A Advogada Nathália Grizzi alerta para as mudanças que a nova lei fiscal vai provocar nas relações contratuais. Isto porque a carga tributária, embutida no preço do produto ou serviço contratado, poderá ser maior ou menor do que a atualmente paga, o que compromete os valores inicialmente acordados entre as partes. Ela orienta as empresas a adotarem a governança de contrato
Embora a Reforma Tributária só comece a entrar em vigor no ano que vem – num processo que se estende até 2033 – as suas repercussões na realidade financeira das empresas, porém, precisam ser previstas pelos gestores desde já. Um dos aspectos mais delicados dessa mudança está relacionado aos contratos, em especial os que envolvem fornecimento de longo prazo, como no caso de obras, por exemplo.
Isto porque, ao se fazer um contrato, os fornecedores estabelecem a precificação do produto ou serviço contratado, embutindo os custos com os tributos. Com a criação do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) – que substituirão PIS, Cofins, ICMS e ISS – deixa de haver a cobrança cumulativa dos impostos. Em consequência, a carga tributária poderá ser maior ou menor do que a atualmente paga nesse período antes da reforma, o que compromete os valores inicialmente acordados entre as partes. Ou seja, o preço poderá ficar defasado ou muito acima dos custos tributários. Em ambos os casos, uma das partes será prejudicada. Qual a solução?
Para saber mais sobre os impactos da Reforma Tributária nos contratos empresariais, Cláudia Santos conversou com a advogada Nathália Grizzi, sócia do escritório Martorelli Advogados, onde coordena o time especializado em direito empresarial, tributário, contencioso estratégico, arbitragem e energia. Para a especialista, essa situação pode levar a um aumento de litígios e orienta os gestores a implantarem, desde já, a “governança de contrato” para se precaver de contendas ou prejuízos futuros. Confira a seguir as explicações da advogada.

Por que a Reforma Tributária impacta os contratos empresariais?
A Reforma Tributária, na prática, está relacionada ao consumo, por meio de quatro tributos: PIS, Cofins, ICMS e ISS, que se transformam em dois tributos: IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Com isso, há uma simplificação no sistema, em razão da não cumulatividade dos impostos.
A mudança vai impactar quem está consumindo e, consequentemente, nas relações empresariais, como contratos de compra e venda, fornecimento, locação etc. Então, todos os contratos empresariais serão impactados pela Reforma Tributária. Isto porque, ao fazer qualquer contrato de bem ou serviço, a empresa precisa precificar, levando em consideração os custos com os tributos.
Se numa operação, eu considerava uma carga tributária de 25% e ela virou 26,5%, vou ter uma perda de 1,5%. Se eu considerava uma carga tributária de 27% e ela reduziu para 22%, vou ter um ganho de 5%. Isso significa que a equação econômico-financeira do contrato pode ser impactada porque depende muito da sistemática de débito e crédito. O impacto vai mexer com os consumidores finais mas, principalmente, com as empresas de serviço ou que trabalham com capital intensivo, como a venda de mercadoria que tem uma margem específica, já considerando a carga tributária.
Como serão esses impactos e de que maneira podem ser solucionados?
A Lei Complementar 214, que trata da Reforma Tributária, já prevê que os contratos públicos precisarão passar por um reequilíbrio econômico-financeiro para levar em consideração a nova carga tributária decorrente da reforma. A lei diz que a administração pública terá que se manifestar em 90 dias para iniciar um mecanismo de reequilíbrio econômico-financeiro e garantir que aquele contrato público volte à condição original de retorno.
Por exemplo, uma concessionária de um serviço público que, ao participar de uma licitação, levou em conta o pagamento do tributo num valor que lhe dava um retorno de 15%, se há uma elevação da carga tributária, o custo aumenta e o retorno diminui. Esse procedimento de reequilíbrio econômico-financeiro que a administração pública está obrigada a fazer é para garantir que, mesmo com a Reforma Tributária, o retorno do concessionário continue sendo 15%. É o que chamamos no direito de “fato do príncipe”, quando um contrato com a administração pública é impactado por algo que é exclusividade do governo. Ou seja, nos contratos públicos, a ideia é voltar para a condição financeira anterior ao impacto da Reforma Tributária.
Em relação aos contratos privados, o problema é maior porque terão que seguir a base legislativa que regula relações entre particulares que são o Código Civil, a Lei de Liberdade Econômica e o próprio contrato. No Código Civil, há a premissa de que o contrato não pode se tornar excessivamente oneroso para uma das partes. Dessa forma, vai ser preciso observar no contrato se há algum regramento entre as partes para voltar à condição original de antes da reforma.
