Degradada e sob pressão urbana, a cidade enfrenta uma tendência de esvaziamento populacional no seu centro histórico e a maior necessidade de fiscalização. Em paralelo, iniciativas de restauração e propostas de gestão federal buscam proteger seu patrimônio arquitetônico e cultural.
*Por Rafael Dantas
“O Sítio Histórico de Olinda tem passado por um processo de degradação acelerada”, alerta o presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, George Cabral. Declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1982, a cidade reúne um acervo arquitetônico e paisagístico singular, marcado por igrejas e conventos dos séculos 16 e 17, além do casario colonial. No entanto, ela convive com dinâmicas urbanas e mesmo culturais incompatíveis com a sua identidade e com a necessidade de preservação.
Apesar de o Centro Histórico de Olinda reunir 1,2 km² tombados, com paisagens marcantes, rica vegetação e a vantagem de estar próximo ao litoral, o turismo local não alcança a mesma vitalidade observada em outros patrimônios da Unesco, como as cidades mineiras de Ouro Preto e Diamantina. Somam-se a isso problemas de violência urbana e poluição sonora, que não apenas afastam visitantes mas, também, comprometem a permanência dos próprios moradores.
“Quando a Unesco tombou a Olinda, uma coisa que ficou bem clara na declaração: havia uma conjunção muito interessante do patrimônio construído, do patrimônio vegetal e da população que residia ali, como fazedora de cultura, como gente que animava aquele centro histórico. Mas esses moradores têm sido sistematicamente afastados, porque hoje é praticamente impossível você viver em sossego na cidade”, observa o historiador.

George Cabral ressalta que os moradores estão abandonando Olinda em busca de tranquilidade. Eles se queixam da falta de regulação das atividades dos espaços de show que se instalam nos casarões, das prévias carnavalescas que se estendem ao longo de metade do ano e dos roubos.
As queixas são relativas à falta de regulação das atividades dos espaços de show que se instalam nos casarões, das prévias carnavalescas que se estendem ao longo de metade do ano, dos roubos, inclusive de cabos de cobre que se conectam às residências. Situações de controle urbano, combinadas com o relaxamento das normas de preservação.
Esse conjunto de problemas e a consequente tendência de esvaziamento de moradores amplia as dificuldades de gerir uma cidade centenária, que naturalmente já teria os desafios de captar financiamento para a manutenção dos principais ícones arquitetônicos ou de induzir a conservação dos imóveis pelos seus proprietários.
A chefe do Escritório Técnico de Olinda do Iphan-PE, Ana Paula Lins, alerta que qualquer intervenção em imóveis tombados ou no entorno precisa de anuência do instituto, devido à proteção federal na região. Apesar de não tratar o cenário como alarmante, ela considera que há dificuldades em diversas frentes. Ana Paula lista, por exemplo, a falta de uma educação patrimonial dos moradores, a necessidade de definir regras para proteger ruas, igrejas e casario das grandes festas, a exemplo do Carnaval, bem como do reforço da fiscalização.

Especialistas alertam para a falta de uma educação patrimonial por parte dos moradores, e para a necessidade de definir regras para proteger ruas, igrejas e casario das grandes festas, a exemplo, do Carnaval, bem como do reforço da fiscalização.
“O número de intervenções irregulares cresce numa perspectiva muito maior do que os próprios órgãos podem dar conta, porque o número de funcionários e de técnicos não é suficiente para fiscalizar tudo o que vem acontecendo no Sítio Histórico”, justifica Ana Paula.
A folia do Carnaval e todo o seu ciclo de prévias fazem parte da identidade da cidade, isso é inegável. Porém, o tamanho que a festa alcançou também tem preocupado tanto em relação à preservação do patrimônio da cidade, como à própria integridade física dos brincantes. O assunto já chegou, inclusive, ao Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda.
DESAFIOS NA ÓTICA DO PODER MUNICIPAL
A Prefeitura de Olinda explica que os principais desafios da gestão desse Sítio Histórico estão relacionados à alta complexidade técnica e financeira. “Muitas obras exigem recursos humanos especializados, materiais específicos e licitações complexas. Há também situações emergenciais, como no caso da Casa 28, interditada, e do Palácio dos Governadores, que demandam intervenções urgentes de coberta, fachadas e instalações”, relata Marília Banholzer, secretária de Patrimônio e Cultura de Olinda.
Além da preservação direta dos imóveis, o poder municipal reconhece a dificuldade de lidar com as pressões urbanas da dinâmica local. Ou seja, equilibrar a necessidade de preservação com as demandas cotidianas da cidade, viva e habitada, e que também recebe atividades de massa, como o maior Carnaval de rua do mundo. “Mas estamos enfrentando esses desafios com planejamento, articulações para o uso do Fundo de Preservação, parcerias e até avaliando possibilidades de PPP (parceria público privada) em equipamentos. Isso nos permite avançar apesar das limitações”, explicou a secretária.

