, se realmente quer fazer parte ou se é um desejo da mãe, entre outros critérios. É uma seleção muito séria, por isso há poucas desistências.
Por que vocês incluíram o ensino de língua portuguesa na programação?
Porque, em 2004, a parceria com o Instituto Ayrton Senna exigiu que fizéssemos todo o controle escolar da criança e também sugeriu que incluíssemos aulas de português e raciocínio lógico. Então, quando a criança se matricula aqui, apresenta o boletim e fazemos o acompanhamento do seu desempenho escolar. Os resultados são visíveis. Fazemos avaliação de três em três meses. Ao todo, 87% dos alunos obtiveram aprovação escolar e 60% conseguem ingressar na universidade, tem gente aqui formada em fisioterapia, educação física, psicologia, jornalismo. Ou são aprovados em conservatórios, universidades de dança, de música, iniciando uma vida profissional.
É um trabalho personalizado realizado por uma equipe impressionante. As aulas de português são muito dinâmicas, é um incentivo à leitura e escrita. Envolve a produção de redação com a turma e, dessa forma, trabalhamos concentração, autoestima, postura. O aluno passa a ter outro interesse. Você começa a mudança de dentro para fora, é todo um autoconhecimento, pois a arte redimensiona o olhar, trabalha emoções, expressão, cura. É um trabalho muito rico, que se reflete em tudo, no desempenho escolar, no entusiasmo, numa mudança de postura de vida.
É um processo interessante que integra corpo e mente e tem relação com o apoio da arte na vida das pessoas. Quais são esses benefícios, especialmente para quem está em vulnerabilidade social?
A arte, para o ser humano, é uma transformação, realmente cura, a arte salva. Há uma frase de Ferreira Gullar que diz “a arte existe porque a vida não basta”. Por isso, os resultados do nosso trabalho são significativos, a gente trabalha com as emoções, com acessibilidade, criatividade, imaginação, e a pessoa começa a ver a vida diferente, começa a acreditar mais em si mesma, passa a ver que é possível sonhar e tentar realizar. A gente dá força. É fato que o trabalho que desenvolvemos aqui com arte muda, de verdade, a vida das pessoas.
Tem gente que saiu daqui e hoje está fazendo musicais em São Paulo e até fora do Brasil. Teve um bailarino nosso que começou a dançar num navio e hoje é da marinha, mora na Itália. Temos várias histórias interessantes como a de uma menina que vendia pirulito cantando no sinal e foi trazida para o projeto pela nossa maestrina Rosemary Oliveira. Hoje, essa menina é maratonista, trabalha na Marinha no Rio de Janeiro, tem 186 troféus, 200 medalhas.
Qual a metodologia de ensino e o perfil dos profissionais que compõem o projeto?
O Aria trabalha muito o ser humano como um todo. Usamos a arte como um meio para um fim. Por isso não somos tão exigentes em relação aos padrões de beleza física ligados aos corpos magros. Aqui desenvolvemos um trabalho para transformação humana, o projeto é de arte-educação. Claro que há todo um trabalho de disciplina. Os resultados são visíveis, principalmente na turma de Formação Artística, pois as crianças passam muito tempo aqui. Uma menina chega aqui com a postura física corcunda, toda relaxada e, quando coloca a postura no lugar, está se colocando também para a vida. Por isso, a disciplina é essencial. Trabalhamos muito isso, de maneira que, no fim do ano, premiamos não quem dança ou canta melhor, mas quem não falta.
O ensino aqui acontece devido aos nossos maravilhosos profissionais, que têm “pulso de ferro e mão de pelica”. Ou seja, amor e disciplina. Eles são muito competentes e, acima de tudo, humanos. Aqui o exercício de humanidade acontece o tempo todo. Temos 50 profissionais, 80% das professoras de dança hoje são ex-alunas, formadas aqui no Aria. Há 15 anos, fizemos um curso de formação de professores usando o método inglês Royal. Atualmente, temos sete ex-alunas com escolas nas comunidades, disseminando nossa filosofia. Nossa equipe é muito elogiada pelos nossos parceiros como o Instituto Votorantim e Instituto Ayrton Senna.
Vocês também desenvolvem um trabalho com as mães dos alunos. Fale um pouco dessa atividade.
