Sérgio Ferreira era um homem dos números e dos cálculos, mas foi fisgado pelas elucubrações filosóficas. Engenheiro e economista, fez doutorado em filosofia, com uma tese que unia os pensamentos de Viktor Frankl e Friedrich Nietzsche. Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele conta um pouco dessa sua trajetória e analisa como a fusão desses dois grandes pensadores podem nos ajudar neste trágico momento da pandemia.
O que o levou a estudar filosofia?
Sou formado em engenharia e economia, sempre trabalhei com projeto econômico e adoro ser engenheiro também. Mas sempre gostei muito de filosofia, de pensar sobre a vida. Com as minhas filhas já criadas, resolvi voltar para a academia com o objetivo de entender melhor o mundo. Fiz meu mestrado em administração, especificamente em teoria institucional, que também nos dá uma certa ideia do mundo como um todo e das instituições. Fui presidente da AD Diper, no terceiro governo de Dr. Arraes. Quando saí de lá, nessa perspectiva de entender melhor o mundo, resolvi entrar para o movimento de cursilho de cristandade. Fui da igreja católica e esse foi um movimento trazido para cá por Dom Hélder. O interessante é que era um movimento somente dos leigos. Uma das mensagens do cursilho é sobre o sentido da vida, mas eu sentia que a resposta religiosa é boa quando se tem fé.
Mas o mundo mudou de uns tempos para cá, quando Nietzsche falou que Deus estava morto. Ele não estava querendo dizer que Deus não existe mas que, como explicação do mundo, Deus não fazia mais sentido, porque na contemporaneidade, no mundo da ciência, essas explicações religiosas deixaram de existir. Durante muito tempo o mundo ocidental foi carregado de explicações dogmáticas que a gente aceitava, mas isso foi deixando de existir. É o que Nietzsche chama de morte de Deus.
Eu tenho fé, mas consigo separar o conhecimento religioso do conhecimento filosófico científico que vive da crítica, de perguntas. No conhecimento religioso, você tem que aceitar as explicações que são dadas. Eu queria entender mais sobre o sentido da vida, não apenas sobre esse aspecto religioso. Nessa caminhada me deparei com um pensador chamado Viktor Frankl, que criou a logoterapia. Ele escreveu um livro muito famoso Em busca de sentido, sobre sua experiência como prisioneiro num campo de concentração. Ele nasceu em 1905 e morreu em 1997, era austríaco. Antes de ser preso, já com 16 anos, teve um artigo aceito na revista de Freud. Ele começou como freudiano mas, depois, foi achando que esse pensamento não explicava bem o que ele queria que era o sentido da vida. Ele achava que colocar o sentido apenas no prazer, principalmente sexual, não explicava.
E onde entra seu interesse por Nietzsche?
Estudando Frankl, reparei que ele de vez em quando citava Nietzsche e fiz meu doutorado unindo o pensamento dos dois. Nietzsche influenciou o mundo como um todo naquele período até a Primeira Guerra e depois também. Mas Nietzsche é amado e odiado. Muita gente acha que ele disseminou o suicídio porque esse pensamento da morte de Deus não é bem compreendido. Na verdade, Nietzsche é um crítico do niilismo mas muita gente acha que ele é niilista. Ele mostrou que as pessoas, ao quererem explicar o mundo a partir de Deus e se conscientizarem que isso não explica a realidade, vão ficar frustradas e verão que isso é “um nada” e o niilismo vem disso.
Mas, para Nietzsche, os cientistas também acabariam niilistas por buscarem a verdade e ele afirmou que não existe verdade. Nietzsche diz que o mundo é aqui na Terra e temos que olhar para a Terra, não para os céus, para entender o mundo. Essa discussão foi cada vez me encantando mais ao longo da pesquisa. E Nietzsche tem um conceito importante que se chama vontade de potência.
O que vem a ser vontade de potência?
Nietzsche afirmou que o mundo está em eterna luta, tudo são lutas em movimento. Se você olhar para o cosmo como um todo, são asteroides batendo um com outro. Também na Terra os seres viventes querem ter mais força, querem progredir, permanecer, existir. A partir desse conceito eu respondo a uma pergunta que muita gente se faz nesta pandemia: se Deus só quer o bem do mundo, como é que está acontecendo tanto sofrimento? Acontece que coronavírus está querendo também permanecer, lutar, ele precisa infectar as pessoas para poder se reproduzir.
