Sandra Kattah: "A Infância Tem Que Ser Infância, Sem Pressa E Sem Excesso De Telas" - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
Sandra Kattah: "A infância tem que ser infância, sem pressa e sem excesso de telas"

Revista Algomais

A ansiedade tem se tornado uma das principais preocupações entre pais e educadores, não apenas entre adultos, mas já impactando fortemente crianças e adolescentes. Para a psicopedagoga Sandra Kattah, fundadora da escola Vila Aprendiz, a raiz desse problema está em um ritmo de vida acelerado, marcado pelo excesso de telas, agendas lotadas e a falta de tempo para o brincar livre. “A infância precisa ser respeitada em seu tempo, sem a pressa de se tornarem bilíngues ou de já pensarem no Enem tão cedo”, ressalta.

Sandra chama atenção para sinais que não podem ser ignorados, como inquietação excessiva, tiques nervosos, roer unhas e dificuldade de concentração. Segundo ela, o resgate do ócio, das brincadeiras livres e do contato com a natureza são práticas fundamentais para fortalecer a saúde emocional na primeira infância e evitar que transtornos de ansiedade se prolonguem até a vida adulta. “O brincar é o maior centro de pesquisa da infância”, ressalta a especialista, destacando a importância de equilibrar rotina, convivência familiar e estímulos adequados ao desenvolvimento de cada fase.

Por que percebemos de forma tão intensa a ansiedade em crianças e adolescentes?

Acredito que o ritmo de vida da atualidade, com um mundo de ofertas pelas redes sociais e a busca de uma perfeição, que não existe, leva as famílias a desejarem “o mundo” para os filhos e, assim, ofertarem tudo que, muitas vezes, eles, pais, não tiveram. As crianças são frutos da vivência familiar, e como se deseja o mundo, iniciam-se cada vez mais cedo os estímulos com as crianças.  

Hoje há uma sede muito grande de acelerar a vida delas com bilinguismo, trilinguismo, agendas lotadas. Sem contar o acesso excessivo às telas. Tudo isso leva a uma ansiedade intensa da criança e do adolescente. É um fenômeno acentuado até pela ausência dos pais. Para não terceirizar só com babá, ocupam os filhos com muita coisa. Isso causa ansiedade neles.

Como se dá o processo de ansiedade nas crianças que usam a internet? Qual o mecanismo que provoca a ansiedade? 

O processo de ansiedade nas crianças não se dá por uma combinação de mecanismos psicológicos e neurobiológicos. É um processo que ocorre de forma gradual e que envolve fatores como a superestimulação, comparação social, ciberbulling, pressão social. Assim como o processo, o mecanismo também não é algo simples, envolve ativação de sistemas cerebrais fundamentais como o sistema de recompensa, que libera a dopamina (neurotransmissor que atua como um mensageiro químico no cérebro, sendo fundamental para a motivação, prazer, foco e coordenação motora) e, a cada estímulo, uma recompensa, o que vicia a criança na busca do prazer constante.

Outro sistema ativado é o de luta, que envolve a amígdala (estrutura localizada no cérebro, responsável pelo processamento e regulação das emoções, como o medo, e pela consolidação da memória) e o cortisol (popularmente chamado de “hormônio do estresse”).   Esse sistema ativa o centro do medo e ocorre a liberação do cortisol, da adrenalina, deixando o corpo em um estado de alerta baixo, mas constante, que é a base da ansiedade generalizada.

 Esse processo produz, ainda, a sobrecarga do córtex pré-frontal, área do cérebro responsável pelo controle de impulsos, tomada de decisões e controle emocional. As crianças, ainda em formação, são superestimuladas e sobrecarregam essa área do cérebro, dificultando que elas lidem de forma tranquila com frustação e emoções negativas, levando-as à impulsividade e à ansiedade.

crianca tela

O que exatamente a tela provoca no emocional, na mente das crianças, causando a ansiedade excessiva?

O excesso de telas prejudica muitas coisas, inclusive as questões estruturais do cérebro. Ocorre um afinamento do córtex de forma prematura, isso já é sugerido em vários estudos por neurologistas e pesquisadores da área.  Para nós, que lidamos com eles na educação, às vezes o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) é instalado por excesso de telas, que trazem um volume de imagem e sons muito altos, que nenhum ser humano iria conseguir fazer, e deixam as crianças fascinadas. E aí, elas não conseguem se deter diante de um professor com um livro aberto, mesmo com imagem. 

