Parques urbanos e educação ambiental aproximam moradores do rio, revelando capivaras, jacarés, aves e até jiboias, e reforçando a necessidade de conviver com respeito e segurança com os animais silvestres
*Por Rafael Dantas
O Rio Capibaribe é das Capivaras, mas não só delas. A população do Recife tem visto com mais frequência também as suas aves, répteis e anfíbios… A recente fotografia de uma jiboia, feita pelo cineasta Kleber Mendonça Filho, rodou o mundo mostrando um pouco desse novo momento da capital pernambucana um pouco mais conectada com seus animais. Esses bichos sempre habitaram o rio, mas passaram a passear mais pelas margens e aos olhos dos outros moradores da cidade. Um fenômeno que aconteceu após o avanço dos parques urbanos que abrem janelas para às águas.
Com a experiência da primeira etapa do Parque Capibaribe, representada pelo Jardim do Baobá, os recifenses passaram a se reconectar com as áreas verdes e a contemplar o rio. O movimento rompe com uma tendência histórica marcada pela modernização urbana, que fez com que casas e prédios voltassem as costas ao curso d’água. Uma mudança que levou a população a contemplar com mais frequência a fauna que vivia nas águas ou embrenhada nos mangues que ninguém observava.
O empresário Fernando Carvalho, 43 anos, é um dos recifenses que teve uma grande mudança de rotina e de contato com a fauna local após a inauguração do Parque das Graças. Morador do bairro há 10 anos, ele nunca imaginou ver uma jiboia ou contemplar tantas capivaras. “Antes da existência do parque, nunca tinha conseguido acessar aquela área do rio. Só tínhamos acesso ao mangue na outra margem do Capibaribe. Sempre escutamos pássaros e víamos alguns animais, mas após o surgimento do parque passamos a ver muitos outros, que não conhecíamos".

Sempre víamos alguns animais, mas após o surgimento do parque passamos a ver muitos outros, que não conhecíamos. A relação com a natureza dos moradores e de quem frequenta é muito bacana. Não imaginava que eu teria essa relação com a cidade na minha vida." Fernando Carvalho
Ele conta que mais prazeroso é ver as famílias de capivaras circulando na beira do rio ou no gramado do parque. Além desse xodó dos recifenses, Fernando também relata perceber também uma presença muito maior de pássaros fazendo revoada na região. “A relação com a natureza dos moradores e de quem frequenta é muito bacana. Sempre que posso, vou com minha filha adolescente, com uma sensação de segurança. Sempre que posso caminho lá. Não imaginava que teria essa relação com a cidade na minha vida”.

Mas, afinal, aumentou a população de animais ao longo do Capibaribe após a inauguração dos parques? Embora não haja uma resposta definitiva, há algumas hipóteses que explicam por que os moradores passaram a visualizar mais cobras, jacarés e capivaras.
Segundo o pesquisador Rafael Barboza, pós-doutorando pela Facepe no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), a maior percepção da população em relação aos animais silvestres ao longo do Rio Capibaribe está ligada a vários fatores. O primeiro é justamente pelo fato de que a requalificação urbana aproximou a cidade do rio. Isso levou os recifenses a contemplarem sua área verde. “Nós ficamos de costas para o rio durante muito tempo. Agora, com obras como a da Beira Rio, começamos a olhar de frente para ele e a enxergar o meio ambiente que ainda resta na cidade.”

