A FTL, concessionária da malha ferroviária do Nordeste, entrou com um pedido junto à ANTT para devolver a concessão, mas o engenheiro e professor da UFPE e Unicap, Maurício Pina, alerta para os prejuízos que alguns Estados nordestinos terão caso o Governo Federal acate a solicitação.
Um novo capítulo da novela do sistema ferroviário pernambucano surge com tons dramáticos. A empresa FTL (Ferrovia Transnordestina Logística) concessionária da Malha Nordeste (abrangendo Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas), entrou com um pedido junto à ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) para devolver a concessão.
Caso o pedido seja aceito pelo Governo Federal, será mais um revés para Pernambuco, uma vez que a TLSA, concessionária da Transnordestina – que pertence ao memo grupo da FTL – já retirou os trechos Salgueiro-Petrolina e Salgueiro-Suape do trajeto dessa ferrovia. A medida, segundo o engenheiro Maurício Pina, professor da UFPE e da Unicap, também prejudicará outros Estados nordestinos. “Isso causaria sérios prejuízos aos portos da região, principalmente Suape, Cabedelo, Natal e Maceió. Não existe porto de grande porte no mundo que não seja alimentado por ferrovia. Querer imaginar que Suape seja alimentado por rodovia, como é hoje, é querer condená-lo a não se tornar um grande porto concentrador de cargas”.
Nesta entrevista a Cláudia Santos, Pina, que também é membro titular das Academias Nacional e Pernambucana de Engenharia, faz um histórico da malha ferroviária do Nordeste Oriental, analisa os problemas advindos da concessão e defende que a União não aceite o pedido de devolução da concessionária.
O senhor poderia fazer um histórico sobre as ferrovias do Nordeste?
A Transnordestina, que seria a ferrovia mais importante do Nordeste, é considerada a obra inacabada mais antiga do País. Em 1847 o imperador Dom Pedro II determinou a abertura de uma ferrovia que ligasse o litoral da região aos Sertões e esse é o primeiro registro que se tem do que hoje é a ferrovia. Mas vamos dar um salto grande no tempo, em 1959 foi criada a Rede Ferroviária Federal mas, em 1997, foi realizado o leilão [para privatizar] a malha ferroviária do Nordeste, como foi feito também em outras regiões do País.
O leilão, que abarcava todas as ferrovias situadas nos estados do Nordeste até Alagoas (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas), excluiu apenas Sergipe e Bahia cuja malha ficou com outra concessão. O leilão abrangeu uma extensão de ferrovias de 4.238 km e a empresa vencedora foi a CFN (Companhia Ferroviária do Nordeste).
De início, ela já tomou partido e estabeleceu sua sede em Fortaleza, quando o natural seria se estabelecer no Recife porque a superintendência de Fortaleza (chamada de SR11) até 1988 era subordinada à Superintendência Regional da Rede Ferroviária no Recife, que era a SR1. O contrato de concessão estabelecia o prazo de 30 anos. Desde o final do Século 19, as ferrovias construídas no Nordeste se destinavam a ligar um local de produção até os portos. Então, por exemplo, havia uma ferrovia ligando o Recife a Caruaru que foi inaugurada em 1894 e depois ela foi sendo prolongada, chegou ao Sertão do Pajeú e era para ela ter continuado, mas parou em Salgueiro.
Veja a lógica: havia uma ferrovia do Recife até Salgueiro, uma outra de Fortaleza até Missão Velha, no Ceará, e outra de Salvador até Juazeiro da Bahia. Eram três ferrovias que não se comunicavam. A primeira concepção do que se chamou de Ferrovia Transnordestina foi justamente a ligação de Salgueiro com Missão Velha para conectar a malha de Pernambuco com a malha do Ceará e a ligação de Salgueiro até Petrolina e, com isso, permitir em Juazeiro a ligação de Pernambuco com as ferrovias da Bahia.
Essa concepção tem um detalhe importante que é a integração com a hidrovia do São Francisco, algo extraordinário. O São Francisco é uma dádiva da natureza para o Nordeste não só porque produz boa parte da nossa energia elétrica mas, também, porque o rio é navegável desde Pirapora, em Minas Gerais, até Petrolina.
Se a ferrovia fosse implantada com essa concepção chegando até Petrolina, permitiria que toda a produção de grãos do Cerrado, no Oeste da Bahia, fosse escoada por hidrovia até Petrolina e de lá seguisse por trem até os portos de Suape ou até Pecém.
Quais as linhas que foram privatizadas?
Quando essa concessionária assumiu, em Pernambuco existiam três linhas férreas: a Linha Norte que saía do Recife, passava em Itabaiana, chegava em Campina Grande, seguia pelo Sertão da Paraíba e subia para Fortaleza, Teresina e São Luís. Havia a Linha Centro que parou em Salgueiro – que era para ter prosseguido até Petrolina – e havia a linha Sul que saía do Recife e ia até o Sul do País. Essa era chamada Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco e o trecho inicial, que abrangia do Recife até o Cabo de Santo Agostinho, foi inaugurado pelo imperador Dom Pedro II, em 1858.
