O uso da bicicleta como ferramenta para o estudo da paisagem – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

O uso da bicicleta como ferramenta para o estudo da paisagem

Qualquer nova proposição na ciência começa pelo uso dos sentidos. “É só dos sentidos que procede toda a autenticidade, toda a boa consciência, toda a evidência da verdade”, dizia Nietzsche. Embora as circunstâncias mudem historicamente, é inegável que as atuais tecnologias ampliam as possibilidades dos sentidos. No entanto, elas não representam um bem em si mesmo, pelo menos no que se refere à ciência. Primeiramente, os ganhos de tempo decorrentes das tecnologias, que tornam tudo mais rápido, muitas vezes se transformam numa verdadeira apologia à velocidade e à quantidade, ficando muitos campos carentes de investigação e de novas proposições. Como em um círculo vicioso, velocidade e quantidade tendem a sobrepor o uso de um sentido (a visão), em detrimento de outros. Mas em se tratando de estudos sobre sistemas complexos como a paisagem e sua transformação, o uso dos demais sentidos pode ter uma importância diferenciada.

Paisagem e transformação são duas coisas que andam juntas. A paisagem nunca está congelada ou permanece estática. Em um permanente processo de transformação, ela se constitui em uma resultante do encontro de forças humanas e não humanas. Nesse encontro, o tempo desempenha um importante aspecto: olhar uma paisagem significa olhar para o passado. É aí que entra a bicicleta. Ela pode vir a favorecer, em uma escala que lhe é própria, alternativas de percepção de muitos elementos da paisagem e, ao mesmo tempo, discutir as possibilidades metodológicas que a mesma oferece no estudo da história ambiental.

Quase toda criança já viajou de bicicleta por lugares distantes. Eu não fui uma exceção. Na minha estive em terras longínquas a partir de meus seis anos. Não existiam duas voltas iguais. Mas lá pelos meus 12 essa magia encolheu e a bicicleta sumiu do meu horizonte. Em um belo dia, uns 50 anos depois, o trânsito infernal da cidade me obrigou a alugar uma bicicleta para um compromisso. Foi só sentar nela e toda a magia dos meus seis anos voltou no ato. Andar de bicicleta é, antes de qualquer coisa, algo extremamente lúdico. Você pode dirigir um carro mal-humorado; uma bicicleta, jamais.

Adulto, pude ver novamente que o transporte ativo possibilita outras maneiras de se perceber a paisagem. As bicicletas permitem novas experiências e percepções mesmo em paisagens familiares. Isso porque andar de bicicleta estimula substancialmente o uso combinado dos sentidos humanos.

Meio que sem querer, ou querendo, essa minha percepção se alinhou totalmente ao movimento da Slow Science, que defende o direito de cientistas fugirem da corrida pelo grande número de publicações e priorizem a qualidade da pesquisa. Portanto, venho desenvolvendo cada vez mais estudos da paisagem utilizando a bicicleta como meio de transporte e ferramenta de pesquisa.

A bicicleta é considerada o veículo de propulsão humana mais eficiente já inventado pelo homem. Trata-se de um veículo extremamente útil para deslocamentos curtos, a um custo baixíssimo. É um meio de transporte porta a porta, amigável, não poluente, espacialmente econômico, de fácil manuseio e de barata manutenção, de fácil integração com outros meios de transporte, acessível a todas as idades e classes sociais e um excelente exercício físico. Além disso, a bicicleta permite uma elevada flexibilidade ao seu usuário por não estar presa a horários e rotas prefixadas, podendo ainda circular em locais inacessíveis a outras modalidades de transporte.

Muitos laços ligam a bicicleta a políticas ambientais, notadamente no que se refere à poluição ambiental e à conservação de energia. A comparação com outras formas de transporte passivo (como o automóvel e motocicleta) traz talvez como principal distintivo justamente o acesso aos sentidos. Em uma autobiografia, o historiador britânico Eric Hobsbawm diz que os ciclistas se deslocam à velocidade das reações humanas e não estão isolados da luz, do ar, dos sons e aromas naturais por trás de para-brisas de vidro

A percepção do ambiente através do corpo constitui uma prática espacial que comprime o tempo, expande distâncias e torna os lugares mais densos em detalhes e complexidade. Experiências sensoriais através da visão, sons, tato e cheiros precedem a construção de significados através da linguagem e, frequentemente não podem ser convertidas em palavras. A percepção sensorial constitui assim um elemento essencial na prática da história ambiental. No entanto, é importante ressaltar que embora os sentidos sejam fundamentais para a obtenção de dados na pesquisa, eles não são os mesmos nas diferentes culturas. Ou seja, existe uma interpolação cultural entre sentidos e cultura. Imagens, cheiros, sons, texturas, gostos, palavras e qualquer outro aspecto da cultura são elementos relevantes para a maneira como apreendemos o mundo.

O transporte ativo possibilita outras maneiras de se perceber a paisagem. As bicicletas permitem novas experiências e percepções mesmo em paisagens familiares. Isso porque andar de bicicleta estimula substancialmente o uso combinado dos sentidos humanos

Na sua construção, a ciência não pode prescindir de novos paradigmas, modelos, representações e interpretações de mundo. Estes são alcançados pelo pesquisador por caminhos os mais diversos, mas sempre pela intermediação dos sentidos humanos. A mudança de paradigmas, particularmente aqueles ligados ao estudo da paisagem, muitas vezes aparece de forma fortuita, não intencional, tendo como porta de entrada os sentidos de quem a pesquisa. Cores, formas, ritmos, odores e sons circundantes trazem informações ao cérebro que, reagindo com percepções e conhecimentos anteriores, podem abrir novas combinações de sensações e pensamentos, possibilitando a sua organização sob a forma de um novo caminho.

O entrar em contato com a paisagem em sua vertente natural e cultural representa um convite a novas interpretações que ligam as relações entre os seres humanos e as paisagens, mediado por um uso mais intenso dos sentidos.

Por Rogério de Oliveira – diretor do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É doutor em Geografia pela UFRJ. Suas áreas de pesquisa são a Ecologia da Mata Atlântica, História ambiental e Ecologia histórica.

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