Edilson Junior, mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela UFPE e doutor em geografia pela UFES, pesquisou o Rio Beberibe durante a sua dissertação Nas Trilhas da Floresta Urbana: Gestão ambiental e conflitos na Mata do Passarinho. Mais que uma questão natural, relacionada aos efeitos das mudanças climáticas, o cenário vivido na comunidade emblemática vizinha ao rio é um problema de ordem social. O pesquisador destaca que os indicadores sociais dos bairros que convivem com o Beberibe são comparáveis aos países mais pobres da África.
Nesta entrevista concedida ao jornalista Rafael Dantas para a série 3 Rios, 3 Comunidades, 3 Desafios, Edilson Junior trata ainda dos possíveis caminhos para recuperação do Rio Beberibe e das comunidades do seu entorno, mas alerta para o agravamento da situação social nas últimas décadas, com o crescimento demográfico das comunidades ribeirinhas. (Fotos: Midiã Tavares, especial para a Algomais)
Qual a relação entre o poder público, a comunidade que vive na região e o Rio Beberibe?
A relação entre o poder público e a comunidade é de abandono; entre a comunidade e o rio é de desprezo; e entre o rio e o poder público é de serventia. Explico: se traçarmos um panorama com indicadores de renda, saúde e educação, que são utilizados no Índice de Desenvolvimento Humano, dentro de um município, veremos que os bairros que margeiam essa porção do Rio Beberibe estão historicamente atrelados a resultados similares aos de países africanos pobres. São décadas de desamparo, falta de equipamentos urbanos e oportunidades de trabalho. A desigualdade é muito violenta, o que torna secundária a pauta da conservação ambiental.
A exemplo da Reserva de Floresta Urbana (FURB) Mata do Passarinho, que foi seu objeto de pesquisa, como se caracteriza a pressão ambiental nessa região?
Ninguém vai pensar nos impactos ambientais de derrubar a mata para construir sua casa, de retirar lenha para poder cozinhar suas refeições, ou nos problemas de lançar esgoto e lixo diretamente no rio, enquanto o poder público não atende sequer as demandas sociais básicas. É uma situação triste, pois o Beberibe e as Reservas de Floresta Urbana que o margeiam são, de certa forma, patrimônios vivos da nossa terra e estão diariamente sofrendo com este tipo de ação. Portanto, por necessidade, a população faz uso desses recursos naturais e não há ação de conscientização que possa impedir isso. Apenas a resolução das demandas de habitação e saneamento, anulando a necessidade de fazer uso desses espaços naturais, pode aliviar a pressão ambiental do Beberibe e das FURBs.
Há mais de uma década a região foi alvo do Prometrópole. Esse programa era voltado para a Bacia do Beberibe e inclusive retirou a população da Vila do Tetra, que fica entre a FURB e o Rio. Mas a área foi reocupada e não foi construído o habitacional. O que aconteceu para esse projeto não ser executado?
O programa Prometrópole, que este ano completa duas décadas desde o grande aporte financeiro recebido do Banco Mundial, é um caso emblemático, tanto pelo seu escopo quanto pelo seu resultado. Em teoria, ele iria garantir uma transformação urbanística completa das margens do Beberibe, servindo de vitrine para Pernambuco numa época em que diversas organizações intergovernamentais, como as Nações Unidas, estavam financiando projetos de urbanização no Brasil. No entanto, o que tivemos foi a fragmentação do programa em obras sem a devida efetividade, pouco integradas entre si ou fora dos fundamentos de saneamento e combate à pobreza do programa. Isso é completamente diferente do que foi apresentado à população.
Até hoje, os habitantes dos bairros contemplados pelo Prometrópole lembram do projeto com frustração. Muitas das áreas de lazer propostas não foram construídas, o quantitativo de habitações entregues ficou aquém da demanda, a pavimentação e o esgotamento sanitário das ruas se arrastaram além do necessário, e o abastecimento de água ainda é deficiente. Isso sem falar na rede de serviços públicos, que não foi ampliada como anunciado.