Na década de 1970 foi construída uma ponte rodoferroviária sobre o Rio São Francisco, ligando Porto Real do Colégio, em Alagoas, até Propriá, em Sergipe. Com essa ponte, tínhamos a ligação completa do Recife até o Sudeste e o Sul do País. Havia vários estudos que recomendavam fortemente a Transnordestina, como o realizado em 1987 pela área de planejamento do Governo Federal, e em função dele, em 1990 as obras foram iniciadas. Mas, em 1992, elas foram paralisadas por falta de recursos, isso antes da concessão.
A CFN assumiu a malha ferroviária do Nordeste no início de 1998, como vencedora do leilão realizado em 1997. Pelo contrato, ela era obrigada a fazer manutenção da via permanente da infraestrutura ferroviária. Mas a empresa não investiu na manutenção e em função disso passou a haver um desmonte da malha ferroviária. Dos 4.238 km que ela recebeu como concessão em 1998, apenas 2.750 km estavam em operação em 2000, ou seja, houve uma redução de 35%.
Em 2006, o projeto passou a se chamar Nova Transnordestina e veio com outra concepção da ferrovia: ao invés de realizar a ligação: Salgueiro/Missão Velha e Salgueiro/Petrolina, ela eliminou Petrolina — isso foi uma perda grande para Pernambuco — e passou a ter a concepção de um “T” invertido. Há uma cidade no sul do Piauí chamada Eliseu Martins, onde há minério, e o trajeto da ferrovia agora seria Eliseu Martins/Salgueiro, Salgueiro/Pecém e Salgueiro/Suape.
Essa ferrovia teria uma extensão de 1.730 km e, pelo planejamento que a concessionária apresentou, as obras seriam realizadas num prazo de três anos e custariam R$ 4,5 bilhões. Ela foi projetada para transportar no ano de 2020, 27 milhões de toneladas de carga, basicamente minério de ferro, soja, milho, algodão, álcool, gipsita do polo gesseiro do Araripe, petróleo, combustível derivado de petróleo, biodiesel e carga de contêineres. No mesmo ano de 2006, a CFN mudou a razão social e passou a se chamar TLSA, Transnordestina Logística S/A. Quando chega o ano de 2013 ocorre a cisão dessa concessão.
Como assim?
A empresa foi dividida em duas, a TLSA e uma outra chamada FTL (Ferrovia Transnordestina Logística). A TLSA ficou com o trecho novo da Transnordestina e a FTL ficou com a parte antiga do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. No mesmo ano de 2013, a concessionária suspendeu toda a operação de trens de Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, ou seja, estamos há mais de 10 anos sem circular um trem de carga em Pernambuco e nos demais Estados do Nordeste Oriental.
Isso causou sérios prejuízos aos portos da região, principalmente Suape, Cabedelo, Natal e Maceió. Não existe porto de grande porte no mundo que não seja alimentado por ferrovia. Querer imaginar que Suape seja alimentado por rodovia, como é hoje, é querer condená-lo a não se tornar um grande porto concentrador de cargas. E veja bem, Suape é outra dádiva da natureza para Pernambuco porque é um porto de águas calmas, o cais tem uma profundidade natural de 17 metros, é protegido por arrecifes, isso torna a atracação de navios bem mais fácil, inclusive os de grande porte.
Em 2017 o Tribunal de Contas da União suspendeu o repasse de recursos para as obras da Transnordestina porque, na ocasião, só 600 km haviam sido executados e, em março de 2020, a ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre) solicitou ao Governo Federal a caducidade da concessão da ferrovia pelo descumprimento de cláusulas contratuais. Na verdade, a concessionária abandonou as ferrovias do Nordeste e no trecho Recife/Salgueiro já foram furtados centenas de quilômetros de trilhos.
Desde 2013, não circula mais trem de carga no Nordeste, ainda houve durante um tempo, o trem do forró que ia do Recife até Caruaru, mas foi suspenso porque houve descarrilamento por falta de manutenção. Em julho de 2021 o Ministério da Infraestrutura anuncia que o trecho Salgueiro/Suape da Transnordestina não vai ser construído e isso foi consubstanciado em dezembro de 2022 por um termo aditivo ao contrato de concessão com a concessionária.
Ao invés de ser punida com a perda da concessão – porque não cumpriu o que estava no contrato – a concessionária foi premiada e recebeu o que ela queria: só ficar com o trecho cearense. Recentemente, em outubro do ano passado, a Sudene liberou R$ 811 milhões para a TLSA fazer o trecho do Ceará. Nesse interregno, quando o Ministério da Infraestrutura anunciou que o trecho Salgueiro/Suape sairia da concessão, o Governo do Estado procurou a empresa Planalto Piauí Participações e Empreendimentos, dona da mineradora Bemisa, que conseguiu com o Governo Federal autorização para construir um trecho de ferrovia que sairia de Curral Novo, no Piauí, até Suape.
