“Para lidar com a IA é preciso sair da bolha” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“Para lidar com a IA é preciso sair da bolha”

Se você teme ser substituído no trabalho por alguma ferramenta de inteligência artificial, a dica do consultor da TGI Fábio Menezes é: invista no desenvolvimento da sua inteligência tipicamente humana. Ou seja, amplie e diversifique seus conhecimentos, leia livros, ouça música e assista a filmes de diferentes temáticas, vá a exposições de artes plásticas e não se limite a obter informações apenas da sua “bolha” profissional ou social.

“Isso lhe dá uma condição de fazer conexões que talvez o especialista em determinada tecnologia não consiga porque o campo de raciocínio dele vai ficar mais delimitado (…) por mais inteligente que seja, ele pode ter dificuldade de fazer associações, abstrações, que quem tem uma leitura mais ampla tende a ter mais facilidade”, orienta.

Nesta entrevista concedida a Cláudia Santos, o consultor recomenda ainda aos profissionais se inteirarem sobre o uso das ferramentas da IA na sua área de atuação. Ele também analisa o impacto da tecnologia no futuro do mundo do trabalho.

Bill Gates afirmou que a IA permitirá uma semana de trabalho de três dias, em razão do aumento da produtividade que a tecnologia proporciona. Já Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, disse estar preocupado com o fato de esse ganho de produtividade ser apropriado por quem emprega. Como você analisa essa questão?

Em alguns lugares do mundo estão sendo realizados testes de uma semana de trabalho com apenas quatro dias. Há relatos de empresas que fizeram esse teste e observaram um aumento na produtividade, refletindo em uma melhora na receita, além de os funcionários terem demonstrado satisfação. O modelo começou a ser testado no Brasil, porém, ainda não tive acesso aos dados referentes ao País. Bill Gates já mencionou a possibilidade de reduzir para três dias, o que já é uma mudança significativa.

Não estou certo se o impacto do aumento na produtividade resultará na redução dos dias de trabalho ou se teremos a mesma quantidade, porém com uma produção muito maior. Ferramentas como a inteligência artificial têm o potencial de aumentar a produtividade, uma vez que poderão substituir, pelo menos, uma parte do processo. Por exemplo, em vez de começar a escrever um texto do zero, possamos iniciar editando-o.

Acho importante considerar que, geralmente, as pessoas refletem sobre esses assuntos com base nas ferramentas disponíveis no momento. No entanto, o avanço delas não segue uma progressão aritmética mas, sim, geométrica, o que é extraordinário. Quem sabe, daqui a um ano, entrevistas como esta não precisem mais de sua participação, sendo conduzidas por uma inteligência artificial que interaja comigo e envia a você uma versão esquematizada para revisão final. Isso é pura imaginação, mas não duvido que nos próximos anos o avanço dessas ferramentas será significativo, impactando a produtividade.

Quanto à apropriação dessas mudanças, seja por parte das empresas ou das pessoas, é difícil afirmar. Até o momento, parece depender da realidade e natureza de cada trabalho, além do perfil e ambições individuais. Se a empresa passa a produzir apenas de segunda a quarta-feira, os profissionais terão a quinta, sexta, sábado e domingo livres. Mas para fazer o quê? Isso dependerá de cada pessoa.

Alguns podem buscar outra atividade ou, até mesmo, empreender enquanto mantêm seu emprego atual. Acredito que isso terá um impacto significativo em mudanças sociais que são difíceis de prever. Por enquanto, o melhor é observar e tentar compreender. Não apenas observar passivamente mas, também, acompanhar e experimentar essas mudanças e ferramentas.

Alguns estudiosos apontam também que a IA pode aumentar as desigualdades. Você concorda?

Acredito que esse seja um grande desafio pois, com a sofisticação da inteligência artificial, também se sofistica a maneira como podemos usá-las. Hoje, fala-se muito sobre os prompts (nome dado às instruções que o usuário passa para ferramentas como o ChatGPT), uma expressão cada vez mais presente, à medida que as pessoas buscam aprender e se adaptar. Para que as pessoas possam explorar essas ferramentas da melhor forma possível, aproveitando em prol de seu ganho de produtividade, é necessário um certo nível de educação.

Em uma sociedade já desigual, acredito que esse seja, de fato, um grande desafio: evitar ampliar ainda mais essas disparidades. Aqueles com maior capacidade ou familiaridade com a IA, ou mesmo com uma base educacional mais sólida, talvez possam aumentar consideravelmente sua produtividade em relação àqueles que não possuem essas vantagens.

Trata-se, então, de um velho problema com uma velha solução: o investimento em educação?

