Como consequência da atual pandemia provocada pelo novo coronavírus, as eleições municipais de 2020 no Brasil tornaram-se as mais imprevisíveis desde a redemocratização de meados dos anos 1980. Em condições normais, a essa altura de um ano eleitoral, e de seu calendário, os partidos e as coligações partidárias já teriam definido os candidatos a prefeito, inclusive as próprias convenções já teriam sido realizadas. Assim como, teríamos mais pesquisas de intenção de votos a servir de ponto de partida para nossas análises.
Mas, com a pandemia em curso sem ter alcançado sequer o pico no Brasil, e sem muitas certezas de quando isso poderá ocorrer, do ponto de vista das eleições municipais, estas ficaram, estão e tenderão a ficar mesmo fora de foco também no segundo semestre.
Com efeito, o acompanhamento dos desdobramentos da pandemia tem ocupado o noticiário nacional e local, em função do seu alcance e impacto. E, assim como os governos federal e estadual, o poder municipal tem sido chamado a se posicionar e a tomar medidas concretas no combate à pandemia, contribuindo para uma dispersão de iniciativas sempre ligadas às eleições em anos de disputas ainda no primeiro semestre. E tem mesmo contribuído para desviar o foco dos temas que costumam estar presentes em eleições municipais, como problemas relacionados à oferta universal e de boa qualidade de serviços básicos à população.
Por outro lado, se não bastasse uma crise sanitária sem precedentes, atravessamos desde 2016, pelo menos, as maiores crises política e institucional dessa atual quadra democrática, estando a própria democracia, inclusive, ameaçada, colocada em xeque, sobretudo após a posse de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão em 2019. Evidentemente, tivemos outras relevantes crises políticas, mesmo nesse período que se convencionou a chamar de ‘Nova República’, até porque tais crises são recorrentes no País. Mas nunca houve tanto questionamentos e ameaças aos poderes Legislativo, nesse caso o Congresso Nacional, e Judiciário, em particular à sua instância máxima, o Supremo Tribunal Federal, e aos políticos e ministros, que os comandam, respectivamente.
Foi nesse contexto, portanto, de forte crise sanitária e de crises política e institucional, e dos inúmeros e graves problemas resultantes do comportamento e das iniciativas do governo federal, que as eleições municipais foram jogadas para o segundo ou até mesmo o terceiro plano. E uma das consequências mais palpáveis foi a decisão de adiar as eleições para novembro deste ano, como medida prudente e necessária para atender ao distanciamento social em tempos de pandemia. Tal medida contraria, inclusive, o comportamento e a forma de encarar a pandemia do próprio presidente da República, que a ignora e não tem respeitado as recomendações da OMS e do próprio Ministério da Saúde quanto ao uso de máscara e ao distanciamento social. Algo que tem colocado a maior parte dos atuais governadores e prefeitos contra o presidente, o que poderá ter efeitos nas disputas municipais deste ano, dependendo do que ocorrer até novembro em termos de óbitos, por exemplo, provocados pelo novo coronavírus.
Tal cenário tenderá fazer com que haja a federalização dos debates eleitorais, contrapondo aqueles que apoiam a gestão de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão aos que têm se oposto a ela, em particular nesses aspectos, ou seja, aqueles que envolvem a pandemia. Sobretudo nas grandes cidades, o que inclui as capitais e municípios de regiões metropolitanas, as eleições podem se tornar plebiscitárias: contra ou favor do governo federal, quer dizer, de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão.
Outro aspecto a observar é quanto à possibilidade de haver um crescimento na abstenção em relação às eleições passadas. De fato, dependendo de como for organizada a votação, o que inclui a distribuição dos dias de votação e dos eleitores nesses dias, entre outras medidas, pode, sim, haver uma maior abstenção. Muitos poderão ficar com receio de comparecer às urnas. E sabemos que o ônus do não comparecimento é baixo, em termos dos custos, mas também porque uma eventual ausência será mais do que nunca justificável dependendo do cenário imposto pela continuidade ou não da crise sanitária.
A continuidade da crise sanitária deverá afetar igualmente a campanha eleitoral. E por razões óbvias. Não se poderá fazer o uso do contato pessoal com o eleitor, quer seja no tradicional corpo a corpo ou em reuniões presenciais. A campanha deverá, então, migrar mesmo para os espaços virtuais, propiciados pelo uso mais intensivo das redes sociais, por meio da internet. A crise sanitária já tem feito das redes sociais e a internet praticamente os únicos meios para que as pessoas se comuniquem, qualquer que seja a área em que atuam, com todas as restrições que isso tem implicado, pois, no Brasil, há um enorme abismo, uma enorme desigualdade quanto ao seu acesso e uso.
O dinheiro para o financiamento das campanhas também deverá estar mais curto em função da crise econômica resultado da crise sanitária, o que implicará em menos recursos para a propaganda eleitoral obrigatória no rádio e na televisão. Mas, talvez, se poupe na confecção mais tímida dos chamados ‘santinhos’. Pode ser que o seu uso seja mais intenso nos dias das eleições. Mas, aí, já há mesmo mais restrições para a sua distribuição, segundo a legislação eleitoral vigente.
Assim, tal fato tenderá a contribuir para que os partidos e os candidatos usem mais as redes sociais, em particular, e a internet, de modo geral, para fazer as suas campanhas. Nos municípios menores isso talvez não seja tão efetivo, porque o uso e o acesso a essas tecnologias são mais limitados.
Finalmente, a essa altura, e pelas razões expostas até aqui, ou seja, o pouco debate eleitoral, o distanciamento social entre os candidatos e os eleitores, as crises em curso, é necessário reconhecer que está sendo igualmente mais difícil apontar cenários mais precisos quanto ao tipo de candidato que será favorecido até a realização das eleições: se o candidato que possa representar uma novidade na disputa ou se aquele que se beneficiará do ‘recall’, isto é, que se beneficiará por já ser conhecido de outras disputas eleitorais.
E mais: ainda devemos levar em consideração em que posição estarão quaisquer desses candidatos em relação ao governo federal, como resultado do desgaste que a gestão Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão enfrenta, que, no meu entendimento, tenderá a se agravar até novembro. É certo que Bolsonaro e Mourão ainda gozam do apoio de um eleitorado mais fiel. Contudo, como têm apontado as pesquisas dos institutos que têm avaliado o desempenho do governo federal, esse apoio mais inconteste tem diminuído. E se consideramos que há uma tendência real de federalização do debate eleitoral na disputa municipal que se avizinha, então, tal fato deverá impactar a campanha e o resultado do pleito. De toda forma, para o bem ou para o mal, provavelmente o ‘recall’ dos candidatos será um fator ainda mais importante nas eleições deste ano.
*Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundaj