A qualidade das calçadas, arborização e iluminação são fundamentais para a mobilidade segura e sustentável, tea reforçado nesta semana no Dia Sem Meu Carro. Mas as políticas públicas do País seguem priorizando o transporte motorizado.
*Por Rafael Dantas
Caminhabilidade rima com mobilidade e com sustentabilidade. Apesar dos deslocamentos a pé serem considerados positivos para a dinâmica urbana, para a redução de poluentes na atmosfera e, até, mesmo para a saúde da população, esse modal está longe de ser protagonista das políticas públicas no Brasil. Há décadas, as cidades foram planejadas para os carros, gerando uma série de efeitos negativos, como poluição, mortes e engarrafamentos. O papel do transporte público e das bikes, mesmo ainda sendo tratados como coadjuvantes e tendo baixo investimento, são modais que ganharam um pouco mais de atenção do poder público nos últimos anos. Mas o pedestre segue quase como invisível nessa equação.
Na Região Metropolitana do Recife, segundo pesquisa publicada pela Unifafire neste ano, 11,72% da população tem como principal meio para se deslocar o andar a pé. No entanto, mesmo quem se desloca prioritariamente em carro ou moto ou faz seu trajeto de ônibus ou metrô em algum momento do seu dia é pedestre: sai de um estacionamento, atravessa um semáforo, anda alguns quarteirões até chegar ao seu destino.
Caminhabilidade é a qualidade de um ambiente urbano que facilita, incentiva e torna seguro o deslocamento a pé, considerando fatores como segurança, acessibilidade, conforto, conectividade e proximidade de serviços e destinos. Ambientes com alta caminhabilidade promovem mobilidade sustentável, saúde e interação social.
A qualidade das calçadas é a infraestrutura mais básica quando tratamos sobre o que é necessário para o deslocamento seguro dos pedestres. Mas há uma série de outras preocupações que estão igualmente longe de ser atendidas. A iluminação adequada, a arborização que garanta um maior conforto térmico, a segurança contra a violência urbana e contra os acidentes nas travessias das ruas… esses são apenas alguns dos muitos fatores que mexem com a vida de todos os cidadãos. Porém atingem especialmente os mais vulneráveis.
A vulnerabilidade nesse caso não é referente à imensa maioria das população que não tem transporte individual motorizado, mas em relação aos grupos com alguma limitação motora, como os idosos ou pessoas com deficiência, que deveriam ser o alvo das políticas públicas de mobilidade urbana. Afinal, uma cidade que é funcional para um morador na terceira idade, para um cadeirante ou para uma mãe que precisa se deslocar com um carrinho de bebê vai atender aos demais cidadãos. Mas, não é por acaso que esses perfis mais vulneráveis não são encontrados com facilidade nas calçadas.
CIDADE QUE NÃO É FÁCIL PARA TODOS
César Cavalcanti, professor aposentado da UFPE e integrante da ANTP (Associação Nacional dos Transportes Públicos) mora no bairro Espinheiro há 54 anos. Ele contou que hoje dirige pouco, prefere andar a pé e, vivendo em uma “cidade de 15 minutos”, consegue resolver quase tudo no bairro. “Tenho praticamente tudo a minha disposição a 15 ou 20 minutos, no máximo, andando. Bom para minha saúde e poupa meu dinheiro”, afirmou.
Mas a experiência cotidiana não é simples. Aos 84 anos, Cavalcanti disse que teme cair nas calçadas da cidade. “O piso é um horror. Quando chove então, é difícil fazer os deslocamentos, tenho medo de levar uma queda ou sofrer um acidente”, comentou. Ele defende que o Recife tenha padronização nos passeios, com pisos antiderrapantes, manutenção regular e sem buracos.
O cuidado com as calçadas é um dos grandes dilemas urbanos, já que a responsabilidade por sua construção e manutenção recai sobre os proprietários dos imóveis. Enquanto isso, vultosos recursos públicos são investidos anualmente no pavimento destinado ao transporte motorizado. Essa disparidade se soma à falta de fiscalização para assegurar o cumprimento das normas legais, transformando as calçadas em um mosaico irregular, frequentemente disputado por acessos de garagem, mobiliário urbano e ocupações indevidas.

A arquiteta e urbanista Yara Baiardi defende que a caminhabilidade deve ser entendida como um direito coletivo e não apenas como a responsabilidade individual de manter uma calçada. Para ela, o espaço público começa na porta de casa e deveria ser pensado prioritariamente para o pedestre, com qualidade de piso, inclinação adequada, iluminação e continuidade no desenho urbano. Mas ocorre o contrário, argumenta, as ruas recebem um “tapete vermelho” para os automóveis, enquanto as calçadas são fragmentadas, o que gera desigualdade e precariedade no caminhar.
Baiardi critica as normas de acessibilidade que, em vez de priorizarem o pedestre, acabaram por distorcer o uso do espaço público, ao permitir rampas de garagem sobre as calçadas. Para ela, a faixa mínima de 1,20 metro é insuficiente, já que não acomoda nem duas pessoas caminhando lado a lado. A urbanista recorda que, até o início do Século 20, as calçadas brasileiras eram planas e funcionais, mas as adaptações trazidas pelo automóvel comprometeram a mobilidade de pedestres, sobretudo idosos e cadeirantes.
Na avaliação da arquiteta, o problema vai além da falta de fiscalização: trata-se de um traço cultural marcado pelo individualismo, em que cada proprietário vê a calçada como extensão privada, não como espaço coletivo. Essa lógica se soma à ausência de políticas públicas consistentes de padronização, diferentemente do que ocorre com o asfalto, que foi uniformizado em praticamente todas as ruas do País. “Todos nós somos pedestres em algum momento da vida. Mas enquanto não compreendermos que cidade se constrói coletivamente, do vizinho ao poder público, continuaremos transferindo responsabilidades”, afirmou.