Justamente. É um antigo problema que pode ser amplificado pela inteligência artificial. É difícil para mim ter posições claras em relação a tudo isso pois a IA é versátil e pode ser aplicada de diversas maneiras. Algumas ferramentas podem agravar a desigualdade, enquanto outras talvez não. Por exemplo, o smartphone é algo que praticamente todas as camadas sociais têm acesso. Observam-se, por exemplo, pessoas que, se tentarem expressar algo por escrito, não conseguem ser compreendidas, mas por meio de mensagens de áudio conseguem se comunicar. Antes, não era possível enviar áudio por carta, tinha que ser escrita, mas a tecnologia possibilitou enviar um áudio ou até mesmo um vídeo.

Nesse sentido, a desigualdade diminuiu já que o avanço tecnológico permitiu que tanto uma pessoa da classe A quanto alguém das classes D ou E pudessem enviar o mesmo tipo de áudio ou vídeo. A qualidade pode variar em termos de megapixels, mas a comunicação acontece. Por outro lado, as ferramentas mais complexas de inteligência artificial tendem a demandar um certo nível de educação, habilidades interpretativas e conhecimento para fazer edições necessárias.

Acredito que não há uma resposta única para essa questão, mas percebo que é um desafio e requer cuidado para não ampliar esse abismo. Provavelmente, todos os governos ao redor do mundo devem estar pensando sobre isso.

Já que tocou neste assunto, especialistas afirmam que os países não estão preparados para esse impacto da IA no trabalho e defendem uma ação de forma globalizada e organizada. Você acredita que essa interferência seria eficaz?

Acho que essa articulação seria muitíssimo bem-vinda. No entanto, tenho muita dificuldade em acreditar no grau de eficácia prática dela. Acho muito difícil pois o desenvolvimento dessas ferramentas não é estritamente controlado pelas grandes corporações. Em algum quartinho, em algum lugar do mundo, tem um menino desenvolvendo alguma coisa. Como é que você controla um negócio desse? É muito complicado alcançar uma articulação global com essa magnitude.

Não muito tempo atrás, dizia-se que a tecnologia só afetaria o emprego de atividades mecânicas, repetitivas e sem criatividade. Mas, em 2023, vimos uma greve de roteiristas de Hollywood que temiam os impactos da IA. Como você analisa essa mudança?

Vejo como uma evolução natural da inteligência artificial generativa que vai além da automatização de processos mais operacionais, é capaz de gerar. Gera texto, imagem, músicas. Enfim, ela vai ampliando o seu grau de alcance, que antes era muito mais restrito para as atividades mais operacionais repetitivas.

Estive com um cliente que me disse: “pela primeira vez, nós perdemos um trabalho para a inteligência social”. Eles tinham um cliente que, de vez em quando, os contratavam para um trabalho específico, e foi a primeira vez que ele não os contratou, optando por usar uma inteligência artificial que realizou o que precisava, mesmo que de forma mais simples. Mas começa assim, não era um trabalho dos mais sofisticados, antes era realizado por eles e agora não foi mais. Daqui a cinco anos, talvez, a IA faça esses trabalhos mais sofisticados. Mas acredito que isso tende a acontecer cada vez mais e talvez movimentos de algumas classes de trabalhadores também aconteçam mais, pela própria resistência a essas mudanças.

A tecnologia continuou evoluindo de tal forma que descambamos para o campo da inteligência artificial, que vai impactar no roteirista de Hollywood, que é o epicentro do cinema mundial. Amanhã será em outro lugar, outra categoria. Acho que isso é natural. Se vai acabar alguma atividade profissional, aí é outra história. O táxi não acabou por causa do Uber, pelo contrário, as pessoas agora têm a opção de solicitar um taxista por meio de um aplicativo, algo que antes não existia. Daqui a pouco, a inteligência artificial vai realizar tarefas que até ontem não fazia e vai impactar outro grupo que vai protestar, que vai fazer greve. Isso acontece desde sempre.

Como você imagina o mundo do trabalho nos próximos anos sob a influência da IA?

Acho que a gente deve ter um mundo cada vez mais das ideias. Eu estava conversando sobre educação com uma gestora de escola onde se estabeleceu uma discussão sobre os modelos tradicional escolar de fazer prova e ter nota e aqueles que adotam conceitos ou não tem as provas tão formais. Eu me preocupo zero com nota e prova. Daqui que meus filhos terminem o ensino médio, vai ter muita mudança na inteligência artificial e no curso para o qual vão prestar o vestibular, se é que vão prestar nessa sociedade que muda tanto.

Acho que a preocupação é muito mais de formar pessoas que tenham uma ampla capacidade de reflexão sobre as coisas, que tenham uma formação cidadã consistente, que tenham capacidade de leitura, de abstração, porque imagino que o trabalho lá na frente caminhe cada vez mais para algo próximo disso. É muito difícil dizer como vai ser mas, por esse raciocínio, imagino que quem tiver uma capacidade de reflexão mais ampla sobre as coisas tende a ter uma condição de lidar melhor com as situações de trabalho no futuro.

Outro dia li que tivemos os grandes filósofos anos e anos atrás, que de certa maneira ajudaram a estruturar a forma como a sociedade se desenvolveu. Mas a velocidade das mudanças é tão grande e tão forte que é como se a gente estivesse precisando de novos filósofos para pensar: e agora, nesse mundo novo, como é que vai ser? Porque os parâmetros estão mudando muito.