A Prefeitura de Olinda explica que os principais desafios da gestão do Sítio Histórico estão relacionados à alta complexidade técnica e financeira. Muitas obras exigem recursos humanos especializados, materiais específicos e licitações complexas.
A Prefeitura de Olinda informou que estão em andamento um conjunto de ações que envolvem tanto a zeladoria quanto a restauração de imóveis tombados. Entre as iniciativas, estão a recuperação da Praça Laura Nigro, a manutenção do Observatório do Alto da Sé – em parceria com o Governo do Estado –, a instalação de novas placas de sinalização turística e patrimonial, além das tratativas para a colocação de placas maiores. Também estão em fase de licitação e atualização de orçamentos projetos, como o Mercado da Ribeira e o Cine Olinda.
A secretária afirma que o patrimônio e a cultura da cidade seguem sendo um importante motor econômico de Olinda, visto que movimenta as pousadas, os restaurantes, os bares, o transporte, bem como o artesanato e toda cadeia da economia criativa. “Cada restauração concluída não é apenas uma vitória da preservação mas, também, uma oportunidade de gerar novos fluxos turísticos, valorizar o comércio local e fortalecer a imagem da cidade no cenário nacional e internacional”, destacou Marília.
INVESTIMENTOS FEDERAIS NA CIDADE
Mesmo com as preocupações, há investimentos externos em curso que voltaram ao radar da cidade, segundo a chefe do Escritório Técnico de Olinda do Iphan. Ela contabiliza mais de R$ 36 milhões no restauro de cinco bens tombados, além de mais de R$ 900 mil que foram captados para dois novos projetos.
As obras em curso, com financiamento garantido, são referentes à restauração do Casarão Hermann Lundgren – que abrigará o Centro de Memória de Olinda, a ser administrado pela Organização das Cidades Brasileiras Patrimônio Mundial – do Cine Duarte Coelho, do Mosteiro de São Bento, bem como intervenções na Igreja de São Pedro e de Nossa Senhora do Monte (com uma requalificação no largo e na coberta do templo).
Os demais aportes são referentes à emendas parlamentares destinadas aos Chalés do Carmo (para restauração, que prevê a implantação do Centro de Difusão do Carnaval, além de uma nova sede para o Conservatório Pernambucano de Música) e do Conjunto Franciscano. “Existem obras que já começaram. Para o próximo ano, há essa perspectiva de que muitos monumentos serão restaurados e reabilitados para a população e com novos usos também”, destacou Ana Paula Lins. Ela relatou que muitos desses projetos estão sendo feitos em parceria com a Fundarpe.

Além disso, a Fundarpe está também executando as obras de restauração do Museu de Arte Contemporânea de Olinda. Além do MAC, a fundação faz a gestão ainda do Museu de Arte Sacra de Pernambuco (Maspe) e Museu Regional de Olinda (Mureo).
PARA GARANTIR A PRESERVAÇÃO
Ana Paula Lins explica que está sendo construída, a partir de um convênio entre o Iphan e a UFPE, uma normativa de Olinda que irá definir diretrizes e critérios de intervenção no Sítio Histórico. O documento atualizará as regras para questões contemporâneas, como instalação de placas solares, antenas, novos usos e preservação da vegetação e do solo. A expectativa é que essa normativa seja finalizada ao longo de 2026. Mas ainda no mês de outubro deste ano será apresentado um diagnóstico sobre o Sítio Histórico elaborado pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
“Olinda tem uma normativa de intervenção, mas são critérios que precisam ser revisados para enfrentar os desafios de preservação na atualidade e para dar mais transparência. O proprietário vai saber o que poderá ou não fazer, de forma a serem alinhadas as intervenções com preservação do patrimônio”, explica Ana Paula Lins.

