Em outubro, começou a valer uma lei que permite aos descendentes de judeus sefarditas espalhados pelo mundo adquirir a nacionalidade espanhola. A medida, que já havia sido adotada pelo governo de Portugal, significa uma reparação histórica pela expulsão dessa comunidade no século 15. Uma resolução que afeta inclusive a população de Pernambuco, afinal, a memória do Estado se confunde com a dos judeus. Com uma poderosa economia açucareira no período colonial, a Terra dos Altos Coqueiros foi destino de milhares desses cristãos-novos que precisavam escapar da Inquisição na Península Ibérica. Tal relação é hoje “denunciada” pela vasta quantidade, aqui encontrada, de sobrenomes originários de plantas e animais, supostamente adotados para disfarçar a descendência judaica. É bem verdade que não faltam Pereiras, Oliveiras e Coelhos em solo pernambucano.
Os nomes de família são justamente o ponto de partida para conseguir a dupla cidadania, no entanto, não são via de prova exclusiva da descendência sefardita. Antes mesmo da aprovação das leis, uma lista com mais de 5 mil sobrenomes (incluindo os já citados) que dariam direito ao benefício começou a circular. Mas, de acordo com a embaixada espanhola no Brasil, essa listagem é falsa. Não sendo, então, um item obrigatório. Para conceder a nacionalidade, cada um dos países que aderiu à regra tem suas próprias exigências (veja quadro), todavia, um item é básico: um certificado emitido pela comunidade judaica que comprove os laços consanguíneos com os cristãos-novos.
Alguns dos marranos, como também são denominados, já têm os documentos que os legitimam como tal. No entanto, ao longo dos anos, muitos perderam o contato com a cultura judaica e nem sequer sabem de sua ancestralidade. A alternativa para os que desconfiam de sua origem é fazer uma investigação genealógica dos seus antepassados. Em Pernambuco, o estudo pode ser realizado pelo Arquivo Judaico. Segundo a coordenadora científica da instituição, Tânia Kaufman, algumas informações sobre os pais, avós e bisavós são fundamentais para iniciar a pesquisa. Contudo, ela enfatiza que o trabalho não é simples, pois o material de busca é escasso. “Até pouco tempo, nem todos conheciam a existência da comunidade sefardita no século 17, muito menos, sabiam do eixo de ligação entre aquela congregação e a atual comunidade formada no século 20 pelos judeus de origem ashkenazita, que vieram da Europa Ocidental e Oriental.”
Mais minucioso do que o governo português, o Ministério da Justiça espanhol solicita, além do certificado, a realização de testes. “Entre os diversos requisitos exigidos, um deles é a comprovação da vinculação especial com a Espanha, o que exigirá a superação de duas provas”, esclarece o diretor do Instituto Cervantes do Recife, Isidoro Castellanos Vega, responsável pela aplicação das provas. Na primeira etapa, o candidato precisa comprovar o conhecimento básico do idioma. A segunda avaliação, por sua vez, contém questões sobre a Constituição e cultura espanhola.
Já com a resolução em vigor, Portugal recebeu cerca de 900 solicitações de cidadania. No vice-consulado no Recife, entretanto, apenas três pessoas buscaram se informar sobre como ocorre o processo, sem que nenhuma delas tenha entrado com o pedido. Um dado que vai de encontro aos laços históricos dos judeus sefarditas com o Estado. “Como a lei é recente, é provável que muita gente ainda não saiba”, acredita o vice-cônsul Adriano José da Fonte Moutinho. A nacionalidade portuguesa, aos sefarditas, é concedida por naturalização. Logo, o requerente só poderá transmitir a cidadania aos filhos nascidos após a data de deferimento. De acordo com Moutinho, encaminhado ao Conservatório dos Registros Centrais em Lisboa, o processo dem ra, em média, seis meses para ser concluído. Para ele, a medida representa o pagamento de uma dívida que Portugal tinha com os judeus. “Eles tiveram que sair por causa da perseguição religiosa. Então, eu acho que não se fez mais do que justiça.”