Quando a gente trabalha com a contação, diante dos livrinhos, dos fantoches e sem o acesso à tela, eles vão desenvolvendo essa capacidade de forma mais saudável. Hoje é quase impossível as famílias não conseguirem dar esses dispositivos de tela para as crianças. Às vezes, até acham que é uma coisa bacana, positiva, porque tem a propaganda de alguns vídeos, de algumas séries. Eles terminam sendo reféns disso. Para poder dar conta da casa ou porque precisam se ocupar de alguma coisa, terminam dando o celular ou o tablet prematuramente às crianças. 

A gente recomenda, inclusive, que as famílias ao procurarem um restaurante, escolham o que tenha parquinho ou uma área livre, mas não deixe a criança sentada com a tela na mão. Isso realmente é o caos. Mas muitas pessoas não conseguem e cedem. Só conseguem interromper quando o problema já está instalado. Essa é uma pauta muito grave na atualidade que a gente se preocupa muito.

Eu trabalho com duas realidades. A criança de alto padrão e a criança carente. Essa também vê alguns conteúdos nas telas com os pais, mas bem menos. Ela tem uma capacidade criativa e uma estrutura emocional, às vezes, bem melhor do que a criança de alto padrão financeiro e isso me entristece muito, porque o alto padrão teve acesso a muita informação. Os mais carentes, por falta de recursos mesmo, acabam não tendo tanto o acesso à tela quanto os mais abastados.

Quando é preciso se preocupar com o nível de ansiedade dos pequenos? 

Normalmente eles apresentam sinais de inquietação exacerbada, como a dificuldade de conseguir parar diante de alguém contando uma história.  Apesar de estar atrelado ao excesso de telas, eles começam com tiques, mordendo a unha, mãozinha na boca excessivamente numa fase que não é mais comum. Essas questões são sinais visíveis.  A gente tem conversado muito com as famílias para fazer com que elas reflitam, para que resgatem a infância.

A infância tem que ter pé no chão, contato com a natureza, subir em árvore, andar de bicicleta, ser infância, como a das gerações do pessoal que tem hoje 30 ou 40 anos, algo que a geração que hoje tem 20 ou 15 anos já não viveu e sofre numa ansiedade exacerbada. Os sinais são físicos e emocionais no descontrole deles. Quando a gente percebe, convoca a família, convida a fazer um trabalho, a fazer uma análise, a reduzir telas, a não ter pressa para ler e escrever, ou para falar outra língua.

A criança, mesmo muito jovem, já está falando no Enem. É uma loucura muito grande. Se a gente parar para fazer esse resgate de infância poderíamos mudar a realidade atual, pois é durante essa fase da vida que se instala toda a estrutura emocional.

Eles vão crescer mais fortalecidos, com autonomia para decidirem o que eles querem. É preciso respeitar a idade e o tempo deles, sem pressa para se tornarem bilíngues ou que tenham o Enem pela porta. Têm muito tempo pela frente, precisamos ter um pouquinho mais de cautela nesse sentido. 

Parece que essa geração hoje não aceita o tédio, que era algo comum nas gerações passadas. Como isso faz falta para a formação da criança, qual o impacto causado pelo estímulo prolongado? 

Essa é uma das coisas que temos resgatado muito com eles aqui na Vila Aprendiz, que é a questão da contemplação, do olhar para o detalhe. A criança tem isso de forma aguçada, mas ao longo da vida ela vai perdendo, porque o sistema vai rompendo isso, com a oferta de coisas que são mais fascinantes. Uma tela, um filme, a forma que é colocada através da tela, como eu citei, de imagens, sons em velocidades que a gente não dá conta e meio que aliena, hipnotiza. E a hipnose termina trazendo danos graves para as crianças, tanto cerebrais, quanto emocionais. 