ARBORIZAÇÃO E ILUMINAÇÃO NA EQUAÇÃO
Em uma cidade tropical, a arborização é um elemento central para a caminhabilidade. O consultor empresarial e militante da mobilidade a pé, Francisco Cunha, ressalta que nas condições do Recife “sombra é vida”. Sem cobertura vegetal, caminhar a pé torna-se inviável sob o sol forte. Ele lembrou que mesmo os bairros da Zona Norte, como Espinheiro e Graças, que ainda preservam áreas sombreadas, já sofrem com a redução gradual das árvores. Já a Zona Sul, especialmente Boa Viagem, é “inóspita para a caminhada”, pois com calçadas igualmente maltratadas, apresentam também ausência de arborização.
Francisco apontou avanços recentes, como programas municipais de plantio de árvores – a exemplo da Rui Barbosa, que já conta com exemplares de porte significativo –, mas ressaltou que ainda falta disseminar a consciência coletiva de que a arborização é um bem público essencial para a qualidade de vida. Ele também criticou a tendência de comerciantes derrubarem árvores em áreas mistas. “A árvore é vista como empecilho pelo comércio e tende a ser derrubada com os argumentos mais pífios.”

O engenheiro César Cavalcanti também destacou que a arborização precisa ser planejada em conjunto com a iluminação pública. Muitas árvores antigas no Espinheiro, segundo ele, têm raízes que destroem calçadas e copas que dificultam a visibilidade, o que aumenta a insegurança. Para Cavalcanti, a humanização das cidades exige soluções integradas, que incluam iluminação projetada para os pedestres.
A caminhabilidade, no entanto, não se limita às condições físicas: envolve também a percepção de segurança e a experiência subjetiva de quem caminha. Dados do Instituto Locomotiva mostram que, entre as moradoras das periferias, 89% apontam o medo de estupro como principal preocupação, 93% temem assaltos e 85% se preocupam com assédio ou importunação sexual. Esses números evidenciam que a segurança é um fator determinante para o estímulo dos deslocamentos a pé.
VIOLÊNCIA NO TRÂNSITO AINDA É UM CALO DO PAÍS
A discussão da caminhabilidade, no entanto, não é apenas sobre qualidade de vida, é também uma questão de sobrevivência. Isso porque a violência no trânsito brasileiro segue em trajetória preocupante. Em 2023, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, 35 mil pessoas morreram em acidentes. A maior parte das vítimas foi de ocupantes de veículos (14.420 mortes, 41,2% do total), seguida de motociclistas (13.477 óbitos, 38,5%). Porém, os pedestres representaram 16% das mortes, com 5.662 vítimas no mesmo ano, enquanto os ciclistas responderam por 4,3% dos óbitos (1.510 casos).
O quadro revela que veículos individuais – automóveis e motos – continuam sendo protagonistas da tragédia nas ruas e estradas do País. César Cavalcanti chama atenção para a necessidade de ações urgentes e integradas para reduzir essa violência, lembrando que países desenvolvidos já avançam em direção à meta de “zero mortes” no trânsito. “Essa carnificina não pode continuar, temos que tomar atitudes drásticas para reverter a situação, infelizmente não é bem o que estamos observando”.

Na capital pernambucana, houve um aumento de 10% dos sinistros de trânsito em 2024. Com isso, o Recife atingiu a marca de 10 mortes para cada 100 mil habitantes. Em números absolutos, apenas na cidade foram 159 vítimas, segundo o Relatório Preliminar de Mortes no Trânsito 2025 da CTTU. O número de vítimas é crescente desde 2021, em plena pandemia, quando morreram 88 pessoas.
Quando observados os modais utilizados pelas vítimas, o número de mortes é liderado pelos pedestres e pelos motociclistas (ambos com 43). Além desses, foram 9 pessoas mortas em automóveis e 5 ciclistas. Números que destoam do cenário nacional e que exigem um olhar mais atento à mobilidade ativa.
APESAR DAS DIFICULDADES, ACONTECERAM ALGUNS AVANÇOS
Francisco Cunha destacou que o debate sobre caminhabilidade no Recife é relativamente recente. Há 15 anos sequer se entendia andar a pé como uma forma legítima de deslocamento urbano – a discussão se restringia ao transporte individual motorizado e ao transporte público. Ainda hoje, muitos estudos desconsideram os dados referentes aos pedestres na mobilidade. A partir de 2012, o tema começou a ganhar espaço, sendo impulsionado em 2020 pela pandemia, que evidenciou a importância do viver ao ar livre e levou mais pessoas a ocuparem as ruas.
Entre os avanços concretos, ele ressaltou o programa municipal de requalificação de calçadas, o Calçada Legal, financiado com recursos da Caixa Econômica, e a pesquisa Parque Capibaribe, que projetou margens do rio como espaços de convivência, articulação urbana e prática de caminhada. Na avaliação do urbanista, iniciativas como o circuito de caminhada implantado na área da Graças representam passos significativos para tornar a cidade mais amigável ao pedestre.