Ficamos de costas para o rio durante muito tempo. Com obras como a da Beira Rio, começamos a olhar de frente para ele e a enxergar o meio ambiente da cidade. [E, na pandemia,] enquanto ficamos em casa, os animais foram reocupando espaços que eram deles." Rafael Barboza
Um fator tecnológico que contribui para a percepção popular da vida animal é a popularização dos celulares com câmeras e das redes sociais. Ainda que esses animais fossem contemplados por alguns moradores anos atrás, a capacidade de circulação dessas imagens era muito menor.
Mas as hipóteses não estão apenas na maior percepção. Há alguns motivos que nos induzem a acreditar que há, de fato, uma maior população desses animais. Um deles está relacionado à experiência do isolamento na crise sanitária da Covid-19, quando parte da fauna voltou a ocupar a região do rio, é uma outra hipótese considerada pelo biólogo. “Enquanto ficamos em casa, os animais foram reocupando espaços que eram deles.”
Com o avanço da estruturação desses espaços de lazer, especialmente com a abertura do Parque das Graças, algumas intervenções contribuíram para a atração desses bichos aos olhos da população. “As gramíneas e plantas ornamentais do Parque das Graças atraíram as capivaras para perto da população. A contemplação da fauna é maravilhosa e tem um valor educativo enorme.”
Segundo Leonardo Melo, analista ambiental da Semas (Secretaria Estadual de Meio Ambiente) lotado no Parque Estadual de Dois Irmãos, o reencontro do recifense com o Capibaribe tem favorecido a presença de mais animais nas margens do rio. Ele explica que a maior circulação de pessoas gera uma vigilância ampliada dos órgãos ambientais e consequentemente a redução das práticas de violência contra a fauna. “As capivaras, mais avistáveis, sentem mais segurança. No início havia muitos relatos de animais mortos a pauladas. Hoje isso acontece numa frequência muito menor. O visitante se depara e se encanta com as capivaras, organismo animal que tem tudo a ver com o Capibaribe.”
Essa vigilância e encantamento da população permite um ambiente mais seguro, com alimento e abrigo suficientes para que espécies se reproduzam. “O fato de as pessoas estarem avistando mais, significa dizer que os animais estão encontrando alimento, segurança e condição adequada para procriar. Podem aumentar em número, mas ainda é insuficiente para ser taxativo [que de fato aumentou a quantidade de animais]. Seria preciso chegar mais junto para ter diagnóstico e estudos”, explicou Leonardo Melo.
AMPLA VIDA ANIMAL JÁ ERA CONHECIDA PELOS PESQUISADORES
No início das pesquisas do Parque Capibaribe, uma das etapas foi justamente a realização de um inventário da fauna. Leonardo participava do projeto nessa época e revela que a presença de alguns animais surpreendeu os pesquisadores. “A surpresa maior no inventário de fauna foi a presença das lontras. Verifiquei em duas ou três ocasiões. É um animal difícil de ser observado e identificamos no Rio Capibaribe, em Casa Forte. Foi uma grata surpresa para nós.”
Apesar da degradação ambiental, promovida tanto pela poluição das águas, como pela remoção da cobertura vegetal da mata ciliar, foram identificados no mangue e na mata iguanas, caranguejos, timbus, preás, cágados e uma imensa variedade de outros bichos. Esse levantamento foi publicado no livro Parque Capibaribe e a Reinvenção do Recife Cidade Parque da Editora Cepe, em 2022.
A publicação registrou que, apesar dos prédios virarem as costas para o rio, das margens terem sido ocupadas e das águas receberem os restos, resíduos, dejetos, tudo aquilo que a cidade não quer ver, a vida permanecia ali. “Ao chegarmos perto do rio, descobrimos que o Capibaribe vive e dá suporte a um rico ecossistema de espécies como a rara garça-azul, além de capivaras, jacarés, lontras e uma miríade de aves, insetos e peixes. E, claro, ainda fornece subsistência para uma rede de comunidades ribeirinhas”. O levantamento, de 2014, indicou haver pelo menos 90 espécies no Capibaribe, sendo sete répteis, nove mamíferos, 40 aves, 10 crustáceos e moluscos, e 24 espécies de peixes ao longo dos 30 quilômetros do rio.
Além dos estudos do Parque Capibaribe, uma pesquisa preliminar do Liar-UFRPE (Laboratório Interdisciplinar de Anfíbios e Répteis), em parceria com o Lapar – UFRPE (Laboratório de Parasitologia) e Ecomov - UFPE (Laboratório de Ecologia, Conservação e Movimento de Vertebrados), sobre a população de jacarés no Capibaribe, revelou uma densidade populacional de aproximadamente seis jacarés por quilômetro. O estudo utilizou observação noturna, aproveitando a reflexão da luz nos olhos dos animais para identificá-los individualmente.
Segundo Rafael Barboza, que integra o Liar-UFRPE, o resultado surpreendeu os pesquisadores, mostrando uma população maior do que o esperado. Os números do Capibaribe são muito superiores ao registrado no reservatório de Tapacurá, por exemplo, que possui cerca de 1,3 jacaré por quilômetro. O resultado reforçou a importância da preservação dos espaços naturais ao longo do Capibaribe e da integração entre pesquisa científica e educação ambiental.
CUIDADOS NO CONTATO COM OS ANIMAIS
O maior contato com os bichos que habitam no rio e nas suas margens pode gerar problemas de saúde para os humanos e também para os animais domésticos ou silvestres. A orientação dos pesquisadores é evitar qualquer contato direto com eles. Da mesma forma como evitamos tocar em algum cachorro na rua, acariciar uma capivara não é recomendado.
“Se a gente for se aproximar para acariciar, a gente pode levar uma mordida, o mesmo acontece com qualquer animal doméstico. A própria capivara tem dentes incisivos enormes. A mesma coisa com o jacaré e a jiboia. Qualquer animal que se sinta ameaçado, pode atacar ou fugir para se defender”, explica Rafael Barboza.