A discussão é que, muitas vezes, o contrato particular não traz um mecanismo para isso. Em contratos de valores menores, em tese, o problema é menor, mas em contratos de fornecimento de longo prazo o impacto da reforma será maior. Assim, num contrato entre duas empresas, uma poderá pagar ou lucrar mais que a outra. Nesses contratos maiores e mais complexos, existe um grande gargalo que precisa ser observado com cuidado pelas empresas que devem começar a tratar essa questão agora, porque não há fórmula pronta.
Nos casos desses contratos que não preveem uma solução, você acha que pode aumentar o número de litígios?
Há probabilidade, sim, de litígio, de eventual hipótese de perdas e danos, especialmente em contratos de longo prazo. É importante fazer esse recorte não me refiro a qualquer contrato, mas naqueles de prestação continuada. Um contrato que inicia e encerra em 2025 não será impactado, mas um que dura três anos, por exemplo, pode, sim, gerar um incremento de litígio, e a depender do tipo de contrato, pode gerar um incremento de arbitragens. Estamos falando, por exemplo, de contratos de obra, de infraestrutura etc., muitos deles hoje já com cláusulas de arbitragem.
O que seriam essas arbitragens?
A arbitragem é um mecanismo criado em 1994 que chamamos de resolução alternativa de disputa. É você submeter um determinado assunto a uma câmara arbitral em vez de levar para o Poder Judiciário. Trata-se de uma jurisdição diferente da jurisdição estatal, mas que tem o mesmo poder vinculante de um conflito levado ao Poder Judiciário. Existem contratos que incluem a chamada cláusula compromissória, em que as partes ficam impedidas de recorrer ao Poder Judiciário, porque optaram pela jurisdição da arbitragem, que é sempre voluntária. Ou seja, você não será submetida à arbitragem se não quiser, mas se tiver assinado a cláusula, você está submetida a ela, não pode mudar de ideia.
A questão será julgada por uma câmara arbitral, composta por julgadores independentes, que não são juízes, são terceiros, normalmente credenciados por essas câmaras de arbitragem ou indicados pelas partes. Eles avaliam as provas, os argumentos e passam a proferir uma sentença, que é a sentença arbitral que substitui o Poder Judiciário. Uma vez o litígio julgado pelo Tribunal Arbitral, as partes não poderão dizer que não concordaram com o resultado e não poderão recorrer ao Judiciário, salvo em situações excepcionais.
Que outras consequências a Reforma Tributária pode trazer para os contratos?
Acho que haverá uma necessidade muito grande de governança de contrato. Há empresas que têm muitos contratos firmados e não têm dimensão da quantidade e dos impactos daqueles contratos na sua operação, não sabem quais deles têm cláusula de reequilíbrio econômico-financeiro. Caso não tenha, é aconselhável ter essa governança e antecipadamente negociar com a outra parte para criar esse mecanismo e começar a acompanhar.
Vamos precisar utilizar, nesses contratos, a chamada dispute board. É como criar um comitê de governança para acompanhar o andamento de contratos de fornecimento continuado que envolvem valores grandes. É um mecanismo moderno, em que os contratos são acompanhados dia a dia para evitar um litígio.
Um contrato de uma obra grande, por exemplo, geralmente tem um mecanismo de medição para acompanhar semanalmente ou mensalmente o percentual de avanço, se houve incremento significativo do preço, dos insumos, da matéria-prima, que justifique um pedido de revisão do valor daquele contrato pelo aumento do custo. A ideia é você não esperar o problema aumentar. As empresas que adotarem esse mecanismo vão sair na vanguarda.

Mas a maioria, infelizmente, ainda não tem essa cultura da necessidade de fazer um contrato bem estruturado, discutido, negociado e que seja bem acompanhado. Se não for feito um trabalho dessa forma, muito provavelmente, haverá uma grande judicialização. A função do jurídico nesse aspecto é essencial, atuando de forma estratégica e não no jurídico de litigância. O Poder Judiciário não está pronto para receber esses litígios em diversos níveis, pela quantidade de demanda, para dar uma solução a tempo, rápida e efetiva. O ideal é a empresa contar com um jurídico estratégico, no sentido de apoiar na tomada de decisão, na análise da operação, de tentar entender o problema e trazer solução, negociar, fazer composições, acompanhar o contrato. Enquanto ele está sendo negociado, executado, tentar uma eventual composição para que isso não gere um litígio. Isso seria um grande ganho para as empresas e para a sociedade de maneira geral.