Eu estava com meu irmão num velório e ele estava o tempo todo no celular trabalhando – ele tem um emprego nos Estados Unidos e veio para o Brasil. Eu disse: olha aí a maravilha do trabalho remoto! Estando nos Estados Unidos ou no Brasil, podemos trabalhar em qualquer lugar. Quem pensou sobre isso? Acho que ninguém. Está todo mundo agora tentando compreender essas coisas e como isso gera um impacto brutal na forma como as pessoas vivem.

Uma condição que ultrapassa muitas fronteiras, que vai afetar a saúde mental, a produtividade, causar estresse. Quando é que você está trabalhando e quando não está trabalhando? Onde você está trabalhando e onde não está? Quais são os limites? Precisa ter limite? Tem gente que se adapta e tem gente que não se adapta. As fronteiras delimitadas, do ponto de vista da construção social, estão cada vez mais estreitas, estão mudando muito e a sociedade mundial precisa de estudiosos que estejam raciocinando sobre isso, para ajudar as pessoas a se adaptarem, como sempre foi. Não é a primeira vez na história que a sociedade passa por isso, tivemos a revolução agrícola, a revolução industrial, agora é mais uma revolução industrial, 4.0 ou 5.0. Isso não vai parar.

O futuro tende a ser cada vez mais intelectual e precisa de mais lato sensu, menos stricto sensu, de pessoas com cabeça mais aberta. Como pode ser um advogado alguém que só entende e estuda direito? Eu estava vendo uma pessoa dizer: “leia filosofia, literatura, ciências e se sobrar tempo, estude um pouco de direito”. Washington Olivetto (publicitário) também afirmou que disse a mesma coisa nas suas agências: “leia sobre filosofia, sobre direito, sobre literatura, história, se sobrar tempo, estude um pouquinho de publicidade”.

Porque senão você fica com uma visão muito estreita e hoje em dia isso é muito mais forte por causa das bolhas. Uma questão determinante para ter algum tipo de movimento deliberado para lidar com a inteligência artificial é sair da bolha: ler revistas diferentes, ler livros diferentes, assistir a filmes diferentes, não ficar só restrito àquela atividade profissional, àquela coisa que você gosta. Aí você tende a ter uma capacidade maior, inclusive de lidar com a IA porque não é só inteligência artificial versus inteligência humana, é como você interage com ela e esse é o desafio.

Além dessa, qual a outra dica que você daria para um profissional se preparar para essa revolução da inteligência artificial no trabalho?

Existem duas principais iniciativas. Uma é se inteirar sobre esse processo evolutivo. O que temos hoje, é o ChatGPT 1? Depois vem o 2, depois 3, depois 4… é preciso entender como ele funciona. Acho que os profissionais mais estratégicos não devem ficar alheios a isso, não precisam ser especialistas mas, minimamente, conhecer e ver quais são os caminhos até para tentar se beneficiar, principalmente no que diz respeito à produtividade.

A segunda iniciativa é no sentido que eu estava falando: não só ler sobre inteligência artificial, mas ler filosofia, poesia, história, ler outras coisas porque isso lhe dá uma condição de fazer conexões que talvez o especialista em determinada tecnologia não consiga porque o campo de raciocínio dele vai ficar mais delimitado. Ele pode até ser ultraespecialista naquilo mas, por mais inteligente que seja, ele pode ter dificuldade de fazer associações, conexões, abstrações, que quem tem uma leitura mais ampla tende a ter mais facilidade de fazer.

Eu estava conversando com outra coordenadora de escola e ela estava dizendo que hoje em dia existe esse movimento cada vez maior de escolas bilíngues e a escola que não é bilíngue vai sofrendo uma pressão da comunidade de pais e mães para ensinar inglês para os alunos. Ela disse uma coisa que achei interessante: “ao invés de mais aula de inglês, que ninguém tem dúvida de que é importante, talvez eu preferisse mais aulas de artes plásticas, de literatura, de música, ouvir e pensar sobre coisas diferentes, como aquela obra foi construída, a história de quem compôs determinada música. Será que isso é menos importante do que falar inglês rápido?

Estamos nessa corrida da competitividade, da substituição de postos de trabalho, de falar inglês, espanhol, francês, preenchendo de uma forma cada vez mais quantitativa o currículo. Ao mesmo tempo, a pessoa não sabe ou não consegue apreciar uma arte abstrata, uma música diferente. O quanto isso impacta na produtividade profissional dela? Na capacidade de formular soluções que não foram concebidas? De lidar com problemas difíceis?

É como se na época do desenvolvimento acelerado da inteligência artificial, a gente devesse reforçar o desenvolvimento da inteligência tipicamente humana. E não é reforçar a inteligência humana para fazer frente mas, pelo contrário, para poder se beneficiar das novas tecnologias.

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