Apesar disso, Cunha pondera que os progressos ainda estão longe do necessário de oferecer condições adequadas e seguras para quem caminha. “Houve avanços em termos de entendimento dos problemas e algumas melhorias urbanísticas. Estamos ainda muito longe do que precisaríamos, mas podemos afirmar que não estamos mais no zero”, constata, ressaltando que o desafio é ampliar o alcance dessas políticas e consolidar a caminhabilidade como parte estratégica do planejamento urbano.
Além do olhar técnico, Francisco Cunha compartilha seu hábito das caminhadas domingueiras pelo Recife. Para ele, andar pelas ruas é uma forma de observar os valores da cidade e a interação das pessoas com o espaço urbano. Mas vai além: essas caminhadas são também uma oportunidade de fruição cultural e histórica. Ao percorrer bairros antigos, praças e margens de rios, Francisco identifica pontos de referência, histórias e curiosidades muitas vezes desconhecidas dos próprios moradores, mostrando que a cidade pode ser compreendida e apreciada não apenas como espaço de deslocamento, mas como um museu vivo. Ele acredita que, ao sinalizar e contar essas histórias, é possível incentivar mais pessoas a caminhar, unindo mobilidade, exercício físico e conhecimento cultural.
Apesar das dificuldades da valorização do espaço dos pedestres na mobilidade, César Cavalcanti também vê avanços no debate urbano e defende que o Recife precisa diminuir a velocidade nas ruas e acelerar esse processo de pensar as cidades para as pessoas. “A tendência da humanização das cidades existe e está chegando ao Brasil. É importante dar atenção às escolas de arquitetura e urbanismo, com papel fundamental nesse sentido”, completou.
CIDADE DE 15 MINUTOS É UTOPIA?

O conceito de cidade de 15 minutos propõe um modelo urbano em que todas as necessidades básicas da população, como trabalho, educação, saúde, comércio, lazer e espaços verdes, estejam acessíveis a uma caminhada ou pedalada de até 15 minutos a partir de onde se vive. Essa abordagem prioriza a mobilidade ativa, como andar a pé ou de bicicleta, reduzindo a dependência do carro, os congestionamentos e a emissão de poluentes.
Ao mesmo tempo, fortalece a economia local, melhora a qualidade de vida e promove o bem-estar físico e mental dos moradores. Desenvolvido pelo urbanista Carlos Moreno, o conceito se baseia na proximidade e diversidade, oferecendo uma visão de cidade mais humana, sustentável e conectada às necessidades de quem a habita.
“A cidade de 15 minutos é uma provocação para a gente largar o carro”, resume Yara Baiardi. Apesar dessa proposta parecer ser muito distante da nossa realidade, a urbanista destaca que vários bairros, mesmo da periferia do Recife, oferecem uma série de serviços que reduzem a necessidade dos seus moradores fazerem grandes deslocamentos.
Beberibe, Afogados, Ibura… Não são poucos os exemplos. Sobre essa perspectiva, Yara é pragmática: “Não é utopia. Em muitos bairros já existe essa escala, mas precisamos de planejamento coletivo. É uma cidade onde 90% das atividades podem ser resolvidas próximas de casa, com serviços essenciais acessíveis e lazer em pequenas praças. Mas isso exige ação integrada, do público e do privado, e uma cultura de cuidado com o espaço coletivo”. Em áreas mais periféricas ou morros, ela pondera que o tempo necessário pode ser um pouco maior, de 30 minutos, por exemplo.
Além disso, a urbanista destaca que a cidade de 15 minutos vai além da proximidade física: envolve também qualidade dos espaços públicos, segurança e diversidade de usos, para que as pessoas possam realmente realizar suas atividades cotidianas a pé ou de bicicleta. Ela ressalta a importância de praças, creches, escolas, postos de saúde e comércio local bem distribuídos, garantindo que a rotina das pessoas não dependa do carro. Em áreas mais densas, o conceito pode ser ampliado com soluções como ciclovias e integração com transporte público, tornando a cidade mais inclusiva, sustentável e resiliente às desigualdades urbanas.
Apesar dos desafios históricos e estruturais, a caminhada como forma de mobilidade urbana vem ganhando aos poucos espaço nas discussões sobre cidades mais humanas e sustentáveis. Melhorar calçadas, arborização, iluminação e segurança não é apenas uma questão de infraestrutura, mas de reconhecimento do direito coletivo de todos se deslocarem com autonomia e dignidade.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)