Mário Ribeiro, Historiador da UPE, fala da vida e obra do autor do poema Tem gente com fome, que foi pioneiro na militância contra o racismo e na criação de uma arte voltada a retratar a realidade da população negra e que este ano completa cinco décadas da sua morte.
Poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante do movimento negro, o pernambucano Solano Trindade tem uma biografia densa. Foi um dos organizadores e idealizadores do 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em 1934 no Recife e liderado por Gilberto Freyre. No Rio de Janeiro fundou, com o ator, escritor e sambista Haroldo Costa, o Teatro Folclórico Brasileiro. No ano seguinte participou do antológico Teatro Experimental do Negro, projeto idealizado por Abdias Nascimento com a proposta de valorizar o negro e a cultura afro-brasileira e também lançar um novo estilo dramatúrgico. Com o amigo Abdias, criou ainda o Comitê Democrático Afro-brasileiro que se estabeleceu como o braço político do TEN. Sua poesia, forte e criativa, aborda a condição da população negra e retrata uma realidade que permanece atual.
Apesar de toda a importância da sua obra e do seu pioneirismo no combate ao racismo no País, Solano Trindade permanece desconhecido no Brasil, mesmo em sua terra, o Recife. Para analisar a importância do poeta pernambucano, Cláudia Santos conversou com o historiador e professor da graduação e pós-graduação da UPE (Universidade de Pernambuco) Mário Ribeiro. Quando Ribeiro estagiava na Casa do Carnaval – situada no Bairro de São José, onde Solano Trindade nasceu – conheceu a escritora negra Inaldete Pinheiro, que lhe apresentou a história de Solano Trindade. Hoje, ele recorre ao poeta em suas aulas, criticando e combatendo o apagamento do protagonismo negro na literatura, na história, na cultura, na política, na vida social como um todo. “A gente precisa investir nesse canal de transformação que é a escola”, propõe.
Solano Trindade é um dos pioneiros na valorização da cultura afro-brasileira e da militância no movimento negro. Fale um pouco sobre a vida dele no Recife.
Ele nasceu em 1908, no Bairro de São José. Localizado na zona portuária, próximo ao mercado público, à antiga Prainha de Santa Rita, o bairro é o mais preto do Centro do Recife, principalmente no contexto em que Solano nasceu. Por ali circulavam pescadores, vendedores ambulantes e pessoas desempregadas. Até hoje, há ecos dos tempos em que se vivia de pesca naquele entorno, como pescadores vendendo peixe e camarão na beira do rio e na entrada de algumas ruas.
O Recife está mergulhado em mangue, no bairro de São José, há ruas e becos com nomes de peixes. Foi nesse contexto que Solano Trindade nasceu, um ambiente de trabalhadores pobres, pessoas pretas, na sua maioria, vivendo a grande efervescência das manifestações culturais. Muitos clubes de frevo, caboclinhos e maracatus surgiram ou tinham sedes por ali. O pai dele era sapateiro e tinha paixão pela cultura popular, a brincadeira do bumba meu boi, o presépio, ele era o velho do pastoril. Então, Solano se aproxima dessas culturas populares por meio do pai.
A mãe, para quem Solano lia literatura de cordel, segundo algumas versões, era dona de casa e, de acordo com outras, trabalhava numa fábrica. Ele é um dos percussores do movimento negro no País. Era um estudioso que lia, pesquisava e trazia essa relação de África com o Brasil por meio do seu trabalho, e isso está presente em vários de seus poemas. Em vida, publicou quatro livros, um deles, O Poema de Uma Vida Inteira, foi apreendido pelo Estado Novo num período de grande perseguição e cerceamento daquelas pessoas e práticas consideradas desordeiras ou prejudiciais à ordem e ao bom funcionamento do Estado. Em um de seus poemas chamado Sou Negro, ele diz assim:
Sou negro/ meus avós foram queimados/ pelo sol da África/ minhalma recebeu o batismo dos tambores/ atabaques, gongôs e agogôs/ Contaram-me que meus avós vieram de Luanda/ como mercadoria de baixo preço/ plantaram cana pro senhor de engenho novo/ e fundaram o primeiro Maracatu/ Depois meu avô brigou como um danado/ nas terras de Zumbi/ Era valente como o quê/ Na capoeira ou na faca/ escreveu não leu o pau comeu/ Não foi um pai João/ humilde e manso/ Mesmo vovó não foi de brincadeira/ Na guerra dos Malês/ ela se destacou/ Na minh
alma ficou/ o samba/ o batuque/ o bamboleio/ e o desejo de libertação.
Há muito da ancestralidade e da vivência em sua obra?