Também chamados de sefaradim, os sefarditas têm sua nomenclatura originária de uma palavra em hebraico que se refere aqueles oriundos da Península Ibérica. Perseguidos pela Inquisição em 1492, os judeus foram expulsos pelo governo Espanhol e boa parte deles migrou para Portugal. Mas a estadia no país não durou muito tempo. Cumprindo uma cláusula de seu casamento com a princesa espanhola Maria de Aragão, o rei português D. Manuel I promulgou um novo Édito de Expulsão. Sem poder permanecer na região, cerca de 100 mil judeus se dispersaram pela Europa, Oriente Médio e África.
É provável que os sefarditas tenham sido os primeiros judeus a pisar em solo brasileiro, chegando ainda na época do descobrimento. “Na esquadra de Pedro Álvares Cabral, grande parte era de cristãos-novos. Hoje, supõe-se, que a tripulação era selecionada entre aqueles que precisavam deixar Portugal”, afirma Kaufman. Essa mesma lógica foi seguida para ocupação da costa da, então, colônia lusa. Desse modo, com o objetivo proteger o litoral de possíveis invasões, a Coroa doava amplas faixas de terras para a implantação de engenhos. “Mas os nobres não tinham o interesse de vir para uma terra despovoada e desabitada. Então, Portugal fechava um pouco os olhos e deixava que os judeus partissem”, explica a coordenadora científica do Arquivo Judaico de Pernambuco.
Na capitania hereditária instalada em Pernambuco, não foi diferente. Aliás, o seu primeiro donatário, Duarte Coelho, trouxe vários cristãos novos para desenvolver a indústria açucareira. Para se ter ideia da influência judaica, dos cinco principais engenhos que existiram em 1550, ao menos um, pertencia a judeus. Era o de Diogo Fernandes, casado com a lendária Branca Dias. Mas, um levantamento demográfico e genealógico dos engenhos no Estado realizado pelo Núcleo de Pesquisa do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, aponta que o número de propriedades dedicadas ao cultivo da cana é ainda maior do que se imaginava.
Apesar dos diversos indícios que apontam para a presença dos sefarditas no Estado, não é possível precisar quantitativamente. “O que se pode inferir é que foi tão forte que os costumes deles atravessaram os séculos e aparecem até hoje”, coloca Kaufman. A tradição de acender velas na segunda e sexta-feira é um desses vestígios. “Assim, era possível disfarçar o acendimento da vela na noite do shabat (dia de descanso semanal no judaísmo)”, acrescenta. A carne-de-sol, muito utilizada no Nordeste, poderia ser outro resquício de tradições judaicas. A técnica de salgar a carne e colocar em local ventilado era utilizada pelos judeus para tornar o alimento próprio para o consumo.
Mais tarde, no século 16, uma nova leva de judeus sefarditas vinda de Amsterdam se misturou à população pernambucana. Antes expulsos de Portugal e depois acolhidos pela Holanda, onde havia certa liberdade religiosa, eles desceram em solos brasileiros em busca de prosperidade nos negócios da economia açucareira. Aqui, fundaram a primeira sinagoga das Américas, a Karl Zur Israel. Localizado no Bairro do Recife, hoje o espaço funciona como um museu e abriga o Arquivo Judaico.
Resistentes à passagem do tempo, cerca de 20 herdeiros da cultura sefardita, os bnei anussim, fundaram, no Recife, a associação Sefardita Beit Shmuel de Cultura. A sinagoga, na Ilha do Leite, reúne não apenas marranos vindos da Península Ibérica, mas também originários do Marrocos, como é o caso do próprio líder religioso, o chazan Isaac Essoudry, nascido em Casablanca. De descendência marroquina, o antropólogo Renato Athias explica que a liturgia utilizada no espaço religioso é a sefardita-marroquino. “O rito utilizado pelos que vieram da Holanda, no período colonial, era o judeu-português, mas, no Recife atual, ele não existe mais. O que mais se aproxima é o rito sefardita-marroquino”, diferencia.
Sefarditas com direito à cidadania europeia
Rafael Dantas
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