É preciso que o mindset do empresariado mude para enxergar o jurídico não como um custo, mas como um investimento. Ter um bom advogado, um bom contador, um bom time fiscal, que ajude no corporativo pode significar um efetivo ganho de eficiência e de ganho econômico real.
Espero que, com a Reforma Tributária, as grandes empresas comecem a aderir a essa governança por ser um mecanismo robusto e que faz muita diferença. Agora, nos contratos menores, infelizmente, o custo deve ser repassado para o consumidor final.
A redução de custos também pode ser uma consequência da Reforma Tributária?
Pode haver redução, dependendo da operação. O trabalho da área fiscal da empresa junto com o time tributário ou de contadores é essencial para entender essa sistemática da não cumulatividade. Antes, algumas empresas que não podiam se creditar, agora, talvez, sejam beneficiadas pelo novo regime e isso pode significar uma eventual redução da carga tributária. Porque antes a empresa comprava uma determinada mercadoria, pagava X% de ICMS e não podia passar esse crédito para frente. Com essa nova sistemática, o governo promete que esse valor poderá ser repassado. Então, pode acontecer determinada situação em que você compra ou consome alguma mercadoria ou serviço que estava lhe custando 30 e depois vai passar a custar 20, porque você conseguiu compensar 10 do tributo.
É possível que isso aconteça, mas não é garantia que essa redução seja repassada para o consumidor final. O contrário é muito comum. Ou seja, quando há um aumento do custo para o fornecedor, ele repassa para o consumidor final imediatamente. Isso é comum em relação ao preço da gasolina. Muitas vezes a distribuidora não repassa a redução do custo para o consumidor.
Como as empresas podem se precaver em relação aos efeitos da Reforma Tributária nos contratos?
A Reforma Tributária vai acontecer em 2026, mas vai entrar numa fase de teste. Os efeitos plenos, de fato, a gente só vai ver em 2033. Mas isso significa uma necessidade de análise estratégica da base de contratos da empresa. Ela precisa, na minha visão, primeiro ter um diagnóstico do seu universo de contratos. Em quais ela atua como fornecedora e em quais está como tomadora e qual é o custo envolvido nesses que ela está como tomadora, para começar a abrir diálogos com seus eventuais fornecedores e entender se eles já estão fazendo algum tipo de cálculo sobre o impacto da Reforma Tributária e do custo desse contrato.
É essencial ter ou contratar profissionais capazes de ajudar nessa equação econômica e financeira, para perceber qual vai ser o impacto real do custo da Reforma Tributária para a empresa. Com esse ponto de partida, será possível saber se em determinado contrato sua margem será diminuída e se vai ser preciso negociar com o cliente. Caso seja necessária essa negociação, é preciso ter uma base.
No nosso escritório, por exemplo, trabalhamos com o sistema tecnológico Bob Contratos, no qual, com o uso de inteligência artificial generativa, é analisada toda a base contratual do cliente, identificada cláusulas críticas e lacunas contratuais. O sistema também mapeia riscos e gera indicadores e alertas automáticos.
A minha sugestão é que a empresa comece a fazer o estudo dentro de casa, com um trabalho dedicado para construir um plano de ação. Dessa forma, será possível entender o que precisa reajustar nos seus contratos e evitar o caos, esse sentimento generalizado de pânico. A gente vivenciou muito isso na época da pandemia, com uma judicialização excessiva de contratos, pessoas querendo suspender pagamentos, evitar reajustes etc.
Depois de passado o sufoco inicial, percebemos que boa parte daquelas demandas, de fato, precisavam de uma intervenção judicial, mas havia uma outra parte que era uma demanda aventureira, houve situações em que os serviços continuaram fluindo no mundo digital. Achávamos que o cenário seria caótico para todo mundo, mas, para algumas pessoas, não foi. Não raro eu escuto clientes dizendo que tiveram um incremento de receita na época da pandemia.
Então, a mensagem a ser repassada neste momento em que se discute a Reforma Tributária é: devemos ter calma, agir sem pânico, mas com trabalho consistente. É preciso ter clareza e começar a, se necessário, ter as renegociações a partir de conversas desafiadoras, porque isso faz parte da relação empresarial. Essa conversa (entre fornecedores e tomadores) precisa ser feita com embasamento. O momento agora é de se preparar, de estudar de verdade, não apenas ficar esperando os impactos chegarem.
