"Não podemos deixar essa ferramenta poderosa, que é a cannabis medicinal, se esvair" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

"Não podemos deixar essa ferramenta poderosa, que é a cannabis medicinal, se esvair"

Revista algomais

Diretor da Aliança Medicinal, Ricardo Hazin Asfora, fala dos planos de triplicar a capacidade produtiva que hoje é de 5 mil fracos por mês de cannabis para uso em tratamento de doença. A perspectiva é de aumento da demanda, caso seja aprovada a lei que regulamenta o acesso do medicamento pelo SUS. Também explica como é feito o cultivo da planta em contêineres. Foto: Rafael Dantas

O uso medicinal da cannabis ainda enfrenta desafios no Brasil. O baixo conhecimento médico, os preconceitos relacionados à planta e a ausência de regulamentações ainda são entraves que pouco a pouco estão sendo enfrentados. Uma experiência bem-sucedida em Pernambuco é da Aliança Medicinal já atendendo nove mil associados que fazem terapia com o óleo extraído a partir da produção realizada em contêineres, no município de Olinda.

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Trata-se de uma verdadeira fazenda urbana em ampliação. Os primeiros movimentos da associação foram dados pela presidente Hélida Lacerda. Seu filho tinha até 80 ataques epiléticos por dia, mesmo usando várias medicações, antes de usar o óleo produzido a partir da cannabis. A organização nasce do esforço dela de compartilhar o benefício com outras mães que sofriam com as dores dos filhos.

Ricardo Hazin Asfora, diretor-executivo da Aliança Medicinal, conversou com o jornalista Rafael Dantas sobre as perspectivas de avanço no uso medicinal da cannabis a partir das recentes regulamentações na Câmara do Recife e na Alepe. Além disso, o engenheiro agrônomo, responsável pela estruturação da produção, explica os planos de expansão e comenta também sobre os benefícios até para o Sistema Único de Saúde diante da possibilidade de maior popularização dos tratamentos com a planta.

Qual a importância das recentes legislações aprovadas para o uso medicinal da cannabis?

Primeiro tivemos a lei do município do Recife (Lei Nº 19324/2024). Ela foi aprovada na Câmara Municipal mas não veio com política determinada. O município terá que instituir a política para depois ocorrer uma regulamentação. Algumas semanas depois, foi aprovada a Lei Estadual 18.757/2024 que já veio com uma política determinada. Agora, aguarda apenas a regulamentação antes de chegar aos pacientes.

Essas leis vêm para facilitar a disponibilização do medicamento pelo SUS que hoje só acontece com ações judiciais. Com a lei não precisa ter todo o trâmite jurídico para ter acesso a cannabis que deverá estar disponível e com previsão de orçamento. Pelo processo judicial, os cofres públicos não conseguem fazer uma previsão de orçamento.

Então, resta apenas a regulamentação para tornar o uso medicinal da cannabis possível pelo SUS? Quais são as próximas etapas?

Isso virá provavelmente da Secretaria Estadual de Saúde que vai iniciar esse processo representando o Governo do Estado. Estamos nessa etapa de regulamentação. Não podemos prever o tempo para isso porque o trâmite público não é tão simples de se efetivar. Mas a nossa expectativa é que nos próximos seis meses tenhamos essa regulamentação bem encaminhada.

Há alguma preocupação com a regulamentação?

O “como” esse processo vai ser feito é muito importante. Há dois caminhos a seguir. O primeiro é apenas suprir a demanda existente para cumprir o que a lei determinou. O outro, que seria ideal e muito mais viável para o Estado, seria entender a importância dessa terapêutica e compreendê-la como um caminho para desafogar o SUS, diminuindo internações e emergências de tantas pessoas que chegam aos hospitais.

Como o uso dessas terapias poderia ajudar a diminuir a pressão no SUS?

Imagine o filho de Hélida, presidente da Aliança Medicinal. Ele tinha 80 crises de convulsão por dia. Logo, ele vivia nos hospitais. Quanto custa internação e atendimento de urgência ou emergência? O tratamento de média ou grave complexidade com a cannabis medicinal custa entre R$ 300 a R$ 400 por mês. Compare isso com sucessivos atendimentos na urgência? Isso é um ponto muito importante que estamos tentando mostrar, pois pode ajudar a viabilizar o SUS, tirando a pressão do sistema.

