Em 2010 o Ibope produziu extenso relatório sobre suas pesquisas em 24 estados, intitulado “Balanço das eleições de 2010”, e diz no intróito: “Neste documento podem ser observadas as intenções de voto obtidas nas pesquisas divulgadas na véspera da eleição e nas pesquisas de boca de urna comparadas aos resultados oficiais do TSE”.
Depois de mostrar para cada estado da Federação o “percentual de votos previstos corretamente”, o instituto elabora um quadro resumo com o título: “Índices de acertos no 1º turno de 2010”, no qual detalha a quantidade e os percentuais de: (a) acertos de candidatos com estimativas dentro da margem de erro; (b) acertos na colocação dos candidatos, apesar de estimativas fora da margem de erro; (c) candidatos fora da margem de erro e da colocação final. A conclusão triunfante do relatório no seu quadro-resumo é a de que: “o percentual total de acerto, considerando a margem de erro ou a colocação do candidato” é de 98% para governador e 95% para senador.
O que é que mudou de 2010 para cá, que não se pode mais comparar as estimativas de intenção de votos das pesquisas de véspera com os resultados das urnas e quem o faz comete uma inconcebível heresia? Graças à sua popularização e disseminação urbi et orbi, a pesquisa tornou-se indissociável das eleições, a ponto de assumir protagonismo tal que é impensável acompanhar o processo eleitoral sem sua presença.
Em virtude desse protagonismo, somado à carga emocional que transmite, a pesquisa passou a ser objeto das mais variadas críticas, até mesmo de influenciar decisões do eleitor e, em última instância, de definir eleições. O assunto é complexo e exigiria discussão mais aprofundada. Por enquanto, apenas a questão das intenções de votos das pesquisas de véspera e os resultados oficiais é abordada.
É oportuno enfatizar, ab initio, que sendo a pesquisa um mero instrumento técnico de acompanhamento do processo eleitoral, que serve para apontar tendências com base em levantamentos sucessivos, não é seu propósito predizer os percentuais exatos que os candidatos obterão nas urnas. O que a pesquisa faz é estabelecer um intervalo de variação para suas estimativas (ou prognósticos, numa conceituação mais livre e popular) dentro de certo nível estatístico de confiança, na expectativa de que os percentuais estimados de intenção de votos estejam circunscritos a esse intervalo de variação, quer dizer, à margem de erro amostral.
O cientista político Jairo Nicolau sintetizou bem essa compreensão, de resto já incorporada à paisagem, popularizada na mídia e no seio do grande público: “... para avaliarmos o grau de precisão dos institutos precisamos comparar os resultados das urnas com os da última pesquisa publicada, levando em conta a margem de erro”.
Devido à crescente enxurrada de críticas às pesquisas, eleição após eleição, derivada das discrepâncias entre suas estimativas de intenção de votos e os resultados das urnas, os institutos passaram a adotar a narrativa de que essa comparação é indevida (quando erram, naturalmente), elaborando malabarismos retóricos do tipo: “Uma coisa é a intenção de voto nas pesquisas, outra coisa é o comportamento do eleitor na urna, quer dizer, sua decisão de voto”; “Os levantamentos de véspera não têm função de antecipar resultados”; “O objetivo da pesquisa é contar a história da eleição até sábado”; “O que se divulga representa sempre o momento para trás, não para frente”; “Até por marketing, nós mesmos, dos institutos, tratamos esses números divulgados na véspera como prognósticos, mas, na verdade eles são diagnósticos, refletem uma realidade que já passou”...
Desse contorcionismo com as palavras o que se extrai? Estimativas dentro da margem de erro, os institutos acertam [“Conseguimos prever 95% dos votos corretos do primeiro turno...” (Ibope, Congresso em Foco)], fora da margem, os institutos não erram [“Erram os que cobram precisão numérica de pesquisas encerradas na véspera da eleição, quando ainda há indecisos” (Datafolha, FSP)].
Corolário: os institutos nunca erram! Ora, se a pesquisa só olha no retrovisor e “reflete uma realidade que já passou”, por que, então, os próprios institutos alardeiam a cada eleição que acertaram tantos por cento dos resultados? Por que os seus sites continuam apresentando as pesquisas com dizeres tais como: “Pesquisa aponta vitória de fulano”. “Cicrano dispara e deve ganhar no primeiro turno”, “Beltrano pode ser eleito no domingo”, e por aí vai? Isso é “antecipar resultados” ou as palavras mudaram de significado?
Ao adotarem tais narrativas ambíguas, os institutos cada vez mais se enrolam num novelo de contradições, potencializando os crescentes danos à imagem das pesquisas. O momento é de ressignificação para os institutos, que devem, sem subterfúgios: assumir o status preditivo das pesquisas; admitir que estimativa dentro da margem de erro é acerto e fora é erro; e reconhecer as dificuldades técnicas de lidar com:
[a] a volatilidade do voto (o eleitor está decidindo o voto na undécima hora); [b] o comportamento errático do eleitor (cada vez mais “líquido”, despolitizado, indecifrável) e [c] a caixa preta do não-voto (brancos, nulos e indecisos) e [d] a característica “voluntária” do voto no Brasil.
Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.