Onda de calor no País afeta a saúde, a economia e a sociedade – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Onda de calor no País afeta a saúde, a economia e a sociedade

Altas temperaturas propiciam o aumento de casos de doenças, como a dengue, afetam a produção agropecuária e aumentam as vendas de ar-condicionado, ventiladores e freezers.

*Por Rafael Dantas

Que calor! Esse é o começo de muitas conversas no Recife e talvez no Brasil nos últimos tempos. O ano de 2023 foi marcado por nove meses em que o País superou a média histórica de temperaturas, segundo dados do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia). Para 2024, as previsões não são otimistas. O observatório europeu Copernicus classificou o mês de janeiro como o mais quente da história do Planeta. Essa transição rápida da sensação térmica mexe com a saúde, com a agricultura e com os negócios em diversos setores.

SAÚDE EM AMEAÇA

O desconforto pelo calor está longe de ser o principal mal gerado pelo aumento da temperatura. Dias quentes provocam problemas de saúde (como a desidratação), que chegam inevitavelmente aos postos, clínicas e nos atendimentos de urgência, como explica o geriatra Rafael Duncan, do Hospital Universitário Oswaldo Cruz. “O aumento da temperatura global faz com que o nosso corpo sofra. Esse sofrimento vem associado especialmente ao desconforto do calor, que gera uma sensação térmica desagradável e uma perda de líquido. Quando a gente está em um ambiente quente, a gente tende a suar e esse suor é muito prejudicial”, afirmou o médico.

Ele explica que para pacientes mais jovens, que têm uma reserva fisiológica maior, isso pode ser um problema mais simples. Mas quando se trata da população mais velha, a perda de água no organismo pode criar dificuldades mais significativas. “Em uma pessoa jovem, 70% do corpo é água. Um paciente mais idoso pode chegar a 45% ou 50%. Se esse idoso perde mais um pouco, porque está suando, isso faz com que ele tenha muitas consequências negativas, com um mal-estar importante devido à desidratação”.

A sonolência, a letargia e até a incapacidade de viver sozinho podem ser alguns efeitos da desidratação no público mais velho. “Isso termina sobrecarregando o sistema público de saúde, que vai receber muito mais pacientes com problemas porque estão desidratados. A nossa velocidade de pensamento e de interação também vai sendo muito prejudicada com a desidratação, que nos deixa mais suscetíveis a outras infecções”, explica Rafael Duncan.

A exposição ao calor e ao sol tem ainda outros efeitos, segundo a professora Beatriz Araújo, da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças, da Universidade de Pernambuco, no Recife. “As pessoas podem ficar expostas ao sol e até ter queimaduras solares. Isso deve desencadear futuros problemas dermatológicos, como câncer de pele”, alerta.

O calor também está relacionado ao aumento do número de casos de dengue. “Com o aumento da temperatura, há uma mudança nos ciclos biológicos de determinados organismos que podem acelerar a veiculação de patógenos e causar um maior número de doenças. Podemos observar um aumento do número de insetos, especialmente dos vetores das arboviroses, como o Aedes aegypti, e dos vetores da Doença de Chagas e das leishmanioses”, afirmou Beatriz Araújo.

Ela explica que a atual onda crescente da dengue, que já ultrapassou 650 mil casos no País e mais de 100 mortes, tem relação direta com os dias mais quentes. “O aumento da incidência das chuvas, da temperatura e da umidade fazem com que o ciclo biológico dos insetos fique mais reduzido. Eles se transformam logo em adultos e vão iniciar o processo da transmissão da dengue. Estamos diante de uma epidemia da doença”.

PRODUÇÃO DE ALIMENTOS EM ALERTA

Além da saúde humana, a saúde dos solos e das plantações também sofrem com a onda de calor que atinge o País. O professor Saulo de Tarso, da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, docente do Programa de Pós-Graduação em Sanidade e Reprodução de Animais, destaca que é possível observar em todas as regiões do País alterações em volume, em quantidade, na qualidade de alimentos, além da disponibilidade de matéria-prima em diversos setores.

“Na região Centro-Oeste do Brasil, recebemos dados alarmantes sobre o número de pedidos de recuperação judicial de empresas do agronegócio. Lembrando que se trata tipicamente de uma área produtora de grãos e que depende muito da agricultura de sequeiro, sem irrigação. E devido à extrema ação degradante do setor agropecuário em relação à cobertura vegetal daquela região, essas mudanças climáticas já são sentidas com muita gravidade. Já conseguimos ver dados mostrando que a safra do começo do ano já está afetada em quase 20%”, afirmou o pesquisador, em referência principalmente à produção de grãos do País.

Ao analisar especialmente o semiárido, que sofre com ações centenárias de degradação do meio ambiente, os impactos são ainda mais graves. “Os efeitos, inclusive na produção, estão sendo mais sentidos por aqueles que são pequenos produtores, aqueles que têm que comprar insumos para a sua produção. Isso tem aumentado os custos com tratos agrícolas, com combustíveis, com a mão de obra. A situação é alarmante”.