E aí a partir desse conceito de Nietzsche, minha conclusão é que vai caber a nós, seres humanos, nos unirmos para vencer todas essas adversidades. Ou cooperamos mais, olhamos mais para a Terra, mais para o entorno, ou o mundo se acaba, porque o mundo é vontade de potência e se nós, seres humanos, não procuramos nos entender, nos organizar, ficarmos buscando explicações no céu, um vírus desse pode nos derrotar. Da mesma forma, tempos e tempos atrás, um asteroide bateu na Terra. Mas, ao contrário de Nietzsche, tenho minha religiosidade acredito que existem energias que nós não explicamos, não acho que tudo seja filosófico. Eu me considero um espiritualista.
Essa união não parece pouco provável nestes tempos de tanta polarização política?
Esse modelo de mundo dividido entre esquerda e direita, com partidos políticos, vem da Revolução Francesa, com os girondinos e jacobinos. Acho que até hoje existe uma crise de identidade porque logo depois disso chega Karl Marx, com a teoria dele desenvolvida em plena Revolução Industrial e ele não foi um crítico dessa revolução, dessa produção em massa. Ele foi contra o controle do capital que estava na mão de poucos, mas ele não criticou essa forma de ser do mundo, massificada. Nietzsche foi um crítico da Revolução Francesa. O que eu vejo – e talvez seja um sonho, uma utopia – é que nós precisamos nos unir porque desse jeito o mundo está acabando. E isso não é só no Brasil, o mundo todo é assim. Acredito que o modelo que foi criado até hoje está nos levando à destruição. A economia tem uma lei que se chama a tragédia dos recursos comuns, que mostra que quando todos são donos de determinado recurso, todos usufruem dele e ele termina se acabando. É como a Terra está sendo regida até agora. E o que vamos fazer para dar esse basta? É dizer, olha gente, Deus está morto, não vamos pegar explicações religiosas para resolver essas questões.
Você poderia explicar o que seria a logoterapia?
Frankl criou a logoterapia que é baseada no existencialismo, na fenomenologia e no perspectivismo (conceito de Nietzsche que diz que tudo depende muito de onde você vê as coisas). As perspectivas não são iguais para todas as pessoas, porque depende de uma série de coisas como a história da vida de cada um. O que tem de fundamental na logoterapia é a antropologia fenomenológica que possui três dimensões. As ciências humanas analisam o homem a partir de duas dimensões: corpo e alma, que são integradas. A inovação de Frankl foi dizer que o homem tem uma dimensão a mais que é a autoconsciência, é o “órgão do sentido”, é você mergulhar dentro de você, é o “conhece-te a ti mesmo”, que só o homem tem, os outros animais não têm esse sentido. Ele teorizou muito bem essa ideia, tem livros sobre o assunto. Ele baseia a logoterapia no seguinte sistema: primeiro é a liberdade da vontade, que é um conceito filosófico que até hoje não tem muita solução que consiste em saber se você tem livre arbítrio ou graça.
Ou seja, você tem liberdade neste mundo ou seu destino está pré-determinado? Isso é uma polêmica que nunca vai ter fim. Baseado nisso, ele cria um conceito chamado pandeterminismo, em que afirma que o homem não tem essa determinação absoluta mas que algum determinismo existe, porque nascemos em determinado lugar, com alguma condição econômica, há pessoas que nascem até com uma condição de inteligência maior. Mesmo assim, você tem liberdade de vontade, você consegue ter alguma determinação para o seu destino. E diz ainda, baseando-se em Nietzsche, que o que determina a vontade maior do homem é ter sentido na vida. E não é o sentido maior de realizar um grande projeto. O pessoal hoje fala muito em propósito, mas não se trata disso. O sentido se faz é no dia a dia, aqui e agora. Meu sentido da vida pode ser, eu daqui a pouco pegar meu pratinho de comida esquentar e comer. Na logoterapia só existem três formas de se ter sentido na vida: por meio do amor, do trabalho e do sofrimento. Para Frankl, o amor é algo que você recebe, que você usufrui, seja o amor dado pela natureza que você contempla, seja o amor erótico, seja o amor dos amigos, da fraternidade. Outra vontade de sentido para ele é o trabalho, não é só trabalho monetizado, mas algo que você realiza e dá para a sociedade, para o mundo. A terceira possibilidade de você ter sentido na vida é pelo sofrimento, é quando você está diante de situações difíceis e encontra forças para enfrentá-las.
Leia a entrevista completa na edição 181.3 da Revista Algomais: assine.algomais.com