O filho de Hélida, presidente da Aliança Medicinal, tinha 80 crises de convulsão por dia. Vivia nos hospitais. Quanto custa internação e atendimento de urgência ou emergência? O tratamento de média ou grave complexidade com a cannabis custa entre R$ 300 a R$ 400/mês.

Outra preocupação é de uma regulamentação que leve o poder público a adquirir esses produtos na indústria farmacêutica, importando-o. Isso é como normalmente se faz com as decisões judiciais, mas a compra seria muito mais cara. A gente vem discutindo essa realidade de que não é só fabricar o medicamento, mas a um custo mais eficiente.

A maioria dos tratamentos atualmente que usam os óleos produzidos pela cannabis para uso medicinal são feitos com a produção nacional ou ainda tem muita gente que consome produção importada?

Hoje há ainda muito produto importado que tem um trâmite custoso para o Estado e tem a demora também do acesso. Aqui, a gente consegue num dia fazer o cadastro desse paciente e, no mesmo ou no outro dia, enviar o medicamento para ele. Então, a gente tem essa prontidão de atendimento.

Mas, ainda há, sim, um volume muito grande de produtos importados, inclusive por demanda judicial. Geralmente são produtos mais caros. Isso termina por tornar mais custosa a compra para os cofres públicos do que utilizar uma produção local.

Qual a diferença de preços na compra desses produtos entre a produção nacional e a importada?

No custo de produto, a gente pode economizar em torno de quatro a cinco vezes numa fabricação nacional. Imagina o quanto conseguiríamos economizar se todas as pessoas pudessem ter acesso ao produto local! E, como falei, se considerar a internação e emergência, é possível desafogar o Sistema Único de Saúde com o avanço desse tipo de tratamento. A gente não pode deixar essa ferramenta, que é cannabis medicinal, se esvair.

Além da regulamentação, quais as barreiras para um uso mais amplo da cannabis com finalidade medicinal? É ainda preconceito?

Consideramos que é o conhecimento médico. Eles não têm acesso às pesquisas durante a sua formação nos cursos tradicionais. Isso por causa da proibição que teve por tanto tempo no Brasil do cultivo, mesmo para uso medicinal.

Precisamos unir forças para que o conhecimento médico venha, de fato, avançar. Hoje as pessoas vão aos médicos pedir o tratamento com a cannabis, após tentativas frustradas de outras terapias. Deveria ser o inverso. Mas o conhecimento sobre o sistema endocanabinoide ainda é muito restrito. Por isso, a demanda atual da cannabis medicinal ainda é muito baixa.

Qual o volume de produção da Aliança Medicinal?

A maioria dos associados é de Pernambuco mas temos pessoas do País todo recebendo o produto. Hoje enviamos para o Brasil todo pela Azul. No Estado, contamos com entrega local. Antes fazíamos pelos correios. Mas a Anvisa disse que eles não podiam fazer a distribuição.

Fornecemos em torno de dois mil frascos por mês, mas nossa capacidade produtiva é de cinco mil frascos por mês. Vocês têm a primeira e única fazenda urbana de cannabis no Brasil.

Qual a diferença do plantio nesse formato que vocês adotaram, de cultivo em contêineres, de uma produção em ambiente natural?

Se uma planta dessa é cultivada em ambiente natural, ela demora em torno de seis meses para se desenvolver (no contêiner são três meses). Mesmo assim, não atinge um padrão do que produzimos porque não temos no contêiner variações de temperatura, como um dia nublado ou de mais chuvas. Também não utilizamos nenhum tipo de pesticida. Na verdade, é como se toda a produção fosse desenvolvida em um laboratório, que é cultivada desse jeito para fazer um medicamento.

Já foram realizados estudos a partir da experiência de vocês?

Com a autorização de funcionamento que obtivemos, nós nos tornamos fornecedores de um insumo oficial. A partir disso, temos estudos desenvolvidos por pesquisadores na UFPE e UFRPE, por exemplo, que investigam outros usos da cannabis.

Há um estudo ainda preliminar que aponta, por exemplo, que o extrato da planta pode ser um possível larvicida contra o Aedes aegypti. Há um outro relacionado à nutrição. Nós nos tornamos fornecedores oficiais de matéria-prima para essas pesquisas. Isso é muito importante para avançar na comprovação científica e corroborar o que já vemos na prática clínica.

A Aliança Medicinal está em fase ainda de investimento para avançar na produção. Quais os próximos passos na infraestrutura da associação?