Em relação a Pernambuco, Saulo lembra que o Estado tem produções agrícolas já reduzidas, sendo mais concentrada em regiões no Vale do Rio São Francisco. Mas, além da fruticultura, a agropecuária no Estado também está sofrendo, visto que depende diretamente de insumos que vêm da produção nacional de grãos, que está sendo afetada pela mudança climática.

“Já se consegue perceber efeitos graves em relação à temperatura que afetam a produção de frutas, com maior presença de pragas e, principalmente, pela mudança na pluviometria. Esse talvez seja o efeito mais grave. Quando mexemos na cobertura vegetal do nosso bioma, seja ele qual for, afetamos diretamente a quantidade de volume de umidade atmosférica e a formação das chuvas”, declarou Saulo.

Quanto à produção de animais no Estado, há dois polos que demandam mais atenção: a bacia leiteira e a avicultura. Ambos têm sofrido com a inflação dos insumos, atingindo principalmente os pequenos produtores. “Temos uma bacia leiteira forte, cujos insumos já são extremamente caros. Já se fala que quase 70% dos custos totais de produção pecuária estão voltados para a alimentação dos animais. Esses custos têm subido e forçado os produtores a terem uma margem menor para produzir. A pecuária leiteira é extremamente afetada, principalmente porque são produtores pequenos a médios, que dependem de insumos que vêm de fora”.

O docente faz o mesmo alerta na produção de aves, sejam as poedeiras ou aquelas de engorda. Esses produtores também dependem de insumos oriundos de outras regiões que tiveram suas safras afetadas fortemente pela crise do clima. “No geral, temos um cenário preocupante de inflação de preços e o consumidor final, principalmente pessoas de baixa renda, vai sofrer mais por ter menos acesso à comida e por ter também menos qualidade de vida, já que essas mudanças climáticas têm afetado diretamente o conforto doméstico dessa população”, avalia o professor da UFRPE.

Um estudo recém publicado na revista Nature sobre a Região Amazônica também indicou que, até 2050, o bioma pode ser afetado de maneira irreversível.

ATIVIDADE COMERCIAL COM EFEITOS DIFERENTES

No comércio e nos serviços, há dois tipos de consequências. Enquanto na venda dos alimentos, o efeito em cadeia da produção eleva os preços, diminuindo o acesso do consumidor final, em outros segmentos há um aumento da procura de itens justamente para diminuir o desconforto das altas temperaturas. “Os impactos negativos dessa onda de calor podem reverberar em vários outros setores, incluindo o mercado de trabalho e o Produto Interno Bruto. Além disso, provoca a elevação do consumo de eletricidade, o que pode sobrecarregar o sistema de energia elétrica e custar caro para a economia. As empresas térmicas podem beneficiar-se, pois a demanda por energia elétrica aumenta”, declarou o economista da Fecomércio-PE, Rafael Lima.

A sensação térmica nas alturas é o combustível para vendas de equipamentos de climatização ou relacionados ao verão. “A procura neste período do ano aumenta significativamente por equipamentos que reduzem o calor, além de protetor solar, cuidados pessoais, bebidas e itens do vestuário mais leve para enfrentar as altas temperaturas, como também moda praia e artigos esportivos”, adiantou o presidente da CDL Recife (Câmara de Dirigentes Lojistas), Fred Leal. Ele informou que só em relação a aparelho condicionador de ar e ventilador, as vendas dobraram em comparação ao ano passado. “As fábricas enviam os estoques, mas os pedidos dos clientes não param de chegar”, destacou o representante do varejo recifense.

Josélio Francisco da Silva, gerente do Relacionamento e Serviços da Ferreira Costa, informou que a rede tem registrado uma procura grande por ar-condicionado e ventilador. Entre janeiro e fevereiro deste ano, o crescimento nas vendas foi de 15%. Na comparação do primeiro bimestre do ano, com o mesmo período de 2023, o aumento varia entre 28% e 30%. “A procura é principalmente por ar-condicionado, embora tenham aumentado as vendas de ventiladores também, de todos os tipos: de teto, mesa, parede, de coluna”, contou o gerente. Diante da preocupação com o preço da conta de energia, os clientes têm optado também por tecnologias mais eficientes.

“O ar-condicionado inverter é muito procurado, porque o investimento gera uma compensação na conta de luz. É mais eficiente no médio prazo, pois consome, em média, de 40% menos”, afirma. Ele explica que o ventilador é uma solução mais procurada para os ambientes abertos.