O projeto se chama Casa de Maria e foi criando em 2017, por iniciativa de uma das mães da turma de alunos com Síndrome de Down. Nesta turma, os alunos fazem capoeira, psicoterapia, dança, e essa mãe, que vinha da cidade de Aliança trazer a filha para as aulas, comprou agulha e linha e começou a ensinar outras mães da turma. O forte desse projeto é o crochê, o macramê, em bolsas, acessórios, utensílios para casa. Nós capacitamos as mães, promovemos palestras, cursos.
O foco é capacitar para que não fiquem com tempo ocioso e produzir peças com curadoria, que tenham diferencial. No primeiro ano do projeto, convidei Sérgio Matos, um designer renomado, premiado na Feira de Milão, e ele desenvolveu um trabalho inspirado no Movimento Armorial, depois tivemos uma coleção de uma designer pernambucana homenageando cada professor e também temos a coleção Capiba, desenvolvida pela designer paulista Luly Viana. As peças produzidas pelas mães seguem a temática vivenciada na escola. Enquanto toda a escola está vivenciando Capiba, elas também estão produzindo peças nesse tema, como a bolsa Frevo, por exemplo. Esse projeto faz muito bem para as mães. Nunca pensei que iria tomar essa dimensão. Também trabalhamos com elas dança, postura, respiração.
E os espetáculos do Aria Social como começaram?
O primeiro que remontei foi o Lua Cambará. Foi um casamento perfeito fazer esse conto de Ronaldo Correia de Brito em um espetáculo musical. Foi uma ideia de Mônica Japiassú para valorizar nossa cultura. Depois, fizemos o espetáculo musical baseado na vida de Villa-Lobos e o espetáculo Capiba, que representa muito bem a nossa cultura e já foi assistido por 22 mil pessoas em três turnês, batendo o recorde dos nossos outros espetáculos.
O Capiba apresentamos em São Paulo. Lua Cambará e Villa-Lobos fizemos no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília. Essas viagens em turnês são muito importantes para os alunos, eles visitam museus, têm uma overdose de cultura. Só não realizo mais espetáculos por falta de verbas, porque é preciso manter toda a estrutura da escola funcionando também. Ou seja, é complicado conseguir patrocínio para a escola e para os espetáculos. Tanto Lua Cambará quanto o Villa-Lobos eu não fiz mais apresentações por falta de verba.
Como vocês conseguem patrocínio para manter o projeto? Utilizam a Lei Rouanet?
Sim. Se a lei Rouanet não existisse, o Aria não existiria. Quando comecei, em 2004, passei seis meses sofrendo, porque eu só ouvia “não” na busca por patrocínio. Na época, a arte não era valorizada, o terceiro setor não era valorizado como hoje. Agora, temos muitas empresas de fora do Estado patrocinando. Há vários patrocinadores aqui em Pernambuco também.
Então realmente o projeto tem uma visibilidade boa, com bastante seriedade e isso tem nos ajudado muito com os apoios. Pernambuco já começou a nos apoiar mais. No início, os apoios eram praticamente no Sul, é um problema cultural. Mas a cultura da doação ainda precisa ser mais desenvolvida. Até pessoa física pode fazer doação. Temos também a parceria com a Neoenergia Pernambuco, em que as pessoas podem contribuir com o Aria Social doando a partir de R$ 2 descontados na conta de luz.
Quais são os próximos planos do projeto?
O primeiro é profissionalizar a gestão, porque já estou com 65 anos e preciso realmente de governança para o Aria não ser mais meu. Essa é a minha grande preocupação, então eu falo muito para as professoras aqui: “temos que ter discípulos”. Outro plano é voltar à ideia original de produzir espetáculos musicais. Quem faz a produção de todos os espetáculos somos nós, tenho produção na veia, gosto de fazer e realmente estou com esperança de conseguir patrocínio para os espetáculos.
O terceiro plano é em relação ao curso técnico profissionalizante, para que as pessoas saiam do Aria com diploma do Ministério da Educação. Porque o curso que realizei durante 15 anos para os professores não era com a chancela da Secretaria de Educação, eu e outros professores assinávamos, mas não tinha o reconhecimento do MEC. Agora, já temos o reconhecimento do MEC, temos a chancela da Escola de Música, mas não comecei ainda porque vou ter que ampliar um pouco a estrutura física para essa parte da música. Isso vai ser um divisor de águas.