Quatro dias depois que a Sudene liberou quase R$ 1 bilhão para a Transnordestina, a ANTT aprovou o pedido de renúncia da Bemisa à autorização que lhe havia sido dada. Mais recentemente a concessionária solicita ao Governo Federal, a devolução de toda malha ferroviária em bitola métrica dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. Devolveu também um trecho do Ceará, que vai do Crato até Fortaleza. Mas esse trecho vai ser substituído pelo de Missão Velha/Fortaleza da Transnordestina. Então, na verdade, o Ceará não tem nenhum prejuízo.
Qual a alegação para essa desistência?
A concessionária afirmou que são trechos não operacionais. Isso significa o quê? Que não tem mais trem de carga circulando. Mas quem foi que provocou isso? Foi a própria concessionária. Ela alega nesse documento algumas coisas absurdas, por exemplo que são trechos que não têm carga. Mas não tem carga porque ela suspendeu a operação desses trechos. Como é que podia ter carga?
De acordo com dados de transporte ferroviário do Nordeste, a Superintendência Regional 1 da Rede Ferroviária, que inicialmente abrangia o Ceará, transportou no ano de 1982, 500 milhões de TKU que é tonelada vezes quilômetro útil. Isso há 41 anos, quando não havia nem a refinaria de petróleo em Suape. Mesmo após o Ceará não pertencer mais à SR1, foram transportados por Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, 320 milhões de TKU. Quer dizer que carga existe, faltou interesse da concessionária em ir atrás dessas cargas.
Ela alega também desastres naturais. O que é que ela chama de desastres naturais? Em agosto de 2000 (isso tem 23 anos e meio), houve uma enchente no Rio Una, na Mata Sul de Pernambuco, que destruiu uma ponte ferroviária. Até hoje essa ponte não foi recuperada e era obrigação da concessionária repará-la. Com a interdição dessa ponte todo o tráfego ferroviário do Nordeste ao Sul do País foi inteiramente suspenso por descaso da concessionária. Quer dizer: ela mesma provoca o problema e depois vem alegar que não tem carga. Hoje a produção seria bem maior do que era naquela época e haveria muito mais movimentação.
O que vai acontecer se realmente essa intenção da concessionária se concretizar?
O Porto de Pecém vai passar a ser servido por uma extensão de 2.446 km de ferrovias. Há o trecho que sai de São Luís, passa em Teresina e vai até o Porto de Mucuripe, no Ceará com o ramal até Pecém, isso dá 1.237 km de extensão. Se você soma esses 1.237 km com a extensão de Eliseu Martins, Salgueiro, Pecém de 1.209 km de extensão, totaliza 2.446 km.
Já os portos de Natal, Cabedelo, Suape e Alagoas teriam 0 km de ferrovia. Isso é um verdadeiro absurdo que não pode ser aceito porque provoca um forte desequilíbrio intrarregional. A concessionária opera um terminal privativo do Porto de Pecém, por isso que o interesse dela é todo voltado para lá e por causa disso, pune todos os Estados do Nordeste Oriental. Hoje, da forma que ela quer, só três Estados terão ferrovia: Maranhão (a ligação de São Luís com Pecém), Piauí (a ligação de Teresina com Pecém) e o Ceará.
Ou seja, ela recebeu a concessão para cuidar das ferrovias em sete Estados e somente três passariam a ser alimentados por ferrovias. Isso é muito preocupante!
Qual seria a saída para essa situação?
O que eu defendo é que a União não aceite isso. Temos que pressionar para que o Governo Federal negue a devolução desses trechos e responsabilize a concessionária porque ela é a responsável pela concessão. É um absurdo! Ela recebeu 4.238 km para concessão e ficaria com apenas a extensão de 1.237 km, ou seja, ela vai ficar com somente 29% dos trechos originais, o resto ela abandonou tudo, deixando a região em total desamparo.
Na verdade, a concessionária deveria ser punida por não ter alcançado as metas de transporte de cargas previstas no contrato de concessão. O contrato reza a punição por causa disso. O que as entidades de engenharia defendem é que essa empresa continue sendo a concessionária até que uma nova concessão aconteça, porque levaria alguns anos para que se concretize uma nova licitação da malha ferroviária do Nordeste Oriental, isso demora um tempo considerável, porque serão necessários diversos estudos.
O que defendemos é que, como a empresa recebeu uma concessão, ela é responsável por essa concessão, até que ocorra uma nova licitação, porque a malha vai se degradar se ela não fizer a manutenção da via permanente.
Até o momento, a TLSA não foi punida por ter descumprido os contratos de concessão e tudo o que ela quis, até o momento, foi acatado pelos diferentes governos. Qual a chance dessa proposta ser aceita pela União e executada?
É simples, a União é o poder concedente. A concessionária faz um pedido e a União pode conceder ou negar, pode dizer: “a responsabilidade é sua até o final da concessão, até que outra empresa assuma”. Se o governo aceita essa devolução, o que vai acontecer é que a degradação vai se intensificar e não vai ter dono nenhum cuidando desses trechos ferroviários. E isso torna ainda mais grave a situação. Eu acho que tem que se lutar por essa nova concessão, mas sem tirar a responsabilidade da concessionária sobre esses trechos que ela mesma deixou ao abandono, sem movimentação de cargas.