Aí, a gente tem que fazer essa criança esperar, escutar, contemplar a natureza, olhar as nuvens. Fizemos, na Vila Aprendiz, um trabalho bem legal e umas fotos maravilhosas dos alunos com os binóculos que eles mesmos fizeram, que são de “faz de conta". Mas foi para eles olharem as nuvens, para entenderem quando elas estão cheias, carregadas. Para se perguntarem: “Como é que cai? Como é que chove?” 

crianca na natureza

É um trabalho por meio do concreto e da vida real para eles. Isso vai ajudar a instalar todas as questões emocionais e desenvolver o controle sobre eles mesmos. A criança precisa se conhecer para poder conhecer o mundo. Então, não adianta você mostrar o mundo inteiro quando não faz com que ela saiba quem ela é. Eu acho que tem que começar pelo início realmente de “Quem eu sou e qual o meu papel aqui?” Isso a gente vai instalando no dia a dia deles, fazendo eles esperarem mesmo.

Eles escutam a palavra e repetem, “eu estou com tédio, eu estou irritado” e eles não sabem muitas vezes o que é isso. O ócio é necessário porque a partir dele, num espaço livre, a criança vai criar e é muito belo ver a criação deles nesse espaço. A gente tem inclusive um parque que não tem brinquedos estruturados. São brinquedos com pneus, pedras… e outro dia eles criaram um carro gigante com caixote para eles entrarem. Botaram as rodas para fazerem os pneus, e na frente a direção, foi muito lindo. Quando a gente vê fica deslumbrado, mas é isso que a família tem que procurar fazer. 

Eu sei que no mundo de hoje é difícil. Muitos moramos em apartamento, não tem jardim, não tem canteiro, não tem área livre para descer. Precisa de alguém acompanhando a criança. Isso dificulta bastante, mas a família deve realmente buscar um parquinho depois do horário da escola, no final de tarde, antes deles dormirem, de entrar no processo de organização, evitar as telas, fazer brincadeiras livres. Brincadeiras livres e criativas liberam uma série de substâncias neuroquímicas benéficas para o cérebro, melhorando o humor e reduzindo o estresse, favorecendo a aprendizagem.

Isso vai jogar fora os hormônios ruins, a energia vai tranquilizar, vai acalmar para que eles tenham o melhor sono. O sono partido, rompido, agitado vai levar a incômodos no dia seguinte, a um cansaço. Então, é uma sequência de atividades que realmente temos que propor a eles. Na hora que escolhemos ter filhos, temos que estar prontos para os desafios da atualidade, que é cuidar deles, pelo menos, não enchendo a agenda com ocupações não devidas para a primeira infância.

Quando não existe esse cuidado e quando a criança que tem problemas com ansiedade não é tratada, o que isso pode gerar na fase adulta? 

Primeiro, ela não vai conseguir dar conta dela própria e da organização de pensamento, caso não seja estruturada para conhecer-se. Aí, surgem inúmeras síndromes que podem ser distúrbios de conduta e até depressão, porque ela não vai conseguir, vai dizer: “eu me esforço, eu me esforço e não consigo”.

Mas ela se esforça erroneamente porque ela não se conheceu, não foi dada a ela essa oportunidade. Nesse caso, o caminho é a terapia para poder se organizar e se conhecer. Às vezes, na primeira infância, até indicamos a terapia quando vemos que a família não está dando conta. 

Cada família vai criar os filhos, dentro do que acredita, mas o primeiro caminho mesmo é fazer com que a criança se conheça e que os pais possam dar a ela espaços livres para que use a criatividade, imaginação e fantasia.

Qual a importância do brincar para o desenvolvimento deles?

Einstein já dizia que o brincar é sempre o maior centro de pesquisa da infância, a gente entende o brincar, hoje na sociedade, como algo para desocupado, “ah vai brincar filha, não vai fazer nada, vai brincar”. 

É no brincar que ela vai fazer o teste do corpo dela. Vai se conhecer na área motora, na área criativa, na área cognitiva. Há estudos que mostram que a criança que brinca bastante e tem uma estruturação disso com a família, com interações, ela se constrói uma criança cognitivamente muito boa e com muitas habilidades. 

