Psiquiatra Amaury Cantilino analisa os motivos que levam muitas pessoas a se sentirem melancólicas durante este período de festas e afirma que a tristeza pode ser o gatilho para fazer mudanças e projetar uma vida que faça mais sentido e tenha propósito.
Passado o Natal, quando as famílias alegremente se confraternizaram, chega a hora do Réveillon, um momento de comemorar as conquistas realizadas no ano que passou. Essa tradição festiva, porém, não é vivida com um sentimento de felicidade por muitas pessoas que se sentem melancólicas durante este período de festas. O psiquiatra Amaury Cantilino conversou com Cláudia Santos e Rafael Dantas sobre os motivos que fazem emergir esses sentimentos, agravados pela influência das redes sociais.
Cantilino, que foi presidente da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria e é preceptor da Residência em Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFPE, salienta que a tristeza aflorada pode ser uma oportunidade para a autorreflexão, para promover mudanças e engatar um projeto para viver melhor e com propósito. E nada como o início do ano, época em que se tem a sensação de um recomeço e de fazer novos planos para realizar essa transformação.
Fim de ano é momento de festas e confraternizações mas algumas pessoas tendem a ficar melancólicas neste período. Por que isso acontece?
Inúmeras situações podem causar esse tipo de sentimento, a principal é que este período remonta ao final de um ciclo das oportunidades. Quando o tempo vai acabando percebemos que boa parte do que gostaríamos de ter feito, não fizemos ainda. As situações existenciais que gostaríamos de ter mudado, não mudamos. Algumas pessoas sentem-se mal por causa disso.
Outra situação é que, nesta época, as pessoas começam a se conectar mais. Vivemos num momento recheado de conexões de trabalho ou virtuais, geralmente deixamos de lado conexões com amigos e familiares, e, quando chega o fim do ano, é que lembramos dessas conexões mais profundas. Muita gente começa a se perguntar: quando não há o corre do trabalho, quem fica? Com quem vou confraternizar? Quem vou encontrar no Natal?
Além disso, o Natal é simbólico porque, ao pensar nessas relações com parentes e amigos, muitas vezes retomamos mágoas, angústias, relações mal resolvidas do passado, encontros com pessoas mais invasivas que tocam em assuntos inconvenientes. Também há situações familiares que podem ser potencialmente tensas, ou quando a pessoa não tem essas relações ou quando percebe a falta de um ente querido que outrora fizera parte do Natal dela. Atualmente as famílias estão cada vez menores, consequentemente temos que cuidar cada vez mais dos poucos familiares que restam para que tenhamos um fim de ano junto às pessoas que gostam da gente. Além disso, a polarização política que vivenciamos também tem provocado fissuras nas relações.
Até que ponto o atual contexto social, com pressões por resultados, contribui para o entristecimento?
Contribui bastante, principalmente devido à comparação nas redes sociais digitais. É quando meus resultados são baseados nos resultados dos outros, seja em termos de lazer, sociais, conquistas de trabalho. Hoje, comparar-se com o outro ficou mais fácil. Infelizmente as redes digitais não são parâmetros exatos, as pessoas sempre postam o que há de melhor nas suas vidas. Mas é impossível nossa cabeça detectar facilmente esse viés.
Essa pressão é, muitas vezes, colocada pela sociedade mas não é infrequente que seja colocada por nós mesmos. Na psicologia, há uma área chamada estudo do perfeccionismo. São pessoas que colocam padrões muito altos de objetivos e propósitos e ficam frustradas quando não os atinge. Ou seja, às vezes não é a sociedade, é a própria pessoa que se cobra. Há também o perfeccionismo prescrito socialmente: é o que a pessoa imagina que a sociedade espera dela. Ela fica sempre correndo atrás de algo para ter determinada reputação, importância social ou bens para mostrar à sociedade, para ser incluída em determinados grupos.
Há também o perfeccionismo heterodirigido, quando somos exigentes com as pessoas que nos são próximas e podemos desgastar as relações com essas pessoas queridas, sejam familiares, amigos, colegas de trabalho ou funcionários. Então, a pressão é global. Além da sociedade, envolve, sobretudo, o indivíduo que às vezes não se contenta em criar regras razoáveis para si, sem precisar atender às prescrições que ele imagina que a sociedade tem em relação a ele. O livro A Sociedade do Cansaço aborda essa questão da pressão interna, em que a própria pessoa é quem cobra de si mesma o perfeccionismo, o alto desempenho.
Há casos de estresse pelo aumento da carga de trabalho no fim de ano para algumas profissões, como as do comércio, e há também os profissionais que param para o recesso, mas precisam correr para adiantar o trabalho e evitar que as coisas fiquem pendentes. O que essas pessoas podem fazer para evitar situações como Burnout?
A sociedade valoriza muito a produção, isso vem acontecendo há cerca de 30 anos e intensificou-se recentemente. Estamos inseridos na cultura do quanto mais eu faço, mais valor eu tenho. E a pessoa passa a ocupar seu tempo em prol de um checklist de tarefas a exercer e às vezes falta espaço para viver de fato. O Burnout é uma realidade, por mais que gostemos de algo, aquilo começa a enjoar quando fazemos em excesso.