Neste convênio, por exemplo, foram contratadas duas consultorias às universidades locais. Uma delas é em referência ao solo de Olinda, realizada pelo Departamento de Engenharia da UPE (Universidade de Pernambuco). A segunda é em relação à massa vegetal do sítio Olinda, realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. “A vegetação é um dos atributos que justificam o reconhecimento de Olinda como patrimônio nacional e mundial. Por isso é muito importante que as intervenções respeitem os quintais de Olinda, evitem a retirada de árvores, porque tudo isso conforma o solo e a estrutura da colina histórica”, declarou a gestora.
Em artigo recente publicado na Revista Algomais, Francisco Cunha provocou uma reflexão sobre Olinda ao afirmar que, embora seja patrimônio da humanidade, ainda não é efetivamente patrimônio de Pernambuco. Para ele, muitos pernambucanos conhecem a cidade apenas durante o Carnaval ou em visitas esporádicas, sem vivenciar suas ruas, ladeiras, monumentos e vistas históricas com atenção e cuidado.
O consultor e líder do grupo Caminhadas Domingueiras defende que Olinda merece uma dotação contínua do orçamento do Governo de Pernambuco. “Dada a penúria dos orçamentos municipais das cidades com poucas alternativas econômicas como, infelizmente, é o caso de Olinda, um dos menores municípios do País, a mim parece absolutamente essencial que o nosso único patrimônio da humanidade tenha uma rubrica permanente no orçamento do Estado para a sua manutenção e desenvolvimento. Tudo isso com base num plano estratégico de longo prazo, elaborado com ampla participação da sociedade pernambucana”
O historiador George Cabral sugere que o Sítio Histórico de Olinda seja colocado sob gestão do Governo Federal, nos moldes de parques nacionais, para garantir a preservação contínua do patrimônio. Segundo ele, as instabilidades da administração municipal dificultam a implantação de políticas permanentes de conservação, e uma gestão federal poderia impor critérios mais rigorosos e consistentes, protegendo a cidade contra a degradação, o desrespeito às normas e o abandono dos imóveis históricos. “Como é um patrimônio federal, eu penso numa gestão federal mesmo. Por que não transformar o Sítio Histórico, pelo menos dentro da sua área de preservação rigorosa, em uma área de gestão federal, como são os parques nacionais, por exemplo?”
A Fundarpe informa que o bem é acautelado no âmbito federal e a gestão da preservação, dessa forma, deve ser compartilhada nas três esferas administrativas e com envolvimento da sociedade civil. Já existem conselhos de preservação nos âmbitos municipal e estadual, além da Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta. Uma engrenagem de gestão compartilhada para definição de ações e divisão de atribuições contribuiria para resultados mais eficientes.
O arquiteto José Luiz da Mota Menezes, em seu livro póstumo e recém-lançado Olinda em Seus Diversos Momentos, destaca o fascínio das cidades antigas, que contrastam com as metrópoles modernas. Enquanto estas priorizam velocidade e tecnologia, os centros históricos oferecem tranquilidade, poesia e escala humana, permitindo experiências sensoriais ricas e o contato com ruas silenciosas, curvas inesperadas e o casario antigo.
O contraste visto de forma positiva pelo arquiteto, no olhar de um visitante ou turista amante da história, parece se traduzir hoje numa tensão entre a exploração de atividades de entretenimento e comerciais atuais com patrimônio e o ritmo de uma cidade secular. Ele sugere no livro que “Olhar, da melhor maneira, não seria apenas ver, mas reconhecer e manter na memória o que se viu. (…) Percorrer suas ruas estreitas, tortuosas, mas carregadas de uma força telúrica da sua escala humana, é viver o contraste entre o velho e o novo, com a sensibilidade capaz de reconhecer valores nos dois tempos.”
Olinda enfrenta desafios de degradação e pressões urbanas que são comuns à várias grandes metrópoles brasileiras, mas tem uma história e uma vocação que não é comum à maioria das cidades. A tendência de redução da população, expulsa pelos problemas de controle, é um sinal de alerta. As iniciativas de restauração, a criação da normativa de intervenção e investimentos federais e municipais são alguns dos alentos nesse processo. Porém, a discussão urgente sobre o orçamento contínuo para regar a necessidade de preservação e mesmo uma possível ação mais forte do Governo Federal na gestão local são pautas ainda em aberto.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)