Sim. Percebe-se um conhecimento dessa ancestralidade e oralidade na obra de Solano, porque muito do que ele escrevia era fruto do que ouvia e via. Então, a vivência e a memória estão muito presentes. O poema Pregões do Recife Antigo, por exemplo, traz o que ele ouvia passando pelo bairro de São José. Há um trecho que diz assim:
Ei munguzá/ tá quentinho o munguzá/ istá bom, ispiciá/ de manhã bem cedinho a preta gingando enche de música o bairro de São José/ lá vem o cuscuzeiro/ cuscuz, cuscuz de milho/ e quando o sol vem iluminar a cidade/ as ruas se enchem de balaieiros/ enchendo de ritmo a beleza da terra/ é doce, é doce o abacaxi/ é doce, é doce e é barato.
E aí segue falando do vendedor de banana, de manga, de sapoti, de jaca, de cajá. Ele traz, nos seus poemas, esses pregões que eram cantados por trabalhadores da rua, e isso garante sonoridade, musicalidade, presentes até mesmo em obras de denúncia, de crítica, como no poema Tem gente com fome, em que o trem sujo da Leopoldina vai passando pelas estações no Rio de Janeiro, de Caxias até os lugares para os quais ele se deslocava. E vai mostrando pessoas com semblante triste, com fome. É uma grande denúncia da desigualdade social e racial, pois não há como falar de relações étnico-raciais separando o social do racial, a cor da fome é preta, a gente sabe disso. Esse poema, por mais forte que seja, traz essa musicalidade com uma sequência de repetições.
Tanto é que esse poema foi musicado depois, não é? Assim como outros de autoria dele, como Mulher Barriguda, que ficou conhecido pela canção do grupo Secos & Molhados.
Isso. Inclusive, em função do poema Tem gente com fome, Solano Trindade teve sua casa invadida, foi perseguido e preso no Estado Novo. Quando o Secos & Molhados o musicou, na década de 1970, a canção foi proibida, ela não circulou logo. Só depois Ney Matogrosso gravou.
Você poderia falar um pouco da participação política de Solano Trindade, principalmente com Abdias do Nascimento?
Antes de ir para o Rio de Janeiro, ele abre, junto com Abdias do Nascimento, uma espécie de filial da Frente Negra, que foi um movimento brasileiro de luta, de combate, de enfrentamento a esse lugar que o povo negro ocupava na sociedade no início do Século 20. Esse movimento criou-se através da cultura, da educação, em 1931. Depois tornou-se um partido político perseguido e abriu filiais em vários lugares do Brasil. Em Pernambuco, essa filial chegou em 1932 e quem fica à frente é Solano Trindade. Mas não tem tanta visibilidade e repercussão como teve o Teatro Experimental Negro com Abdias do Nascimento.
Solano já fazia um trabalho aqui com teatro e dança. Margarida, sua esposa, era coreógrafa. É nesse sentido que Solano e Abdias se aproximam, pelo próprio contexto político, da militância, da arte e é dessa forma que ele também se torna um dos nomes do Teatro Experimental Negro.
Solano foi um incentivador da cultura popular. Você acredita que o fato dele ter vivido na efervescência cultural do Bairro de São José influenciou tal característica?
Completamente. A cultura popular está muito presente na sua vida e ele traduz isso na sua obra. Solano criou o Grupo de Dança Brasiliana em 1955. Esse grupo, que foi premiadíssimo, correu o Brasil e outros países levando maracatu, samba, frevo e temáticas do candomblé, que, aqui em Pernambuco, é chamado de Xangô pernambucano.
Ele é um dos precursores e traz referências da religiosidade afro- -brasileira em vários poemas: fala da Baiana do Pina que era uma Yalorixá, do maracatu, da calunga, de vários elementos que estão relacionados a esse cotidiano religioso do Xangô pernambucano e isso é muito presente não só na literatura como na dança, no teatro. Ele foi o primeiro ator a encenar a peça Orfeu, quebrando esses paradigmas de que o corpo negro não podia assumir o protagonismo de uma peça. Ele vai abrindo esses caminhos como um grande Exu. Mas na verdade ele era filho de Ogum.
Por que esse nascedouro do movimento negro no Brasil é pouco conhecido? Fala-se muito da sua atuação partir da influência dos Estados Unidos nos anos 1970, com Martin Luther King, os Panteras Negras, o Black is Beautiful. Mas existiu uma luta anterior no País.
Na verdade, temos essas lideranças populares que, nos livros didáticos e pautas públicas, estiveram na invisibilidade por muitos anos. Essas pessoas estavam nas periferias, nas fábricas, dentro dos mercados, nas ruas fazendo o movimento negro, fazendo política, discutindo sobre a condição do povo negro no mercado de trabalho, na sociedade, fazendo movimento social e político através da cultura. Agora o que essa branquitude fez foi justamente folclorizar todo esse movimento, e folclorizar no pior sentido do termo, de diminuir a importância, desqualificar essa produção toda.
Em 1950, Solano cria o Teatro Popular Brasileiro junto com sua esposa Margarida e com o sociólogo Édison Carneiro. Mesmo cercado de intelectuais tão bons quanto ele, Solano e todos esses movimentos são silenciados. É simplificado num movimento de folclore. Você deslegitima quando diz que todas essas práticas são folclore mas, na verdade, o que estava sendo levado para os palcos era uma luta social, uma pauta política. Quando ele escrevia, estava reivindicando sobre essa ausência, essa satirização do corpo negro, sobre esse silenciamento.