Mesmo que você goste muito do seu trabalho, que fique realizado com suas produções, é preciso haver espaços vazios para reflexão e descanso. E precisamos criar mecanismos para ter tempos inegociáveis na semana para fazer atividades que não vão estar à venda. Esse tempo não é de produção. Ou seja, a pessoa precisa separar um tempo para as coisas que valoriza. Se você valoriza o encontro familiar, encontro social, um momento de meditação, precisa reservar esses espaços na semana. Porque as demandas de trabalho, hoje em dia, parecem que são infindáveis.
Se você for uma pessoa responsável, que sempre se coloca à disposição, não vai faltar demanda. Então, necessariamente, é preciso exercitar o “não”. Talvez seja uma das palavras mais difíceis de serem ditas. Parece que o “sim” está pronto quando alguém nos pede algo. Na sociedade atual, primeiro devemos pensar “não”, para depois refletir, porque se dissermos “sim”, irrefletidamente, haverá várias consequências. É saber colocar limites. Nem sempre é fácil, mas quando temos essa coragem, acabamos por educar outras pessoas ao nosso entorno. Precisamos informar para elas até onde conseguimos entregar.
As pessoas tendem a colocar o trabalho como o mais importante nas suas vidas. Não é que não seja. Ele me faz ser um instrumento útil às pessoas. Mas, se não tomarmos cuidado, seremos atropelados pelo trabalho. Entretando, não acho que o descanso tenha que ser necessariamente para retomar as energias para o trabalho. O descanso tem que existir pelo valor do descanso. O exercício físico tem que existir pelo valor do exercício físico, não porque você vai ficar mais forte para o trabalho. É porque ele é importante, as relações sociais são importantes, as relações familiares são importantes, todos os pilares da vida são importantes para nos manter em pé.
Esse momento de tristeza pode ser uma oportunidade para se refletir sobre o que não está bem em nossas vidas e aproveitar o começo do ano, que é uma época de se fazer novos planos e engatar um projeto para viver melhor, com propósito?
A tristeza, a angústia são sentimentos sinalizadores do que pode estar acontecendo internamente conosco. Se os silenciarmos, não entraremos em contato com o que pode ser relevante. Às vezes ciclos são oportunidades de reflexão e mudanças. A ideia não é mudar o tempo todo mas perceber, ver se aquela vida que estamos vivendo, de fato, está fazendo sentido diante dos nossos valores. Valores são aquilo que desejaríamos que estivesse na nossa biografia, caso alguém fosse escrevê-la. É como você deseja ser lembrado.
A classificação de valores faz com que a pessoa reflita quanto de tempo é preciso para o próximo ciclo passar e, então, começar a dedicar-se àquilo que, de fato, ela valoriza. Mas a atenção deve ser focada para perceber que estou fazendo muitas urgências e pouco investimento nos grandes projetos ou nas grandes prioridades de vida. Quando está surgindo um novo ciclo, como no fim de ano, e nos sentimos angustiados entre um ciclo e outro, isso nos impulsiona a refletir, tomar medidas, agir para mudar a angústia.
Tomar ações não significa dizer que você vai “chutar o pau da barraca”, isso parece infantil, a realidade tem boletos para pagar. A vida vai colocando alguns limites, faz com que a gente não possa tudo, mas precisamos levar em consideração que as ações têm que ser tomadas e com uma virtude que é muito importante. Existem as quatro virtudes cardeais: fortaleza, justiça, temperança e prudência. Cardo significa eixo, se diz virtudes-eixo, porque todas as outras derivam dessas.
Isso foi primeiramente colocado por Platão, depois foi desenvolvido por Aristóteles, Cícero, acolhido por Santo Agostinho e Tomás de Aquino. A prudência é retratada por um espelho, ou seja, para que eu seja prudente, eu preciso me conhecer. Olhar para mim, saber minhas potencialidades e meus limites. Se eu vou tomar uma decisão, vou mudar minha vida, preciso saber o que consigo, de fato. E o espelho também consegue ver o que está atrás. Porque a prudência é também a virtude do tempo. Aprender com o que passou, agir no presente e conseguir antever o futuro.
Quando falo em ação, falo de outros elementos que é uma flecha – ela significa uma ação que tem uma direção, não é uma ação qualquer – e um livro. As ações devem ser baseadas em informação, em dados, em conhecimento, que faz com que elas tenham mais sabedoria. Outro elemento é a serpente, um animal que sabe esperar o momento certo para dar o bote. Então, prudência é saber esperar, agir com cautela, mas agir com propósito, direção e baseado em conhecimento. Prudência não é inação, é uma ação comprometida com objetivos, conhecimento e sabedoria.
Qual a orientação que o senhor daria tanto no caso das pessoas que ficam mais entristecidas no fim de ano, como aquelas que sentem um vazio por não levarem uma vida conectada com um propósito? Quando elas devem procurar um psicólogo e/ou psiquiatra?