A exemplo do que aconteceu com a pandemia, quando a necessidade de adaptação das residências para o home office impulsionou a demanda por reformas, a atual onda de calor pode também ter um impacto nesse segmento. “É possível que o setor de reformas veja uma nova onda de demanda para preparar as residências e diminuir a sensação de calor, especialmente considerando o aumento das temperaturas e a necessidade de tornar os ambientes domésticos mais confortáveis”, disse Rafael Lima.

O economista destaca que algumas medidas nesse segmento que podem ter aumento de demanda são a instalação de isolamento térmico nas paredes, tetos e pisos, além da implantação de telhados verdes, que são estruturas compostas por uma camada de vegetação para ajudar a reduzir a temperatura interna das casas. A instalação de elementos de sombreamento externo nas residências e prédios, como toldos, persianas ou plantas trepadeiras, é outro serviço que contribui para bloquear parte da radiação solar e que pode ter elevação da procura pelos consumidores.

INDÚSTRIA DE REFRIGERAÇÃO EM ALTA

Com sua fábrica em Paulista, a Fricon, gigante nacional em equipamentos de refrigeração, está recebendo desde o ano passado uma procura maior dos clientes corporativos. A indústria de freezers horizontais e verticais ampliou em 33% seu quadro de colaboradores no ano passado e prevê um aumento imediato de mais 12% de funcionários. A primeira onda de aumento foi para criar um novo turno de trabalho e otimizar a produção na fábrica. Agora, o investimento é para aumentar a eficiência das linhas auxiliares da empresa. “Quando o calor aumenta, nossos clientes têm demanda forte, principalmente dos setores de bebidas e sorvetes. Nossos clientes têm que abrir mais pontos de venda e necessitam de equipamentos de refrigeração”, afirma Michael Matos, superintendente de operações da Fricon.

Ele explica que desde fevereiro de 2023, a demanda da companhia vem crescendo. “Tivemos a necessidade de aumento de 23% da produção no ano passado. Isso gerou o aumento da contratação de funcionários e a redefinição do nosso planejamento em todas áreas do negócio. Crescemos para atender bem ao nosso cliente”. Trabalham aproximadamente 900 pessoas na planta de Paulista, com números em crescimento. Michael explica que o momento da empresa é de fortalecer as áreas de apoio da linha principal. A empresa fabrica os equipamentos para o mercado nacional e também para o exterior, enviando produtos para a América Latina.

MUDANÇA DE COMPORTAMENTOS SOCIAIS NO RADAR

A pesquisadora da UPE, Beatriz Araújo, ressalta que a mudança climpatica deveria levar a transições de comportamento na sociedade. A manutenção, por exemplo, do exercício de atividades de corrida nos horários quentes do dia podem ocasionar em episódios de dor de cabeça, picos hipertensivos e, em casos extremos, até em maus súbitos. “A temperatura em excesso é prejudicial. E muitas pessoas se expõem. Especialmente naquelas que têm problemas de alergia, as mudanças bruscas de temperatura podem aumentar os casos de síndromes respiratórias e gripais”.

Durante o Carnaval deste ano, inclusive, alguns artistas sugeriram uma alteração dos horários dos blocos carnavalescos no próximo ano, para driblar os horários de maior temperatura que levaram os foliões a desmaiar durante a folia. A discussão sobre os melhores horários e locais mais adequados deve passar por outros eventos de grande porte durante a onda de calor.

Rafael Duncan também ressalta mudanças no comportamento necessárias da população no cuidado com a saúde. “A gente tem que trabalhar o nosso comportamento, tentar organizar a nossa casa ou o lugar onde a gente está para que ele fique o mais refrescante possível. Trabalhar a ventilação dos cômodos da casa para que tenha saída de ar. A arquitetura hoje em dia tem muitos artifícios, às vezes até janela com aquelas películas que protegem contra o calor, pode ajudar também. Podemos modificar o ambiente para ser o mais refrescado possível, de forma estratégica e intencional para que seja um ambiente mais agradável”.

Outro ponto importante é a necessidade de a população aumentar a ingestão de líquidos ao longo do dia. O médico sugere que as pessoas estabeleçam metas específicas, calculando a quantidade necessária de água com base no peso corporal. Por exemplo, uma pessoa de 70 quilos pode precisar de 2100 ml de água diariamente (a quantidade de mililitros deve ser trinta vezes o peso). Recomenda- se manter uma garrafinha com essa quantidade e estabelecer o objetivo de consumi-la ao longo do dia. Iniciar o dia com um grande copo de água ao acordar é uma prática benéfica, especialmente após o período de jejum noturno”. Para idosos, que muitas vezes perdem o desejo de beber água, adicionar sabores à água pode ser uma estratégia, utilizando saborizadores com limão ou outras opções.

Seja na saúde, no campo ou na economia, o aumento de temperaturas veio para mudar a vida do planeta. As mudanças climáticas viraram literalmente assunto do cotidiano. Mudaram nosso consumo e nossos horários em cidades como o Recife, onde se costuma dizer que há um sol para cada um.

*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)

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