A criança é avaliada não só pelo desempenho cognitivo, mas também pelas habilidades que ela desenvolve dentro do dia a dia. Então, é importante para que elas não se tornem adultos cheios de resquícios de depressões e de síndromes que vêm surgindo a cada dia, como a burnout e outros, de cansaço, de estresse, de lutar contra uma coisa que elas não construíram lá atrás. É necessário nessa infância a gente ficar bastante atento à construção pessoal delas. 

A senhora teria alguma dica a mais para as famílias ajudarem as crianças a lidarem com a ansiedade?

ansiedade infantil

Creio que o brincar com o filho, a rotina (que é estruturante) e a relações afetivas funcionam como antídoto contra a ansiedade.  Então, contar histórias, acalmar esse momento, reduzir o número de luzes acesas na casa, isso ajuda a se preparar para um bom sono. No dia seguinte ela está disposta e não dará trabalho nem estresse na hora de se arrumar, de acordar. 

Essa rotina é muito necessária na primeira infância. Claro, no final de semana a gente abre, a gente sai, eles vão entender que é final de semana e um dia extra vai acontecer na rotina da semana também, mas o máximo de rotina de sequência de respeito nisso na primeira infância é estruturante, é muito importante. 

Além da ansiedade, quais outros danos que o uso excessivo de telas pode causar em crianças?

O excesso de telas prejudica muitas coisas, como dificuldade social e vários danos físicos. Problemas de visão como fadiga visual digital, (que inclui olhos secos, vermelhos, irritados e dor de cabeça), miopia, alteração no sono, causada pela luz azul emitida pelas telas, além de questões como problemas posturais, sedentarismo e obesidade. Isso tudo já é comprovado cientificamente por neurologistas e pesquisadores da área.

criancas tablet telas

Especialistas advertem que algumas crianças têm sido diagnosticadas como autistas, mas, na verdade, são casos em que o uso excessivo de telas prejudica o desenvolvimento da socialização. A senhora tem visto casos como esse?

Sim. Já recebemos crianças de 2 anos com diagnóstico de TEA, quando na verdade era apenas consequência de telas em excesso e em idade que o uso deveria ser zero. Em casos como esse, iniciamos a redução drástica das telas, pois o uso excessivo libera altos níveis de dopamina no cérebro, pode levar a descontroles emocionais, sensoriais e a uma dependência que prejudica o interesse por outras atividades, levando a condutas semelhantes à de uma criança com TEA.

A principal diferença observada é que, quando o tempo de tela é reduzido drasticamente, os sintomas começam a melhorar em pouco tempo. A escola é primordial para crianças com suspeitas, pois desde cedo ajudará a família nesse caminho e promoverá além de estímulos sensoriais e motores, o estímulo social. Claro que, em paralelo a tudo isso, se fazem necessárias outras avaliações com neurologistas para que, tudo isso somado, possa orientar terapias que ajudarão a sair do quadro suspeito. As telas não causam o autismo mas podem ser responsáveis pela dificuldade social.

O que a senhora achou da aprovação da lei conhecida como ECA Digital (Estatuto da Criança e do Adolescente Digital), que estabelece novas regras para proteger crianças e adolescentes na internet?

Achei um grande avanço. Este ano já tivemos a Lei15.100/2025 que proíbe o uso de celulares em sala de aula da educação básica. Sabemos dos benefícios que a tecnologia nos traz, mas usada indevidamente e excessivamente os prejuízos se tornam maiores. Aqui na escola não tivemos dificuldades com a nova lei, pois desde a nossa origem não permitimos o uso do celular. Propomos ambientes de brincadeiras, interação social, música, teatro, para que não sintam falta. 

Os alunos do fundamental II estão na escola das 8h às 15h45, quando não saem mais tarde por causa dos esportes, e não trazem celular. Esse é um dos encantos que tenho, em ver os adolescentes interagindo, jogando, lendo, sem usar o celular. Agora com o ECA Digital, sancionado em setembro de 2025, que irá vigorar em março de 2026, nossas crianças e nossos jovens terão um pouco mais de proteção, pois a lei, além de estabelecer regras e responsabilidades para proteger crianças e adolescentes, reforça que a proteção é um esforço conjunto da família, da escola e da sociedade como todo.

Deixe seu comentário

Assine nossa Newsletter

No ononno ono ononononono ononono onononononononononnon