Sobre a Vila do Tetra, pode-se dizer que a questão até triplicou de tamanho, tanto no quantitativo populacional quanto na área ocupada. Isso ocorreu porque, diante do atraso ou da inexistência das obras, novas frentes de ocupações foram se formando ao longo do Beberibe, a exemplo do terreno no antigo endereço da Rádio Olinda.
Acredito que o Prometrópole sofreu muito pela visão engessada de um "kit de urbanização" que não atendia às especificidades do povo atendido e do espaço que habitavam.
A população vive numa situação de extrema vulnerabilidade social e sem saneamento básico. Quais os possíveis caminhos para encontrar uma solução que seja satisfatória para a população e para o Rio Beberibe?
Não há solução efetiva que não seja através de um grande projeto integrado entre urbanização e demais questões sociais. Em uma situação ideal, a realocação da população para moradias mais adequadas e a consequente proteção das margens seriam o melhor caminho. No entanto, isso tem um custo político e orçamental que pouquíssimas gestões municipais estão dispostas a enfrentar. Além disso, desde a Lei 14.285/2021, os municípios detêm competência para regularizar todas as ocupações urbanas nas margens dos rios, chancelando a transformação do que deveriam ser áreas de proteção em tecido urbano consolidado. É esse caminho que tem sido adotado, normatizando a precarização das margens dos rios. Dessa forma, temos o próprio poder público a "planejar" desastres, como os provocados por enchentes. O que fica claro é que qualquer projeto precisa contemplar as dimensões sociais e ambientais, pois não é possível pensar em recuperar um rio enquanto a população sofre necessidades mais urgentes como emprego e habitação. A história do Prometrópole mostra isso.
A população se queixa da maior intensidade de eventos de enchentes nos últimos anos. Podemos inferir alguma relação com as mudanças climáticas e a maior intensidade de chuvas, num período mais curto de tempo?
Não apenas as mudanças climáticas estão propiciando mais eventos hidrológicos extremos, mas também as características da suburbanização a partir do médio curso do Beberibe estão contribuindo para as situações de enchentes. Na verdade, as questões relacionadas a como produzimos a nossa cidade são muito mais relevantes no caso do Rio Beberibe do que as mudanças de temperatura ou precipitação. A ocupação desordenada das margens, principalmente na extensão entre os bairros de Passarinho e Peixinhos, o descarte irregular de resíduos sólidos, principalmente plásticos e móveis, e a falta de soluções por parte do poder público provocam pressões que desregulam a já complicada dinâmica de vazão do rio, o qual é assoreado, mal manejado e intensamente poluído. Por essa razão, até rejeitamos o termo "desastre natural", comumente associado a enchentes, pois os inúmeros eventos extremos também são socialmente fabricados. Chamá-los de "desastres socionaturais" é mais adequado e evita o mascaramento dos problemas sociais por trás das tragédias.
Como é a situação atual da comunidade e dos projetos em desenvolvimento para a região do entorno do Rio Beberibe?
Acredito que a situação atual seja pior do que há uma ou duas décadas. Primeiro, temos um crescimento populacional expressivo. Entre os anos de 2000 e 2010, os bairros que margeiam o Rio Beberibe cresceram em torno de 1% a 3%. Pode parecer uma taxa pequena, mas em demografia, este é um crescimento considerável. A prévia divulgada do Censo 2022 indicou uma desaceleração do crescimento demográfico de Olinda e Recife, mas os dados específicos para os bairros banhados pelo Rio Beberibe provavelmente estão na contramão desses números. O que quero indicar é que estamos em franca expansão de uma área que não dispõe de equipamentos urbanos adequados e acumula problemas socioambientais, ou seja, uma tendência de piora. Há ainda grandes terrenos às margens do Beberibe passíveis ou já em processo de ocupação, como terras públicas e particulares, áreas verdes, terrenos de fábricas desativadas e outras situações, existentes desde o cruzamento do Beberibe com a BR-101 até a sua foz. Enquanto isso, os projetos atuais estão focando na reestruturação viária e na implementação de soluções de saneamento, sem contemplar a principal questão, que é o déficit habitacional, a pressão urbana das habitações nas margens, as quais são construídas em ritmo muito superior às obras do poder público.
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