Mais um Carnaval se foi, levando consigo os quatro dias de alegria contagiante. Nas ruas, hoje desnudas de confetes e serpentinas e órfãs de sorrisos escancarados, ecoam – ainda bem que o melhor de tudo não se foi – os acordes dos nossos frevos mais belos. Vassourinhas, por exemplo, de Matias da Rocha e Joana Batista Ramos, composto há mais de 100 anos, até hoje incendeia ruas e salões, parecendo trazer mais energia ao folião.
A arte de Levino Ferreira não deixa por menos, com sucessos do naipe de A cobra está fumando, Diabo solto, Retalhos de saudade, e tantos outros sucessos. Lídio Francisco, mais conhecido como Lídio Macacão, ou ainda como O Conde de Guadalupe (bairro olindense), se faz presente com Escama de peixe, Três da tarde e Condessa, exibindo a indiscutível qualidade característica da sua obra.
O que dizer de Zumba, havido pelo sociólogo Gilberto Freyre e pelo maestro Guerra Peixe como um dos maiores compositores do frevo pernambucano, ombro a ombro com Capiba e Nelson Ferreira? Zumba, que em 1972 compôs seu último frevo, Alegria do Nordeste, sucesso do Carnaval daquele ano, teve cerca de 100 músicas gravadas.
Como se vê, foram e são incontáveis os nossos compositores de frevos, como Toscano Filho, Edson Rodrigues, José Bartolomeu, Lourival Oliveira, Raul e Edgar Morais, Levino Ferreira, Severino Araújo, Getúlio Cavalcanti, J. Michilis, Heleno Ramalho, isso sem falar dos consagrados Capiba, Nelson Ferreira, Luiz Bandeira, Irmãos Valença…
Se você não conhece, tenha o prazer de conhecer mais um excepcional compositor pernambucano: Clídio Nigro. Para começar, saiba que ele é o autor de um vasto repertório, incluindo o frevo Olinda n°1, hino do bloco Elefante de Olinda, transformado, pela suprema vontade do povo, no hino do Carnaval olindense, tão logo foi composto, em 1954. Não lembra? Vai lembrar agora. A última estrofe é esta: Olinda! | Quero cantar | A ti, esta canção, | Teus coqueirais, | O teu sol, o teu mar | Faz vibrar meu coração | De amor a sonhar | Minha Olinda sem igual, | Salve o teu Carnaval.
É música tão importante, que Chico Buarque, que passava o carnaval aqui, ao escutar a multidão cantando a música em uníssono exclamou: Isto é que é o verdadeiro compositor popular. Olha, o povo inteiro cantando a música!
Curiosamente, Clídio Nigro não foi sempre um compositor de frevos. Suas primeiras composições datadas de 1937, foram valsas, canções, sambas e até música orfeônica, chegando à Escola Cantorum São Pedro Mártir, em Olinda. A partir dos anos 1940, no entanto, dedicou-se integralmente ao frevo, enriquecendo com suas inspiradas composições a alegria dos clubes, dos blocos e das troças do carnaval olindense.
Foi assim que Clídio Nigro tornou-se um carnavalesco sem ser folião.
Mas voltando ao Hino do Elefante, apesar de a canção ser uma das mais ouvidas ano após ano, pouca gente sabe que seu nome primordial é Olinda nº 1 e tem uma história curiosa. Chegou a ser oferecida ao grupo rival, Pitombeira dos Quatro Cantos, que não a aceitou.
Sabe como foi que a música cumpriu seu destino de ser um clássico carnavalesco? Clídio Nigro e os primos fundaram o bloco Elefante, que incorporou o frevo, e assim nasceu o hino carnavalesco da cidade de Olinda.
Mas a consagrada canção tem outra história curiosa, que até parece pautada no realismo fantástico, posto ser fruto de uma parceria inusitada. A letra foi criada por um músico que também era escrivão criminal, enquanto a melodia – eis algo beethoveniano – resulta de parceria com o poeta surdo Clóvis Vieira.
Conheça a trajetória desse talento tão vasto.
Quando criança, Clídio Nigro tomava aulas de piano duas vezes por semana. Sua sensibilidade era tanta, que o fez expandir, em pouquíssimo tempo, sua criatividade musical. Logo ele se tornou capaz de compor de ouvido, sem subordinação à teoria musical. Talento abundante, desde muito cedo, com um grupo de jovens como ele formou um pequeno regional e com ele chegou a se exibir na Rádio Clube de Pernambuco, o veículo de comunicação de maior importância naquela época.
Criador ímpar, legou à posteridade uma obra variada, destacando-se a marcha de bloco Marim dos Caetés, homenagem à sua Olinda, o frevo de rua Cinquentenário de Vassourinhas de Olinda, Banho de Conde, e tantos outros frevos. Autêntico homem dos sete instrumentos, tocava piano, tocava bandolim, tocava violão, tocava cavaquinho, e vez por outra, também tocava pistom. Mesmo assim, apesar de tanto talento, de tanta versatilidade, Clídio Nigro era um homem extremamente simples, um pai de família calmo, caseiro, e profissionalmente um modesto escrivão do cartório de Olinda.
Falecido no dia 22 de setembro de 1982, aos 73 anos de idade, Clídio Nigro teria, segundo sua filha Cleonice Nigro, enviado uma mensagem psicografada nestes termos: Tudo não passou de um sonho o meu caminhar na vida. Caminhos tão serenos, numa existência tão querida. Encontro a realidade e vivo novos sonhos, sublimes e tão lindos, quem me dera nova vida.
Quando se aproximava aquele 22 de setembro, já soando ao longe os clarins da hora da partida, os blocos, sabendo que ele estava seriamente enfermo, todos, passavam em frente à sua casa, e reverenciavam o invulgar olindense. Ele ficava na janela vendo os blocos que o cumprimentavam com seus estandartes, e as lágrimas transbordavam dos seus olhos.
Na bela Marcha da quarta-feira de Cinzas, os autores, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, dizem que acabado o Carnaval ninguém ouve cantar canções…
Pois em Pernambuco, e não só no Carnaval, a música de Clídio Nigro é ouvida e sentida, como que Olinda esteja ao mesmo tempo cantando e pranteando o seu filho tão ilustre.
*Por Marcelo Alcoforado