A psicoterapia é sempre interessante, independentemente de você estar agudamente doente, depressiva, ansiosa ou sentindo esse vazio. É uma forma que a pessoa tem de pensar sobre suas escolhas de vida, em projetos e em como gerenciar melhor os conflitos que precisa enfrentar, porque a maior parte do que se fala em psicoterapia são conflitos pessoais. A solidão é um problema, mas o melhor e o pior que a gente vive no mundo está relacionado com pessoas.
Agora, claro, se você está agudamente deprimido ou ansioso, vale ainda mais a pena procurar uma psicoterapia e, aí, se essa angústia for um sofrimento muito significativo, a ponto de atrapalhar as suas relações sociais, a sua funcionalidade no trabalho, vale a pena procurar um psiquiatra para checar se está apresentando ou não um quadro de depressão, de transtorno do pânico, transtorno de ansiedade, que são quadros tratáveis. Hoje em dia não faz mais sentido a gente passar uma vida de sofrimento.
Outra forma de lidar com algumas angústias é a leitura, debruçar-se sobre algo que traga um pouco mais de profundidade, mais reflexão. Quem tem um livro bom, está em conexão com o autor, não está sozinho. E por falar em estar sozinho, se estar sozinho é um problema durante essas festas, quando fazemos a avaliação das nossas relações e percebemos que estão fracas, às vezes pensamos: "Não fui convidado para o Natal". Não pense se você vai receber um convite, mas entre em contato com as pessoas, procure fazer algo pelo outro, saber de alguma pessoa querida que não vê há muito tempo, telefonar para um amigo. Não precisa ser no dia do Natal.
Esse momento de fim de ano fala de conexões mas pode ser também de reconexões, conexões novas, sobretudo pensando em servir. Martin Luther King dizia: “Nem todo mundo pode ser famoso, mas todo mundo pode ser grande, porque a grandeza vem do servir e todo mundo pode servir”.
Como uma vida movida por propósito pode trazer benefícios para saúde física e mental?
Quando você vive uma vida com sentido é como se tudo ficasse mais fácil. Você consegue fazer as coisas com mais paixão. Quando faz com paixão, parece que sente menos dor. Um jogador de futebol, por exemplo, que está querendo fazer um gol, leva uma queda e logo em seguida levanta-se, parece que não está sentindo dor porque está com tanta vontade que a dor fica suportável. E a vida funciona mais ou menos assim.
Quando estamos seguros de que nossas decisões nos colocam em direção a uma vida que, para a gente, é significativa, o sofrimento fica mais suportável. Entendemos que estamos sofrendo, que temos que passar por aquilo para ter algo que consideramos mais valioso adiante. Assim fica mais fácil viver. Isso vale também para dor psíquica, para as doenças como um todo.
Há uma pesquisa descrita no livro Mortais, de Atul Gawande, feita num asilo onde havia vários idosos morando. Havia plantas em todos os quartos dos idosos. Para metade deles, foi dito: "Você terá que regar a planta". A outra metade não teve que regar. As taxas de intercorrências clínicas e de mortalidade foi menor no grupo dos idosos que regavam as plantas. Temos que pensar nisso. Qual é nosso papel na vida? Qual nosso papel no sentido de servir para o outro também, não só o que a vida vai me trazer mas o que eu vou trazer para a vida? Independente de qual seja a idade. E não precisa ser nada grandioso. O meu propósito de vida é ver o Náutico ser campeão brasileiro um dia (risos). Então, eu tenho certamente anos pela frente, até que isso se concretize.
Falando na questão etária, muita gente, em torno dos 60 anos, acha que não tem mais idade para projetar uma nova vida, mas a expectativa de vida hoje no Brasil aumentou. O que o senhor acha disso?
No mundo, a expectativa de vida está aumentando. Há muitas medicações anti-hipertensivas, antidiabetes, antiobesidade, e a obesidade é um dos maiores fatores de risco para uma série de afecções. Ou seja, se você conseguir manter sua cabeça boa, suas pernas boas, certamente terá dignidade para viver bem 30 anos pela frente. Isso significa dizer que precisa fazer um projeto quando você tiver 60 porque pode ser que você viva até os 90 ainda com a cabeça boa e interagindo.
Agora, você tem de estar aberto às novidades, ao aprendizado, a novos vínculos sociais, porque muitas vezes ficamos presos àquele modelo de 60 anos atrás, um script para receber seus filhos em casa, junto com seus netos. Hoje seu filho pode estar morando numa outra cidade, seus netos talvez nem lhe conheçam direito. Então, você vai ter que se adequar a essa nova configuração da sociedade, da nossa cultura.
E consequentemente, renovar seus ciclos sociais, seus projetos, inclusive de aprendizados durante esse tempo e tentar não se desconectar do que está acontecendo no mundo para que tenha uma chance melhor de conviver com uma das maiores preocupações que se tem hoje nos países desenvolvidos que é a solidão. Lá muitas pessoas com mais de 70 ou 80 anos estão vivendo sozinhas, e a solidão também vira fator de risco para uma série de outros problemas de saúde física e psíquica. Precisamos pensar realmente, aos 60 anos, como fazer essa renovação para chegar aos 70, 80, 90, com uma vida preenchida por elementos que nos deixem satisfeitos.