Então esse branqueamento da sociedade, essa branquitude, esse saber/poder colonial vai criando mecanismos de esvaziamento de historicidade do processo a ponto de jogá-lo no esquecimento. E, aí, muitas pessoas só ouvem falar sobre movimento negro no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 e esquecem daqueles que vieram antes abrindo os caminhos para quem está hoje passando.
Nos últimos anos, apesar de todo racismo estrutural existente no Brasil, houve avanços. No entanto, os poemas de Solano, mesmo tão belos e de uma linguagem acessível, permanecem desconhecidos para muitos brasileiros e pernambucanos. Ele continua não sendo estudado nas escolas?
Solano Trindade é um dos grandes expoentes da literatura negra brasileira, e as pessoas pouco o conhecem, devido ao currículo euro-centrado, que supervaloriza autores europeus, sobretudo brancos. Há 20 anos, fiquei encantado com a potencialidade da obra dele e me perguntei como eu não aprendi isso na universidade? Como nunca ouvi falar sobre Solano e outros intelectuais negros como Inaldete Pinheiro, que tem vários livros de literatura infantil produzidos e publicados? Por isso, debato Solano Trindade nas minhas aulas.
Existe um movimento de resistência que leva para a sala de aula, não só o nome de Solano, mas o de Inaldete Pinheiro, Miró, Odair e dessa nova geração também. Geralmente quem leva essa temática são professores da militância que estão envolvidos com cultura negra, afro-brasileira, com terreiros, com políticas públicas. São esses professores pretos e não pretos.
No início dos anos 2000, fizemos um trabalho chamado Conhecendo Nossa História, foi um projeto do Núcleo da Cultura Afro- -Brasileira da Prefeitura do Recife que, a cada ano, nomeava uma personalidade negra para ser estudada nas escolas, começando por Solano Trindade. Também fizemos, na Casa do Carnaval, uma exposição em homenagem a ele.
Na cidade, dentro do Circuito da Poesia, temos uma estátua de Solano Trindade no Pátio de São Pedro, a militância e os professores engajados nessa luta antirracista vão furando os bloqueios. Durante os quase cinco anos que trabalhei no campus da UPE em Petrolina, tive a oportunidade de levar o trabalho de Solano Trindade para cursos de letras e história. Agora estou no campus da Mata Norte e, por onde passo, falo sobre Solano para meus alunos. Há outros professores que também fazem o mesmo, como a Fátima Oliveira que é professora da rede municipal do Recife e faz um trabalho belíssimo, há mais de 15 anos na UPE, sobre relações étnico-raciais.
Solano é espantosamente muito atual. Você acha que essa atualidade dele é porque o mundo mudou pouco ou ele estava à frente do seu tempo?
A invisibilidade e a desqualificação desse outro que foi criado no contexto de colonização tem a catequese como a primeira grande hecatombe. Ela vem no sentido de satanizar e colocar à margem tudo aquilo que não caminhava naquele olhar cristão europeu. E é nesse contexto que o corpo negro começa a ser desqualificado, invisibilizado, nesse contexto de colonização, fruto do processo de tráfico, de diáspora.
O racismo sempre existiu, várias fases da história tentaram branquear essa população e, o tempo todo, nossos ancestrais foram criando mecanismos de resistência, nunca foi fácil, a gente não pode naturalizar, isso foi algo construído por várias gerações. Mas hoje há mais facilidade para registrar uma cena de racismo, um crime, uma chacina, a gente tira uma foto, faz um vídeo, solta nas redes sociais e provoca um alcance maior. Então, a poesia de Solano Trindade é muito presente, seu poema Civilização Branca traduz muito isso que se vive hoje, ele diz assim:
Lincharam um homem entre os arranha-céus/ li no jornal/ procurei o crime do homem/ o crime não estava no homem/ estava na cor da sua epiderme.
E, aí, a gente se depara com um caso que teve notoriedade nas redes sociais recentemente, do porteiro do Rio Grande do Sul que foi agredido violentamente por um dos moradores do prédio. A cada dia, cenas como essas vêm se repetindo com porteiros, vendedores, entregadores de iFood. Mas isso acontece cotidianamente e precisamos denunciar, falar sobre, não é mimimi, não é um assunto batido. Enquanto continuar existindo, é preciso falar, e a escola, a poesia são algumas das formas de mostrar como isso está presente e como é possível de ser transformado.
A escola é o grande caminho, eu acredito muito na potencialidade dela, sobretudo na escola pública. Não podemos fechar os olhos para a escola pública, é lá aonde estão esses grandes nomes potenciais para transformar essa realidade. De onde vem essa militância? De onde vêm esses intelectuais negros? Essa galera saiu da escola pública, da faculdade pública, os meus pares que estudei, que leio, que debato, todos saíram da escola pública. Então, a gente precisa investir nesse canal de transformação que é a escola.