Ele destacou que os animais silvestres do Capibaribe, como capivaras e saguis, podem ser portadores de doenças como febre maculosa, toxoplasmose e leptospirose, que, embora naturais nesses animais, podem representar risco quando transmitidas a humanos ou a animais domésticos. Para Barboza, respeitar o espaço desses animais em ambientes urbanos é fundamental, pois eles vivem em áreas cada vez mais restritas e poluídas, tornando qualquer interação inadequada potencialmente perigosa.
Outra regra básica é não fornecer comida para esses animais. A maior presença deles, inclusive, já sinaliza que a oferta já é suficiente para eles nesse habitat. “As capivaras têm chegado ao parque porque elas têm gramados, elas são herbívoras. Não alimente nem mesmo o sagui. Ele é um primata que chega junto do visitante para receber um pedaço de biscoito, por exemplo. Mas isso não se faz. Ele pode ter obesidade, problema com os dentes. O visitante tem que ser educado e evitar tanto o toque, que não é esperado pelo animal, como não entregar nenhum alimento”, enfatizou Leonardo.
Se o visitante visualizar uma cobra ou um jacaré no rio ou na margem, que são seus habitats, não é preciso fazer nenhum registro aos órgãos públicos. A notificação ao Corpo de Bombeiros, ao Cipoma (Companhia Independente de Policiamento do Meio Ambiente) ou ao Cetas (Centro de Triagem de Animais Silvestres) deve ocorrer nas situações em que esses animais passem a invadir as casas ou atravessar as vias públicas, por exemplo.

A educação ambiental é fundamental nos parques do Capibaribe para garantir a convivência segura entre pessoas e fauna, promovendo o respeito ao território dos animais e mostrando que o espaço é tão deles quanto nosso." Leonardo Melo
Leonardo Melo destaca que a educação ambiental é fundamental nos parques do Capibaribe para garantir a convivência segura entre pessoas e fauna. O analista ambiental reforça que os parques devem sempre contar com placas de sinalização e orientações sobre o comportamento adequado, promovendo respeito ao território dos animais e mostrando que o espaço é “tão deles quanto nosso”. Para Melo, essa conscientização é essencial para que a população continue se apropriando do rio de forma sustentável, preservando o ambiente e a vida silvestre.
O reencontro do Recife com o Capibaribe mostra que a cidade e a natureza podem coexistir quando há planejamento, cuidado e conscientização. Mais do que observar animais, os parques urbanos oferecem oportunidades de aprendizado, encantamento e respeito pelo meio ambiente, lembrando que o rio não pertence apenas aos humanos, mas a todos que compartilham desse espaço.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)