“Se o hábito de jogar prejudicar as relações sociais da pessoa, isso acende um sinal de alerta”

Edna Granja, psicóloga do Centro Universitário UniFBV, comenta a decisão da OMS de classificar o vício em games como um transtorno mental, informa o que pode levar uma pessoa a se tornar uma jogadora patológica e opina sobre a lei em tramitação no Congresso que legaliza jogos, como o de cassinos.

D esde tempos remotos, os jogos são uma maneira lúdica de brincar e até de aprender. Com o surgimento dos games e jogos digitais, esse uso foi ampliado e hoje um grande número de adultos, adolescentes e crianças se diverte e aprende jogando em computadores. Porém, para algumas pessoas esse hábito deixou de ser mera diversão para se transformar num vício que tem preocupado especialistas em saúde mental. Estatísticas mostram que no mundo existem mais de 150 milhões de jogadores patológicos; e no Brasil, cerca de 2 milhões.

O assunto ganhou um componente controverso no País com a aprovação pela Câmara dos Deputados do texto base do Projeto de Lei 442/91, que legaliza cassinos, bingos, jogo do bicho e jogos online e que agora tramita no Senado. Nesta entrevista a Cláudia Santos, a psicóloga do Centro Universitário UniFBV Edna Granja explica os motivos que levam uma pessoa a desenvolver o vício em jogos, como deve ser realizado o tratamento e como prevenir esse comportamento patológico. Edna, que tem doutorado em saúde coletiva pela Fiocruz no Rio de Janeiro, alerta que o modo de vida atual, que propicia estados de ansiedade, é também um agravante para essa situação.

Qual o número de pessoas viciadas em jogos no Brasil ou no mundo? Esse número tem aumentado?

Há uma estatística divulgada pelo Jornal de Psiquiatria da Austrália e da Nova Zelândia que mostra que 2% da população mundial é acometida por essa desordem. O jogo patológico é classificado como uma desordem a partir de 2018 pela Classificação Internacional das Doenças (CID) que é um documento de referência. Bem, isso significa que mais ou menos 154 milhões de pessoas são jogadoras patológicas, trata-se, então, de um universo grande, e há uma perspectiva crescente porque estamos falando de um campo ligado a uma indústria de jogos que está em crescimento. Quanto mais gira dinheiro nessa indústria, maior será a repercussão no que se refere a pessoas que consomem esse tipo de entretenimento e que podem vir a adoecer emocionalmente em função disso.

No Brasil essa estatística é um pouco diferente, um estudo do Departamento de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo) aponta que 1% da população brasileira deve ser acometida por esse transtorno. Aí falamos de um universo de 2 milhões de pessoas, o que também é alto.

Como diferenciar uma pessoa que apenas gosta de jogar de um jogador patológico?

Em relação ao jogo e à saúde mental de forma geral, existe um critério que diz respeito a prejuízos sociais. O que significa isso? Se o hábito de jogar estiver produzindo prejuízo às relações sociais daquela pessoa – com a família, com a mulher ou o marido, no trabalho, no estudo – é algo que nos acende um sinal de alerta porque podemos estar diante de um adoecimento do ponto de vista psíquico.

No caso dos jogadores patológicos, consideramos esses prejuízos da vida social e também a saúde mental e física, porque algumas pessoas são acometidas de dores, o corpo vai sucumbindo, como uma lesão na coluna ou no punho, mas, ainda sim, elas não conseguem minimizar ou interromper o uso dos jogos. Ocorre uma redução da produtividade, a pessoa começa a chegar atrasada no trabalho. porque passa a noite jogando. Esse prejuízo tende a começar sutil e vai agravando. Se acontecer falta ao trabalho por exemplo, essa pessoa certamente está num grau mais elevado no que se refere ao comprometimento da desordem fruto do jogo. Mas se a pessoa está bem, consegue manter suas relações preservadas, suas funcionalidades também, o jogo não é um problema.

E quantos aos chamados jogos de azar, em que a pessoa joga por dinheiro?

Este é um outro componente. A competitividade, seja em função de uma recompensa, que seria o dinheiro, seja uma recompensa até afetiva, que seria o destaque em algum espaço, é um elemento que contribui com o envolvimento da pessoa com o jogo. No caso de jogos de azar que envolvem dinheiro é importante que esse hábito não prejudique a saúde financeira. Do ponto de vista da saúde mental, haverá sempre um limiar muito sutil que vai tornar algo saudável em problemático. Não sou contra o jogo, mas é algo para que, diante das características da sociedade do nosso tempo, devemos ficar atentos. Temos que reconhecer que estamos num contexto muito ansiogênico, que alimenta a nossa ansiedade e que produz lucro a partir da nossa ansiedade. Existem vários dispositivos que são criados em cima de características desse tempo.

Qual a importância do fato de a OMS (Organização Mundial de Saúde) referendar a entrada do “vício em games” na sua classificação internacional de doenças, como um transtorno mental?

É importante que de tempos em tempos possamos rever o CID e colocar nesse instrumento informações que são do nosso tempo. Por exemplo, quando eu era adolescente não havia computador, o máximo que havia eram videogames, como o Atari, já minha mãe, na época dela, vivia numa cidade que não dispunha de luz elétrica. Vivemos num tempo de transformação do ponto de vista tecnológico, que repercute na vida das pessoas e, consequentemente, na saúde mental delas. Por isso é de extrema importância que um documento como o CID possa contemplar os transtornos e as questões que são do nosso tempo. É essa geração de agora que está sendo acometida por esse tipo de desordem. O CID é muito importante porque tem elementos que nos ajudam a identificar quando o jogo é um problema, são orientações sobre a frequência, a intensidade do hábito de jogar e destacadamente essa ponderação sobre o prejuízo que o jogo está trazendo para a saúde mental e física. E isso nos orienta, como profissionais, a trabalhar melhor. Primeiro, nos ajuda a reconhecer como uma questão de saúde mental e segundo nos ajuda a tratar de uma forma mais potente. Por que eu digo que é importante reconhecer como uma questão?

Porque aparentemente é algo inofensivo: no caso dos games, por exemplo, a pessoa faz uso no território da casa, em segurança, por que seria um problema? A gente sabe que nas dinâmicas das casas, às vezes, é necessário que criança ou o adolescente se ocupe de uma tela para que a casa possa funcionar, para que os afazeres domésticos possam acontecer. É algo que começa como estratégico para aquela dinâmica e aí perde-se a mão. Aquilo vai ganhando outra proporção e hoje muitos adolescentes são prejudicados pelo uso de tela. Eu digo que o dano atinge a saúde física e não só mental porque incide em problemas como os de visão, que poderiam ter sido evitados e que se tornam crônicos, acompanham as crianças para o resto da vida. Incide também em questões posturais, relacionais e emocionais.

Leia a entrevista completa na edição 196.2 da Revista Algomais: assine.algomais.com

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