Primeiro será na infraestrutura de cultivo de planta, nos módulos produtivos. Estamos em ampliação do galpão, hoje temos 10 contêineres. Mas vamos chegar a 36, distribuídos em mais dois andares.

O segundo eixo é na aquisição de equipamentos de laboratório com capacidade maior de processamento. Em seguida, faremos investimentos também na estrutura física do laboratório, com novas salas e ambientes, inclusive temos uma planta nova sendo desenvolvida.

Em paralelo, investimos em formação profissional. Somos um elo na formação do segmento, desde médicos até os profissionais de laboratório, do manejo da planta e do acolhimento aos pacientes.

Esses investimentos devem ampliar em quando a capacidade produtiva da Aliança Medicinal?

A pretensão é de chegar a uma capacidade produtiva entre 15 e 20 mil frascos por mês. A quantidade depende da concentração do produto.

Se hoje vocês produzem dois mil e tem uma capacidade produtiva de cinco mil, o investimento para quase que triplicar é porque vocês acreditam numa ampliação forte da demanda?

Sim. Isso porque vemos a melhora, de fato, na vida das pessoas que usam, de forma segura e com baixíssimos efeitos colaterais. Entre os nossos associados há muitas pessoas com dores em geral, que conseguimos ajudar muito. Desde dores crônicas de cabeça a dores da fibromialgia, de artrite.

Que outros tipos de pacientes já são beneficiados pelo uso medicinal da cannabis?

Hoje temos muitas pessoas com autismo. Pessoas com ansiedade, com depressão… A cannabis trata mais de 200 a 300 tipos de transtornos diferentes. Então, é muito importante conseguir dar volume na produção para atender a demanda crescente e contribuir para desafogar o próprio sistema público de saúde.

Quanto um contêiner consegue produzir do óleo da cannabis?

Uma planta cultivada em ambiente natural demora em torno de seis meses para se desenvolver (no contêiner são três meses). Mesmo assim, não atinge um padrão do que produzimos porque não temos no contêiner variações de temperatura, como um dia nublado ou de mais chuvas.

Produzimos as plantas no laboratório (no contêiner) e extraímos a flor, que é bem pequena. Nós a embalamos e retiramos apenas as glândulas dela, ou seja, o extrato de uma pequena parte da planta. Um contêiner inteiro fornece um quilo ou até menos desse extrato. Cada contêiner tem 236 plantas que chegam no tamanho de uma mudinha e ficam lá em torno de três meses até o processo de colheita. O que é retirado vai para o processo de decomposição e a substância vai ser obtida em laboratório. Só em seguida será produzido o óleo que segue para análise e que demora cerca de 20 dias para ser certificado na dosagem correta. Em todos os lotes temos essa análise antes de o produto seguir para a distribuição e chegar aos pacientes.

Como é o processo de entrega deste produto? A maioria dos associados da Aliança Medicinal é de Pernambuco?

A maioria dos associados é de Pernambuco mas temos pessoas do País todo recebendo o produto. São mais de nove mil associados. Hoje, enviamos para o Brasil todo pela Azul. Aqui em Pernambuco contamos com entrega local.

Antes fazíamos a entrega pelos correios. Mas eles receberam uma notificação da Anvisa dizendo que não podiam fazer a distribuição desse tipo de medicamento. A gente ficou preocupado porque, se esse produto não chega na mão do associado, ele não consegue a compra na farmácia. Ele simplesmente volta a ter os problemas de saúde que tinha antes da terapia, aquele caos. Mas conseguimos encontrar a Azul e hoje eles fazem coleta diária aqui e enviam de avião para todos os Estados do Brasil.

Se avançar a regulamentação, vocês conseguem baixar ainda mais o preço do tratamento, pelo volume de produção?

Num curto período de tempo, eu acredito que não. Mas no médio e longo prazo, sim. Por quê? Porque hoje a gente vive ainda um período de muito investimento. Se, em algum momento, a gente conseguir linhas de financiamento, que hoje não estão disponíveis, a gente pode chegar ao ponto de conseguir uma melhora desse valor também.

Temos uma demanda crescente. Então, a necessidade de reinvestimento é bem significativa. Quando tivermos um volume grande de produção e conseguirmos estabilizar o nível de investimento, vamos trabalhar apenas com custo de produção. Aí, poderemos conseguir uma redução também.

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