A leitura de Milton Santos costuma ser muito instigante. O geógrafo brasileiro já falecido tinha uma perspectiva social muito acurada. Um texto seu de 1997, com o qual só tomei contato recentemente, inspirou-me a pensar sobre movimentos cidadãos, tema que me mobiliza porque participo de alguns desses movimentos e vivo na minha própria pele várias de suas dificuldades. Além disso, me desafia, por dever de ofício da atividade de consultoria.
O nome do texto já é uma provocação – As Cidadanias Mutiladas – e gera um instantâneo desconforto. Mutilação é uma palavra pesada; como associá-la à cidadania, que evoca sentimentos positivos ligados a liberdade, direitos e conquistas sociais? Sendo psicanalista era inevitável que minha reflexão tomasse o rumo de uma perspectiva psicossocial; e assim foi.
Milton Santos define cidadão como ¨um indivíduo que tem direitos¨ e que ser cidadão implica ter consciência desses direitos e ¨a capacidade de entender o mundo e sua situação no mundo¨, o que lhe permite se diferenciar do Estado e enfrentar o Estado. Um cidadão, então, seria sempre um protagonista, alguém capaz de se posicionar assertivamente para fazer valer os direitos dos quais tem clara consciência. Em consequência, movimentos de cidadania seriam movimentos por direitos; da sociedade de enfrentamento do Estado ou, quando possível, de diálogo com o Estado. Um protagonismo que acontece em diversas formas de participação social, buscando impacto sobre as políticas públicas em relação ao respeito, à preservação e à promoção dos direitos dos cidadãos.
Mas ele diz, também, algo muito pesado: no Brasil, a classe média não tem cidadãos porque ¨não se preocupa com direitos, mas com privilégios¨. A busca de privilégios sustenta as desigualdades sociais e cria a categoria dos que ainda não podem ser cidadãos porque seus direitos são negados, limitados ou interditados. Essas são as cidadanias mutiladas; mutiladas no acesso à educação de qualidade, a serviços de saúde qualificados; à justiça, a transporte de qualidade, a espaços não segregados, à moradia qualificada no direito a oportunidades de trabalho... a lista das mutilações é grande.
Essas afirmações nos fazem pensar em três fenômenos que são como pragas que afetam movimentos sociais, também chamados movimentos de cidadania. A primeira dessas pragas é o individualismo – só participo e me envolvo quando tenho clareza de que, pessoalmente, vou ganhar algo que me interessa; se vejo uma oportunidade para que algum ganho do movimento possa se reverter diretamente em meu benefício.
A segunda é o voluntarismo – só me motivo se faço valer a minha vontade, fundamentada em convicções arraigadas, muitas vezes inflexíveis. Nada da disposição de dialogar, de admitir pontos de vista diferentes, de aceitar que outros argumentos prevaleçam.
A terceira é o radicalismo que leva, quase inevitavelmente, a uma divisão maniqueísta: o bem e o mal, os que estão comigo e os que são contra mim. Daí para a intolerância a distância é pequena e para a violência, nem sempre física, um passo bem curto.
A solução encontra-se no que está subjacente à concepção de cidadão formulada por Milton Santos – consciência clara dos direitos, compreensão do mundo e da própria situação do mundo. Isso supõe considerar o outro, dar ao outro o mesmo estatuto que assume para si próprio e reconhecer-lhe os mesmos direitos, em todos os planos.
Esses são os requisitos essenciais para praticar uma cidadania plena e poder aderir a um projeto coletivo, pensando para além das próprias necessidades, sendo solidário e tolerante ao conviver com as diferenças. Sem isso, os movimentos sociais, por mais altissonantes e reivindicatórios que sejam, são apenas simulacro de cidadania; triste sintoma de uma cidadania mutilada nos seus fundamentos.
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*Por Cármen Cardoso, psicanalista e sócia da TGI Consultoria em Gestão.