Esses dias pensei na Rainha Elizabeth I, que ficou conhecida como “a rainha virgem” por nunca ter se casado e tido filhos. Uma mulher forte que esteve à frente da chamada “era de ouro” da Inglaterra; derrotou a Armada Espanhola, conhecida como “invencível”; não se submeteu a uma lista de casamentos arranjados e foi celebrada pelo povo.
Ela deveria ser lembrada por sua inteligência, astúcia e ambição, mas o tema mais recorrente sobre sua história é o que ela fazia ou deixava de fazer na cama. Afinal, o que restaria a uma mulher sem marido? Ser “a rainha virgem” com uma vida sexual misteriosa.
Enquanto os rapazes têm sua sexualidade incentivada (e não estou dizendo que isso é bom), o prazer da mulher é reprimido. Homens crescem falando abertamente de sexo, pagam para perder suas virgindades e têm uma indústria farmacêutica e pornográfica trabalhando incansavelmente por seus desejos sexuais.
No caso feminino, tudo é tabu. Desde pequenas somos ensinadas a sermos recatadas e puras. O que resulta em mulheres silenciadas e culpadas. Enquanto eles se divertem, elas traçam um caminho doloroso e solitário até o autoconhecimento e a descoberta do prazer. Muitas passarão a vida sem saber o que é isso.
Em uma pesquisa feita pela ONG britânica The Eve Appeal divulgada pela Galileu (2015), metade das entrevistadas, entre 26 e 35 anos, não soube apontar a localização da vagina em um desenho simples do sistema reprodutivo. Além disso, um terço das mulheres entrevistadas não vai ao ginecologista por vergonha. Até onde chegamos?
O que nos leva ao famigerado clítoris. Até o século 19, o órgão era muito estudado porque acreditava-se que ele tinha um papel importante na fertilidade. Quando desmascarado, foi deixado de lado e resgatado do ostracismo há pouco tempo.
Ao longo da história, o órgão foi motivo de caça às bruxas e chamado de “marca do diabo”. Talvez por inveja dos homens porque o corpo da mulher é biologicamente agraciado. O clítoris, única parte humana desenvolvida especificamente para dar prazer, tem 8 mil terminações nervosas (o dobro do que o pênis). A repressão à sexualidade feminina impede que as mulheres aproveitem tudo isso.
Apesar de o mundo estar bem diferente do que já foi, o clichê continua. Morar em uma das regiões mais provincianas de um país machista me ensinou sobre isso. Ainda se espera que a mulher não tenha desejos. Ao contrário do homem, que é vangloriado por ser garanhão, mulherengo e desculpado por seus impulsos.
Essa repressão não poderia ser diferente quando vivemos numa sociedade que, para começar, tem como a mãe de todas as mulheres a Virgem Maria. Antes de ser Maria, ela é a Virgem. Seu filho sagrado nasceu de um milagre, jamais de um ato que envolva prazer. Eva, o seu maior contraponto, é o símbolo da culpa por ter caído em tentação.
Seu maior pecado mesmo foi ter nascido mulher.
De um lado, me alegro ao ver mulheres discutindo abertamente sobre temas “proibidos” como a rapper badalada Karol Conka, que deu o que falar com sua nova música “Lalá”, na qual discorre sobre a importância do sexo oral para mulher. “Chega a ser hilário. Mal sabe a diferença de um clitóris para um ovário”, canta.
De outro, ainda vivemos num mundo no qual o prazer feminino além de ser tabu, ainda é alvo de perseguição. Mais de 100 milhões de mulheres já sofreram mutilação genital. Em muitos países, a reconstituição do hímen é prática comum. O “atestado de virgindade” ainda é um preço a ser pago por tantas mulheres.
Esse cabo de guerra uma hora vai enfraquecer do lado do clichê conservador e cansativo. O lado que se renova em energia e “ousadia” vai ganhar. Até que sejamos completamente livres. Em todos os sentidos. Para isso, teremos rappers, o fantasma de Elizabeth I e todas os tipos de mulheres fazendo a força no nosso time.
*Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais
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